Almoço dos poderosos retorna a Wall Street, com martínis e impunidade

Falência do Lehman Brothers marcou o fim de uma era e levou o mundo das finanças à beira do abismo

Nova York | The New York Times

No dia em que o banco Lehman Brothers pediu concordata –15 de setembro de 2008–, o Grill Room ficou praticamente vazio. Julian Niccolini, o mâitre e um dos proprietários do restaurante Four Seasons, atendeu a uma sucessão de telefonemas. As ligações vinham de assistentes de grandes executivos de Wall Street - os chamados Mestres do Universo, que repentinamente se viram transformados em Mestres de Coisa Nenhuma.

Os cancelamentos se acumularam, e as pessoas que mantiveram suas reservas moderaram seus gastos. "Muito chá gelado", disse Niccolini, "e quase nenhuma venda de vinho".

A falência do Lehman Brothers, a maior da história dos Estados Unidos, significou o fim de uma era e levou o mundo das finanças à beira do extermínio.

"Todo mundo achava que as coisas não acabariam, todo mundo bebia o vinho mais caro da carta", disse Niccolini. "E então, aquele dia chegou, e foi como que o fim do mundo".

Julian Niccolini, co-proprietário do Four Seasons, restaurante que servia almoço para a elite de Wall Street desde 1977
Julian Niccolini, co-proprietário do Four Seasons, restaurante que servia almoço para a elite de Wall Street desde 1977 - NYT

Se existe uma pessoa com uma perspectiva franca e única sobre as oscilações culturais de Wall Street desde a crise, certamente é Niccolini. Seu restaurante atende aos gigantes das finanças, e é um contador de casos cuja conduta pessoal nada elogiável – ele sofreu um processo por agressão sexual encerrado quando admitiu culpado de um delito –  o torna uma espécie de janela encardida para um mundo em geral opaco.

Niccolini serve almoços à elite de Nova York desde 1977, e sabe de cor o número das mesas de presidentes de instituições financeiras, como Jamie Dimon, do JPMorgan Chase, e Stephen Schwarzman, da Blackstone, bem como conhece as preferências de Pete Peterson, que foi secretário do comércio do presidente Richard Nixon e se tornou sócio de Schwarzman na Blackstone, quanto a drinques.

"Meu Deus, Bruce Wassserman", disse Niccolini, citando um financista pioneiro em tomadas hostis de controle acionário, morto em 2009. "Sempre que ele não conseguia a mesa certa, eu recebia um telefonema de sua assistente, prometendo acabar comigo".

Muita tinta foi derramada nos últimos 10 anos para tentar determinar se o etos de Wall Street mudou ou não. Será que a experiência de quase morte do setor –  ou a regulamentação que veio depois –  mudaram fundamentalmente as almas da elite das finanças?

Muita gente em Wall Street gosta de imaginar que sim. Essas pessoas dizem que lições foram aprendidas.

Mas o espírito de frugalidade desapareceu em questão de meses. "Tudo voltou a ser exatamente como antes, porque essas pessoas têm dinheiro", disse Niccolini. "Não se esqueça dessa parte. Elas têm dinheiro. E querem gastar dinheiro".

O pagamento de bonificações foi retomado em Wall Street no final de 2009 - no banco Golman Sachs, o valor das bonificações chegou a US$ 16,7 bilhões, o mais alto na história da companhia - e os poderosos das finanças voltaram ao Four Seasons.

"Metade das pessoas que estão aqui poderiam perfeitamente ser processadas", disse o cineasta Oliver Stone, em tom exultante, em 2010, contemplando o Grill Room. Foi logo antes da estreia de "Wall Street - o Dinheiro Nunca Dorme", no qual ele revisita o universo de Gordon Gekko [de "Wall Street - Poder e Cobiça"] na era pós-crise.

Mesmo as pessoas que terminaram derrubadas pela crise, como Dick Fuld, o último presidente-executivo do Lehman Brothers, encontravam refúgio no Four Seasons, "Ele aparecia de vez em quando", disse Niccolini. "E não era tratado diferentemente das demais pessoas".

Houve mudanças duradouras, claro. Mas a que se destaca especialmente, aos olhos de Niccolini, reflete mais uma mudança de atitudes sociais do que uma mudança nos ideais do setor.

"Alguns dos caras, como Lewis Gluckman, do Lehman, às vezes tomavam três martínis no almoço, quando vinham ao Four Seasons", disse Niccolini sobre um presidente-executivo do Lehman Brothers nos anos 80, que ajudou a preparar Fuld para o posto. "E não havia coisa alguma de errado nisso, sabe? Porque aquele pessoal tinha uma constituição diferente. Eram caras efetivamente capazes de tomar três martínis no almoço e voltar ao trabalho".

Para drinques ou para refeições, parte do que sempre importou quanto ao Four Seasons era estar lá. "Era importante ser visto, conduzir negociações privativas mas à vista dos outros", escreveu Paul Freedman em "Ten Restaurants That Changed America" (2016). O Four Seasons, com seu teto elevado como o de uma catedral, permitia que os fregueses "vissem as pessoas nas mesas próximas, conversassem confidencialmente com facilidade, e evitassem que as pessoas das outras mesas os ouvissem - tudo isso em um ambiente sereno e luxuoso", escreveu Freedman.

O livro de Freedman discute o restaurante do Four Seasons no pretérito. A casa fechou em 2016, quando perdeu seu espaço no Seagrams Building, na Quarta Avenida, ainda que planejasse se transferir a um novo endereço a alguns quarteirões de distância. Meses antes, Niccolini tinha se admitido culpado por um delito de agressão sexual. O acordo surgiu por conta da acusação de que ele havia agredido uma mulher sexualmente em uma festa no restaurante, um ano antes. Niccolini também foi alvo de um processo por assédio sexual movido por uma ex-garçonete do restaurante, resolvido por acordo em 1992 sem que os detalhes do caso fossem divulgados em público.

"Resolvi a situação", ele disse. "É coisa do passado".

Agora o Four Seasons voltou, reinaugurado algumas semanas atrás. O passado não afetou os negócios, disse Niccolini. Os magnatas já estão de volta.
 

E por isso, os Mestres do Universo - ou seus assistentes - já estão na briga por reservas., "Todo mundo quer escolher sua mesa", disse Niccolini, mencionando nomes de figurões de Wall Street que visitaram a casa antes da inauguração para escolher lugares.
"Sabe o que isso significa? Eles estão dizendo que que 'tenho mais dinheiro do que você. Tenho mais poder do que você. Estou no comando'".

"Tudo gira em torno de dinheiro; de poder", ele prosseguiu. "Isso não mudou. Na verdade, está ficando muito pior".
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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