Investigação de propina leva a mistério com Di Cavalcanti

Acusado de corrupção na Caixa para beneficiar Odebrechet teria quadro falsificado

Fábio Fabrini
Brasília

Acusado de receber propinas para liberar investimentos na Caixa, o ex-conselheiro do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) André Luiz de Souza se comprometeu a entregar à Justiça um quadro de Di Cavalcanti, comprado com supostas propinas pagas pela Odebrecht no exterior.

O propósito do banco é levar de São Paulo a Brasília a obra "A Mulata", que o réu alega ter comprado por US$ 216 mil (R$ 893 mil), e colocá-la em exposição, como ocorreu com o acervo apreendido na Lava Jato. Mas surgiu a suspeita de que ela seja falsa e esteja superfaturada.

Quando estava preso preventivamente, em 2017, Souza pôs a obra e os recursos que mantém na Suíça (mais de R$ 19 milhões) à disposição do poder público, num apelo para sair da cadeia.

Em fevereiro, o juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Federal em Brasília, mandou sequestrar o quadro e a fortuna no exterior diante da suspeita de que são produtos de crimes contra a Caixa.

A polêmica nasceu quando a transportadora contratada pelo banco foi buscar "A Mulata" no endereço de Souza, em São Paulo. A empresa percebeu que ela não consta de nenhum catálogo de obras de Di Cavalcanti e alegou que o trabalho do pintor brasileiro é um dos mais copiados no mundo.

Diante disso, suspendeu a operação e avisou que só levará a tela após uma avaliação sobre sua autenticidade, condições de conservação e valor, necessária para fazer o seguro do transporte.

Intimado, Souza admitiu que não tem um laudo para comprovar que "A Mulata" foi mesmo pintada por Di Cavalcanti nem dinheiro para contratar um marchand que o faça. Uma avaliação sairia por R$ 10 mil, mas os milhões a ele atribuídos estariam inacessíveis, no exterior.

Posto de lado o juridiquês, o ex-conselheiro do FGTS deu ao juiz da 10ª vara apenas sua palavra sobre a originalidade da obra, ao estilo "la garantía soy yo": alega também não dispor de nota fiscal ou recibo da tela. E resiste em contar com quem a negociou.

"E aí? Não tem o documento?", questionou Vallisney em uma audiência sobre o caso no dia 1º de agosto.

"Excelência, até pela forma como essa obra foi adquirida, é óbvio que não vai ter nota", explicou a advogada do ex-conselheiro, dizendo-se afrontada com os questionamentos da Caixa: "Dá a entender que meu cliente está mentindo".

O banco insiste não ser possível custear seguro, guarda e transporte sem "inequívoca comprovação de autenticidade" pelo réu. Afirma que Souza pode não só estar entregando um bem falso e superfaturado, mas escondendo outras obras compradas com dinheiro de corrupção.

Delatores da Odebrecht disseram ter repassado os US$ 216 mil a ele para pagar "obras de arte" [no plural].

"A Caixa possui em seu acervo algumas obras de Di Cavalcanti que foram valoradas nas cifras que variam entre R$ 180 mil e R$ 200 mil. A grande diferença entre os valores das obras do acervo e o valor transferido [pela Odebrecht] indica que possivelmente existem outras que não foram indicadas pelo réu", escreveram os advogados do banco numa petição.

Eles afirmam não ser crível que faltem condições financeiras para que Souza pague a perícia, tendo em vista os milhões que movimentou.

Com dúvidas sobre "A Mulata", o juiz pediu socorro ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), mas o órgão não tem dados sobre a pintura oferecida por Souza.

"Não identificamos exatamente de qual obra de arte do Di Cavalcanti se trata. Há inúmeras [do artista] intituladas sobre a temática 'mulata'." A reportagem não obteve imagem de "A Mulata" de Souza.

Representante do modernismo brasileiro, que viveu de 1897 a 1976, o pintor se notabilizou por retratar mulheres nas mais diversas situações.

O instituto indicou laboratórios da Polícia Federal e da USP (Universidade de São Paulo) para fazer testes sobre a datação das tintas e a análise das camadas, entre outros.

"O Iphan não atesta a autenticidade de obras, uma vez que não tem expertise para tanto."

Os representantes da Caixa estão temerosos porque, em outras ocasiões, falsificações do mesmo pintor foram identificadas em acervos destinados a ressarcimento.

Ao processo, anexaram reportagem da Folha, publicada em 2006, que informou serem falsas duas telas de Di Cavalcanti tomadas do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira e levadas ao MAC (Museu de Arte Contemporânea) da USP.

OUTRO LADO

Ex-filiado ao PT, Souza foi indicado ao Conselho Curador do FGTS pela CUT (Central Única dos Trabalhadores). Ele integrou o Comitê de Investimentos do FI-FGTS (Fundo de Investimentos do FGTS).

Souza foi denunciado e responde a uma ação penal por receber pagamentos da Odebrecht de R$ 27,4 milhões e US$ 8,7 milhões (R$ 28,3 milhões), supostamente em troca de facilitar aportes do fundo gerido pela Caixa.

O acusado sustenta que recebeu por serviços legalmente prestados.

O advogado do ex-conselheiro, Fábio Tofic Simantob, diz que seu cliente pagou pela obra no exterior, de forma "não contabilizada", o que justifica a falta de documentos. "Quem paga assim não tem nota", afirma.

Questionado sobre por que seu cliente não informa ao menos de quem a adquiriu, o defensor diz não ter conversado com ele a respeito.

Tofic afirmou que Souza informou em juízo que se trata de um legítimo Di Cavalcanti porque não tem dúvidas a respeito.

O advogado classificou as suspeitas lançadas pela Caixa de especulação. Argumentou, por exemplo, que o fato de a tela não constar de catálogos não significa que seja falsa.

Tofic sustenta que cabe à Caixa fazer uma avaliação sobre a obra, tendo em vista os questionamentos que ela própria faz. "Manda avaliar ou diz que não quer."

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