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Martin Wolf

Os formuladores de políticas econômicas globais estão brincando com fogo

Estamos brincando coletivamente com fogo; pior, estamos fazendo isso enquanto moramos em um prédio inflamável

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Martin Wolf
Londres

"Não faça coisas idiotas." A frase, modificada para excluir a palavra "shit" [merda], ficou conhecida como "doutrina Obama". Ela refletia as lições que Barack Obama aprendeu com a desnecessária guerra no Iraque de seu antecessor na Presidência. Para muitos, a doutrina era derrotista. Hoje vejo seus méritos.

Seria maravilhoso ver uma ação inteligente em resposta aos nossos muitos desafios. No entanto, hoje, a aplicação da doutrina Obama seria um alívio.

Isto é verdade, sem dúvida, para a economia mundial. Como disse Kristalina Georgieva, nova diretora-administrativa do FMI, na inauguração das reuniões anuais do órgão, nesta semana em Washington: "Em 2019, esperamos um crescimento mais lento em quase 90% do mundo. A economia global está hoje em desaceleração sincronizada". A pesquisa conjunta da Brookings Institution e do Financial Times ainda é mais sombria, descrevendo nossa situação como "estagnação sincronizada".

O que está promovendo essa desaceleração, especialmente acentuada na indústria e no comércio? Uma grande parte da resposta parece ser a crescente incerteza. Esta, argumentam os autores de Brookings, se deve às "tensões comerciais persistentes, instabilidade política, riscos geopolíticos e preocupações com a eficácia limitada do estímulo monetário". Tal incerteza, observa Gavyn Davies, tornou-se "entrincheirada".

Em sua última Previsão Econômica Mundial, o FMI projeta um crescimento da produção mundial de apenas 3% neste ano, abaixo dos 3,6% de 2018. Nos países de alta renda, o crescimento agregado previsto é de 1,7%, abaixo dos 2,3% do ano passado. Nas economias emergentes, o declínio é de 4,5% para 3,9% neste ano.

O crescimento do volume do comércio mundial está previsto em apenas 1,1% neste ano, contra 3,6% no anterior. Isso está muito abaixo do crescimento da produção: significa desglobalização, pelo menos em relação ao comércio.

Fundamentalmente, os riscos estão todos no lado negativo. Os conflitos comerciais entre os EUA e seus principais parceiros comerciais podem piorar. Nesse caso, cadeias de suprimentos integradas, principalmente em produtos de alta tecnologia, poderão ser seriamente prejudicadas. O brexit poderá ser caótico.

Os riscos geopolíticos também são abundantes, especialmente no Oriente Médio, mas também na Ásia. Acima de tudo, as relações entre os EUA e a China estão piorando. Também existem fragilidades financeiras significativas, notadamente o alto endividamento das empresas não financeiras. A ameaça de ataques-cibernéticos permanece, assim como o megaterrorismo. Insistimos em não enfrentar a mudança climática.

De modo deprimente, muito do que ameaça a economia mundial se deve a "coisas idiotas". A política comercial de Donald Trump está destruindo os fundamentos do sistema de comércio do pós-guerra, criando assim uma enorme incerteza, em busca do tolo objetivo do equilíbrio bilateral.

O brexit é idiota: destruirá uma parceria frutífera com os vizinhos e parceiros do Reino Unido. O crescente atrito entre o Japão e a Coreia do Sul também é idiota: enfraquece os dois países, numa região cada vez mais dominada pela China.

Estamos brincando coletivamente com fogo. Pior, estamos fazendo isso enquanto moramos em um prédio inflamável. Como nos diz Lawrence Summers, o perigo não é tanto uma desaceleração econômica global, mas a dificuldade de agir em reação a ela. Nesse contexto, a recente mudança na política do Federal Reserve (banco central dos EUA), em direção a taxas mais baixas, e o declínio associado nas expectativas das taxas de juros são particularmente reveladores.

Mesmo nos EUA, era impossível para o Fed elevar a taxa de curto prazo acima de 2,5% neste ciclo, antes de cortá-la. Em outras grandes economias de alta renda, o espaço para uma resposta política convencional a uma desaceleração é ainda mais limitado.

É importante ressaltar que isso nos diz que a demanda agregada estruturalmente deficiente, sobre a qual alguns de nós escrevemos desde antes da crise financeira de 2007-2008, permanece generalizada. Isso nos obriga a reconhecer não apenas as coisas idiotas "nacionalistas-populistas-protecionistas" mencionadas acima, mas, igualmente letal, a coisa idiota da "austeridade como religião secular".

Ela se revela não apenas no terror à política monetária agressiva, acertadamente rejeitada pelo ex-presidente do Banco Central Europeu Jean-Claude Trichet, como na recusa em aceitar a alternativa, qual seja, a política fiscal.

As pessoas ficam petrificadas com empréstimos do governo, embora os credores estejam dispostos a pagar pelo privilégio.

É economia elementar que os preços importam. O fato surpreendente é que as seis maiores economias de alta renda, incluindo agora até a Itália, podem emprestar por 30 anos a uma taxa nominal fixa de cerca de 2% ou menos e, portanto, a taxas reais de zero a negativas, desde que os bancos centrais cumpram suas metas de inflação.

É preciso ser desesperadamente pessimista em relação às perspectivas de crescimento para acreditar que é impossível administrar empréstimos substanciais nesses termos. Isso é especialmente verdadeiro se o empréstimo for usado para produzir ativos humanos, intangíveis e físicos de alta qualidade. Uma fixação na eliminação dos déficits orçamentários, nesse contexto, é realmente uma coisa idiota.

Se as taxas reais subirem novamente, isso refletiria melhores oportunidades percebidas e justificaria (e facilitaria) restringir os gastos do governo. Enquanto isso, o baixo custo dos empréstimos anteriores estaria fixado. E também, como observou Olivier Blanchard, é comum que as taxas de juros seguras fiquem abaixo das taxas de crescimento. Hoje parece ser apenas uma versão extrema dessa realidade.

Estes são tempos frágeis. Parte disso reflete a onda de nacionalismo populista que hoje varre os países de alta renda. Mas parte reflete a ortodoxia estéril. Uma desaceleração modesta é uma coisa. Mas uma desaceleração acentuada com a qual nos recusamos a lidar, por idiotice, seria outra coisa totalmente diferente.

Como Georgieva argumenta, precisamos de um "compromisso renovado com a cooperação internacional". Esse também é o tema de um compêndio recente do Comitê de Bretton Woods. Hoje, porém, talvez seja ambicioso demais. Mas poderíamos pelo menos parar de fazer coisas idiotas.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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