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Carlos Ghosn dispara contra Nissan e Judiciário japonês em livro sobre prisão e fuga

Obra de ex-todo-poderoso da indústria automotiva é rica na descrição de celas e interrogatórios, mas decepciona no relato sobre o escape

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São Paulo

Tanto se disse que a fuga de Carlos Ghosn da prisão domiciliar no Japão em seu jato particular era digna das telas do cinema que, em breve, a sua história terá trilhado meio caminho para isso: estará nas páginas de um livro.

A editora Intrínseca lança na segunda-feira (29) “Juntos, Sempre: Confidências sobre um Ano no Inferno”, a respeito do período em que o ex-presidente da Nissan e da Renault oscilou entre o Centro de Detenção de Kosuge e a prisão domiciliar no país asiático.

O livro é uma espécie de mergulho nos diários de Ghosn e sua mulher, Carole, em 2019. O casal alterna a escrita em um texto dividido pelas datas dos acontecimentos mais marcantes da história.

Ghosn, que carrega consigo três nacionalidades (libanesa, francesa e brasileira), foi preso em 19 de novembro de 2018. Até esse dia, era celebrado como o responsável pela construção de um império no setor automotivo —a aliança Renault-Nissan-Mitsubishi—, um dos executivos mais bem pagos entre as companhias japonesas.

Ele foi preso sob a acusação de sonegação, ao supostamente declarar às autoridades renda inferior à real, e os dias e meses seguintes à sua detenção foram de inúmeras denúncias por parte da alta cúpula da empresa.

Na época, a companhia disse que Ghosn ocultou sua renda do fisco “durante anos”. “Além disso, várias outras práticas ilícitas foram descobertas, como o uso de bens da empresa com fins pessoais”, afirmou a companhia.

Não espere, porém, uma clara prestação de contas a respeito das acusações. Há mais retórica do que explicação concreta, além de uma boa dose de roupa suja lavada em público —o que muito esclarece as políticas e jogos de poder da empresa que presidia.

Na argumentação de Ghosn, a sua queda aconteceu por um “complô organizado” pela chefia da Nissan, a empresa japonesa, que estaria com medo de perder a autonomia com o avanço da francesa Renault. Em sua defesa, ele diz que não concordava com a fusão e que, não fosse pela sua presença, a Nissan estaria agora em uma posição passiva em relação à Renault.

A nata do livro, porém, é a exposição dos sistemas judiciário e carcerário japoneses. Kanae Doi, diretora do escritório japonês da ONG Human Rights Watch —a quem a esposa de Ghosn recorreu pelo executivo—, é categórica: ele teve seus direitos humanos violados enquanto esteve na prisão, “como vários outros suspeitos no sistema criminal japonês que negam a culpa do que são acusados”.

Isso porque, na prática, não há presunção de inocência no Japão, diz Doi. “Se você negar a culpa, fica sob enorme pressão”, afirma. O objetivo das prisões, portanto, seria fazer o acusado confessar.

No caso de Ghosn, essa pressão se manifestava em interrogatórios de até sete horas sem a presença de seus advogados, expediente comum no país. Não lhe eram permitidos mais do que dois banhos de 15 minutos cada um por semana, nem andar pela cela durante o dia ou dormir de bruços.

Apesar de tudo, a prisão do ex-executivo foi até curta, na visão de Doi, perto de outros casos no país. “Cem dias é muito tempo, mas é pouco se comparado ao tempo na prisão daqueles que negam as acusações”, afirma.

As ricas descrições sobre a cela e os interrogatórios são interrompidos por passagens dispensáveis como: “Certos japoneses não têm nenhum compromisso com a verdade”.

O excesso de frases de efeito também incomoda. A impressão é que, não fossem os fatos dramáticos que a história impõe, o livro seria um romance fraco sobre seu relacionamento com a mulher. O leitor também pode se cansar um pouco da disposição de Ghosn de exaltar suas qualidades como marido, pai e executivo.

Já a sua fuga para o Líbano, no dia 29 de dezembro de 2019, deveria ser ao mesmo tempo o clímax e o desfecho do livro, mas decepciona. O leitor certamente encontrará mais detalhes em reportagens divulgadas na época. Ghosn usa o espaço para negar qualquer acusação de envolvimento de seus filhos, advogados ou esposa no escape. Desde então, o ex-executivo vive em Beirute, no Líbano, e não pode sair do país por estar na lista de procurados da Interpol.

Mesmo com esses pontos baixos, o livro pode ser uma boa porta de entrada para os brasileiros que quiserem descobrir como funciona o sistema de Justiça de um lugar tão distante —geográfica e culturalmente. E talvez se animar a conhecer um pouco mais sobre as prisões de seu próprio país.

“No Japão, seus direitos humanos serão negados uma vez que você é preso. Eu gostaria que o mundo prestasse mais atenção nesse sistema”, conclue Doi.

Juntos, Sempre: Confidências sobre um ano no inferno

  • Preço R$ 59,90 (304 págs.)
  • Autoria Carlos e Carole Ghosn
  • Editora Intrínseca
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