No Quênia, empregadas domésticas mudam de vida durante a pandemia

Trabalhadoras começaram empresas graças ao projeto Inua Mama Fua em Nairóbi

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Moraa Obiria
Quênia | The Daily Nation

Julia Anyango, 31, perdeu seu trabalho como empregada doméstica quando seus patrões, estrangeiros, deixaram o Quênia e voltaram para seu país, em dezembro do ano passado.

Enfraquecida pelo repentino desemprego e sem qualquer poupança, a vida de Anyango bateu no fundo do poço. Mas sendo mãe solteira de três crianças no bairro residencial de baixa renda Kawangware, em Nairóbi, capital do Quênia, não havia tempo para se lamentar.

Ela imediatamente procurou outro emprego e logo conseguiu um de faxineira em um restaurante chinês no shopping center Yaya. Mas os negócios iam mal por causa da Covid e o dono do restaurante decidiu fechá-lo. Anyango perdeu novamente o emprego.

A empresária Julie Anyango Omoto em Kawangware, Nairóbi, no Quênia
A empreendedora Julie Anyango Omoto durante entrevista em Kawangware, Nairobi - Lucy Wanjirun - 20.mai.2021/Nation Media Group

A ideia de seus filhos irem para a cama com fome à noite a perturbava. Decidida a sustentá-los, ela resolveu abrir um negócio próprio —um salão de costura e cabeleireiro.

Havia aprendido o básico em um curso de beleza e costura que tinha feito 16 anos atrás, quando deixou a escola aos 10 anos. Sua mãe a havia inscrito no curso.

"Trabalhei no restaurante chinês durante quatro meses, e então a cada mês gastava parte do salário comprando equipamento para o salão", disse ela. "Tive de vender o secador de cabelo, o cortador elétrico e a máquina de costura que tinha comprado para levantar os 15 mil xelins quenianos (cerca de R$ 950) para fazer o depósito exigido pelo salão", lembra.

Anyango finalmente abriu seu negócio em fevereiro. Ela usa uma máquina emprestada de uma amiga para as costuras, enquanto o salão funciona principalmente fazendo tranças.

Por enquanto, os 3.000 xelins (R$ 140) que ela ganha por mês são esticados para cumprir as despesas da casa e de alimentação. Mas apesar das dificuldades para comprar tecido e novos equipamentos para o salão ela tem esperança de que as coisas melhorem com o tempo.

A resiliência de Anyango lhe valeu um lugar em uma iniciativa de recuperação pós-Covid para trabalhadoras domésticas no Quênia. Ela é uma das 60 mulheres que estão se beneficiando do projeto chamado Inua Mama Fua ('Levante a faxineira' em suahili), lançado em abril de 2020 pela organização Rede de Mulheres Dhobi, cujo trabalho visa empoderar as empregadas domésticas do país.

Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), há aproximadamente 67 milhões de trabalhadores domésticos no mundo, sendo a vasta maioria mulheres e muitas vezes trabalhando sem registro. Enquanto tentavam manter seu ganha-pão, a falta de acesso aos sistemas de proteção social as tornou especialmente vulneráveis à Covid-19.

Sob o guarda-chuva da iniciativa, essas mulheres, que vivem em bairros de baixa renda de Nairóbi, têm acesso a empréstimos de 15 mil xelins para reforçar suas empresas ou começar novas.

Para obter esses empréstimos, porém, elas precisam fazer parte de uma espécie de cooperativa bancária —um sistema de financiamento baseado em grupo em que os membros fazem depósitos semanais para formar um fundo do qual podem emprestar mais tarde—, estratégia que instala a cultura da poupança e garante que elas tenham um fluxo de capital sustentável.

Grace Ngugi, diretora-executiva da Rede de Mulheres Dhobi, diz que as mulheres receberão os empréstimos com uma taxa de juros de 2,5%, dos quais 1% é reinvestido em seus grupos e 1,5% cobre custos administrativos.

As trabalhadoras domésticas constituem uma porcentagem importante da economia informal no Quênia, na qual foram criados 767.900 novos empregos em 2019, segundo um pesquisa econômica de 2020 conduzida pelo Departamento Nacional de Estatísticas.

"As mulheres são a espinha dorsal da economia deste país. Quando elas perdem o emprego, suas famílias sofrem", disse Ngugi. O projeto Inua Mama Fua, que ganhou o prêmio Legado de Ruth Bader

Ginsburg em 2021, concedido pelo Projeto Justiça Mundial, foi elogiado como exemplar por sua luta contra a desigualdade e a discriminação baseada em gênero.

Assim como Anyango, Rose Nyangiza conseguiu dar uma volta em sua vida graças a essa iniciativa.

Com 47 anos, ela criou uma microempresa que vende mercadorias variadas, como doces e máscaras de proteção, depois de desistir de um emprego de "mama fua" que se mostrou exploratório.

"Eu trabalhava em uma loja de ferragens que fechou em abril do ano passado. Então comecei a fazer trabalhos esporádicos de faxina para ter uma renda e alimentar meus três filhos", disse ela.

Rose Nyangiza vende produtos do lado de fora da Paramount Plaza no bairro de Ngara, Nairóbi, no Quênia
Rose Nyangiza vende produtos no bairro de Ngara, Nairóbi, no Quênia - Nation Media Group

Nyangiza fazia um trabalho que valia 250 xelins, mas recebia 150 xelins ou nem era paga. "Alguns me pagavam três ou quatro dias depois, e na época [no meio da pandemia] não apareciam empregos.

Quando eu tinha sorte, trabalhava duas vezes por semana", explicou.

Ela desistiu do trabalho de "mama fua" 17 meses depois e começou a vender doces. Gastou 800 xelins para comprar três pacotes de doces. Embora lucrasse 150 xelins em cada pacote, era um negócio arriscado e cansativo. "Eu disse a mim mesma que precisava conseguir dinheiro suficiente para pagar um lugar onde eu pudesse vender", disse ela.

Com isso em mente, ela entrou para um grupo de financiamento cooperativo onde poupava 50 xelins por semana. Aí ela conseguiu um primeiro empréstimo de 1.200 xelins, que usou para comprar mais pacotes de doces e uma dúzia de máscaras.

Seu negócio desde então cresceu para um esto que de mais de 6.000 xelins, com mercad oria que inclui doces variados, biscoitos e máscaras. Agora ela os vende em sua banca aberta na rua do edifício comercial Paramount Plaza em Ngara, bairro de Nairóbi conhecido pelo mercado informal.

Traduzido por Luiz Roberto M. Gonçalves.

Esta reportagem está sendo publicada como parte do projeto "Towards Equality", uma iniciativa internacional e colaborativa que inclui 15 veículos de imprensa para apresentar os desafios e soluções para alcançar a igualdade de gênero.

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