Descrição de chapéu Folhajus mercado de trabalho

Alta nos casos de burnout alerta para exaustão no trabalho remoto

Desafio é saber quando parar, como demonstrou a ginasta Simone Biles ao abandonar provas das Olimpíadas

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São Paulo

Na última semana, enquanto os olhos do mundo estavam atentos às disputas nas Olimpíadas em Tóquio, a ginasta norte-americana Simone Biles fez o improvável. Apesar da elevada qualidade técnica, do histórico de quatro ouros olímpicos e do favoritismo de voltar ao pódio em primeiro lugar, ela desistiu de participar de provas no meio da competição.

Fisicamente, disse depois, estava bem. Emocionalmente, nem tanto. “Preciso me concentrar no meu bem-estar, há vida além da ginástica”, disse numa entrevista em que explicava a decisão.

Simone Biles trouxe os holofotes para um debate que ganha espaço crescente nas empresas. Nunca foi fácil para ninguém identificar os limites de sua saúde psicológica e ter a coragem de parar, ainda mais quando se está a pleno vapor ou no topo da carreira.

No trabalho remoto durante a pandemia, ficou mais difícil ainda. São inúmeros os relatos de sobrecarga —e a perspectiva de que a volta aos escritórios não será plena, mas híbrida, elevou a preocupação dos especialistas com o tema.

Segundo o psiquiatra Wagner Gattaz, diretor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, houve aumento de até três vezes nos quadros de ansiedade e depressão. No caso do burnout, como é chamado o esgotamento relacionado ao trabalho, a alta foi de 21% nos diagnósticos em relação à média no pré-pandemia.

Direito à desconexão e burnout
Limites entre o trabalho e a vida doméstica estão dissolvidos no home office - Catarina Pignato

A síndrome de burnout foi reconhecida formalmente como uma doença, com a inclusão na CID (Classificação Internacional de Doenças), em 2019, mas a literatura médica já descrevia seus sintomas e riscos desde o século 19.

“O burnout simula um quadro depressivo, mas é restrito ao trabalho. A pessoa tem a sensação de baterias descarregadas em tudo o que envolve a atividade”, diz o psiquiatra, que é também presidente da Gattaz Healthy&Results.

O risco para o desenvolvimento de transtornos como o burnout aumenta a partir de questões ambientais, como o clima e relações de trabalho, o sistema hierárquico e o quão eficaz é a comunicação interna, e também por traços comportamentais, como alta competitividade, ambição e perfeccionismo.

A pandemia acrescentou um ingrediente nessa dinâmica. O privilégio de trabalhar em casa permite viver sob risco menor de contaminação pela Covid-19. Quem está nessa situação, porém, relata a sensação de dissolução dos limites entre a vida social e a vida profissional.

É verdade que essa extensão da rotina de trabalho não foi inaugurada pela pandemia, mas os indícios são de que a crise sanitária agravou disfuncionalidades para patrões e empregados.

Cristiane, 48, executiva do setor financeiro, que prefere não ser identificada pelo nome verdadeiro, descreve bem a angústia criada pelo escritório doméstico. Não consegue desligar. Conta que os filhos pediram muito, e ela prometeu: domingo seria o dia seria deles, com cinema na sala de casa, pipoca e descanso. Nada de celular, nada de computador.

De olho nos sintomas de esgotamento

Lembre-se que somente um médico pode fazer diagnóstico

  • Comportamento no trabalho

    Irritabilidade, falta de paciência e dores de cabeça que aparecem apenas durante o trabalho

  • Sensação de baterias descarregadas

    Falta de energia, cansaço e dificuldade de concentração; insônia e sono durante o expediente

  • Dores no peito, palpitação e taquicardia

    Taquicardia pode ter diversas origens; uma vez descartados problemas cardíacos, a origem pode ser emocional

“Quando me dei conta, estava indo ao banheiro a toda hora para ver, no celular, se tinha entrado alguma coisa, se alguém precisava de resposta”, afirma.

A rotina sem limites está cobrando caro. “Parece que estou sempre com taquicardia. Estou tomando medicamento [para ansiedade], já aumentei duas vezes a dose e o médico não quer mudar de novo, pois está muito alta. Tenho medo de ficar inativa pelo remédio e tomo um monte de café, que me ataca a gastrite. É um ciclo muito louco.”

​Para piorar, ela diz que, trabalhando em casa, sente maior necessidade de “mostrar serviço”. Longe dos olhos do superior, ela diz sentir muito mais a pressão por resultados e por se mostrar ativa e disponível.

“Fico triste porque sei o que está acontecendo, mas eu tenho dificuldade de mudar. Acho que, até ano passado, quando todo mundo foi fazendo o que dava, era mais admissível errar e não aguentar. Agora passou”, afirma.

A rotina desgastante se estabeleceu. “Eu sou cobrada e cobro meus subordinados. Encaminho um email no domingo e, pela resposta, sei que meu superior também está trabalhando.”

O trabalho de alta demanda, aquele em que há muita pressão e cobranças é apenas um dos riscos para transtornos mentais, explicam os especialistas. Pesam também comunicação insuficiente, que passa por ordens e pedidos incompletos até a falta de feedbacks, e a adoção de comportamentos que estimulam a falta de limites na distribuição do tempo.

Ainda entre os riscos para o esgotamento está a comunicação insuficiente, que passa por ordens e pedidos incompletos até a falta de feedbacks, e a adoção de comportamentos que estimulam a falta de limites na distribuição do tempo.

Como a rotina do trabalho é uma roda viva, a maioria demora para entender que esgarçou seus próprios limites emocionais. Hoje, o bancário Vitor Hugo, 51, que também prefere não ser identificado, diz não ter dúvidas de que a origem de seu quadro ansioso é o trabalho. No entanto, quando os primeiros sinais apareceram, ele achou que o problema era físico, talvez uma cardiopatia.

Chegou a ficar internado para uma bateria de exames e monitoramentos. Levou um tempo até que o diagnóstico de ansiedade, depressão e burnout chegassem.

Olhando para trás, ele identifica que a chegada de um novo gestor, a pressão constante por resultados, as cobranças e o constrangimento diante de outros colegas compõem o roteiro que acabou resultando em seu afastamento.

“Sentia que estava sempre na berlinda. Era muita pressão, muita cobrança para vender, vender, vender. Nunca me importei de trabalhar das 8h às 20h, se precisasse, mas aquele nível de pressão era insuportável”, diz ele, que preferiu ser identificado por outro nome, por medo da exposição.

“Na noite anterior eu já estava preocupado. Acordava com dificuldade de levantar para sair, sentia sono. Ia trabalhar e umas horas depois começava [a ter sintomas]. Primeiro, é leve, depois vai piorando. Dor nas pernas, dor no corpo, falta de ar. A gente só se dá conta quando está no fundo do poço”, conta.


No momento, Vitor Hugo segue afastado do trabalho e tem o acompanhamento de três médicos de diferentes especialidades. Viver sob a pandemia, diz ele, não causou seu quadro ansioso, mas trouxe um elemento a mais de preocupação.

"Sabia que o banco vinha fazendo demissões e comecei a ficar desesperado para voltar. Fiquei ainda mais deprimido em casa."

Apesar da conexão com o trabalho, nem sempre o benefício previdenciário concedido pelo INSS aos profissionais que recolhem para o RGPS (Regime Geral de Previdência Social) é do tipo acidentário, termo técnico para o afastamento por doença ou acidente de trabalho.

Questionado, o Ministério da Economia informou apenas que, de janeiro a junho de 2021, foram concedidos 270 auxílios em decorrência da síndrome de burnout. No ano passado, no mesmo período, foram 302. A pasta não detalhou o enquadramento dessas concessões.

Do lado das empresas, advogados dizem que a pandemia acabou atrasando a discussão do direito à desconexão, vista como essencial para garantir uma relação mais saudável com o trabalho. O termo usado em ações trabalhistas e protocolos internos de empresa é autoexplicativo. Trata-se de garantir ao funcionário o encerramento da jornada de trabalho.

Os precedentes na Justiça do Trabalho pendem para o trabalhador. Ligações e mensagens em horários impróprios, metas abusivas e jornadas extensas foram consideradas justificativas para condenações em ações individuais e coletivas.

Em 2020, uma costureira conseguiu no TST (Tribunal Superior do Trabalho) a confirmação de sentença que reconheceu o dano moral por esgotamento. A trabalhadora comprovou viver um quadro de cansaço constante, distúrbios do sono, irritabilidade, dores musculares e de cabeça, falta de apetite e alterações de humor.

A advogada Letícia Ribeiro, sócia trabalhista do Trench Rossi Watanabe, diz que as empresas precisam criar regras para o uso de ferramentas de comunicação como o WhatsApp. “Até para mitigar o risco [de judicialização], não só em relação ao trabalho extraordinário, mas também para casos de assédio."

Letícia diz que são muitos os precedentes que aceitam mensagens de texto como prova, seja para comparar o trabalho fora da jornada habitual, seja para reconhecer a existência do sobreaviso. Nesses casos, considera-se que o funcionário, mesmo de folga, está à disposição da empresa e pode ser acionado. Por essa disponibilidade, o trabalhador precisa receber um terço de sua remuneração por hora.

A recomendação da advogada é que as empresas se antecipem, definindo condutas para o uso de aplicativos de mensagem, para reuniões e cumprimento de jornada, nos escritórios ou em casa.

Luiz Afrânio Araújo, sócio da área trabalhista do Veirano, diz que a aplicação do direito à desconexão passa pelo resguardo do tempo para descanso e para lazer. “Estamos todos o tempo todo com o celular na mão e de olho no grupo [de mensagens] do trabalho”, diz.

A psicanalista Vera Iaconelli diz que a desistência da ginasta americana em Tóquio aponta uma resposta para as angústias que permeias toda essa discussão.

"Sair de situações insalubres —no trabalho, no casamento, na vida social— pode ser a marca não do adoecimento, mas da coragem de bancar o seu desejo e bem-estar à revelia das expectativas alheias."

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