Aliados e inimigos ajudam Rússia a driblar sanções da guerra

Russos se adaptam aos efeitos da punição do Ocidente a Putin, que estão em todo lugar

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São Paulo

O apocalipse econômico previsto pelo Ocidente para a Rússia como punição por ter invadido a Ucrânia em 24 de fevereiro ainda não se materializou, cortesia de manobras do governo de Vladimir Putin e da mãozinha importadora de aliados e adversários

Seus sinais, contudo, permeiam cotidiano dos russos, e analistas afirmam que o pior ainda pode estar por vir com a ameaça de uma grande recessão.

Moscovita passa em frente a loja fechada da marca francesa Dior, no centro da capital
Moscovita passa em frente a loja fechada da marca francesa Dior, no centro da capital - Natalia Kolesnikova - 8.jun.2022/AFP

Segundo o Fundo Monetário Internacional, ela está garantida para 2022, com um crescimento negativo de 8,5% do PIB (Produto Interno Bruto). É uma queda e tanto, depois de um 2021 em que o país se recuperou da recessão mais leve no ano de estreia da pandemia, quando a economia contraiu 2,2%.

Segundo o Goldman Sachs, a queda pode chegar a 15% ou até 30%, o que o Banco Central russo considera um exagero. O Índice de Condições Financeiras da instituição americana, que faz uma cesta com condições de empréstimos, taxa de câmbio e Bolsas, mostra a Rússia em situação bem mais apertada que o resto do mundo.

Isso projeta um ambiente ainda mais negativo para o segundo semestre, ainda mais com o risco global de queda associado a outros fatores, mas não muda o fato de que até aqui as sanções lideradas pelos Estados Unidos de Joe Biden não colocaram os russos de joelhos —e, como a ofensiva no leste e sul da Ucrânia prova, nem tampouco impediu uma bomba de cair no vizinho.

O sucesso parcial de Putin, que se reflete na aprovação recorde de 83% de seu governo segundo o instituto independente Centro Levada, tem fatores estabelecidos. O principal é o vigor de suas exportações de hidrocarbonetos —o barril de petróleo está acima dos US$ 110, ante US$ 81 da véspera do conflito.

A União Europeia só chegou a um consenso sobre restringir a compra de petróleo da Rússia no dia 30 de maio, e ainda assim de forma parcial. Já a importação de gás natural russo, esteio das maiores economias do continente, segue inalterada.

Com isso, nas contas do órgão executivo do bloco, a Comissão Europeia, as compras de energia deverão cair de € 1 bilhão (R$ 5,4 bilhões) para € 760 milhões (R$ 4,1 bilhões) diários. Ainda é bastante dinheiro para Putin girar sua economia e o esforço da guerra no vizinho, ainda que com críticas pontuais.

Os EUA, que cortaram a compra de gás e petróleo russos, não significavam muito para o balanço de Moscou. As aliadas China e Índia, que não condenaram a invasão, vão na mão contrária.

Aproveitando descontos feitos pela Rosneft, a Petrobras russa, Nova Déli comprou do começo da guerra até 26 de maio US$ 3,4 bilhões (R$ 17,5 bilhões) em petróleo cru russo do tipo Urais. Em todo o ano passado, foram US$ 2,1 bilhões (R$ 10,8 bilhões). O governo indiano começou uma negociação para garantir mais seis meses de fornecimento do produto.

Já os chineses, cujo líder Xi Jinping já foi admoestado por Biden a não ajudar Moscou, compraram 56% a mais dos russos em abril, comparado ao mesmo mês em 2021: US$ 8,9 bilhões (R$ 45,8 bilhões), estimados 70% dos quais em energia.

Pequim já era o maior mercado para commodities energéticas russas antes da guerra: 21% de tudo o que Moscou vendia ia para lá. Ao todo, cerca de 54% desse fluxo prévio hoje segue livre de sanções.

"Não tínhamos uma economia fechada —ou melhor, tínhamos nos tempos soviéticos, quando nos isolamos do mundo, criamos a chamada Cortina de Ferro, criamos com nossas próprias mãos. Não cometeremos o mesmo erro novamente", prometeu Putin a empresários no Fórum Econômico de São Petersburgo, na semana retrasada.

Olhando para trás, ele não está de todo errado: a exposição russa ao mundo era maior que a brasileira. Em 2020, o país importou o equivalente a 20,6% de seu PIB, segundo o Banco Mundial, enquanto o Brasil marcou 15,5%, uma das piores taxas globais.

Resta saber o que fazer à frente com a barreira levantada pelo mundo, hoje somando 7.845 sanções desde a invasão, segundo a plataforma de dados americana Castellum.AI.

Essa conjuntura se soma a um receituário de manobras que inclui instrumentos ortodoxos, como a subida dos juros de 9% em fevereiro para 20%, caindo para 10% no dia 10 passado, e outros nem tanto, como a obrigatoriedade do uso do rublo para a compra de hidrocarbonetos.

Isso ajudou a moeda russa a se estabilizar, depois de cair mais de 30%, e até registrar apreciação ante o pré-guerra. A inflação deu um salto, dobrando para quase 18% em abril, mas está estável. "Desde o meio de maio, estamos com inflação zero", disse Putin.

"Além da falta de alguns produtos ocidentais, o que mais sentimos é o aumento de preço de comida", afirmou a hematologista Liubov, que pede reserva de seu sobrenome. A situação é ainda mais séria em regiões distantes, como Khabarovsk, onde a alimentação subiu em média 30% desde fevereiro.

É nos supermercados que alguns sinais da crise se mostram para os moscovitas. Na rede Daily, popular na capital, uma mudança chamou a atenção de consumidores no último mês. As prateleiras de sucos começaram a ver rarear embalagens multicoloridas em detrimento de cada vez mais brancas caixas cartonadas.

Em alguns casos, como em caixinhas para o fermentado kefir, elas ficaram totalmente descoloridas. Motivo? A falta de tinta importada para pigmentar as embalagens. Outros problemas vêm da saída de fabricantes ocidentais do país, 750 empresas até aqui.

Já na seção de refrigerantes dos mercados, chamam a atenção as marcas russas que imitam ocidentais, como a Cool Cola (Coca/Pepsi) da fabricante Otchakovo, antes especializada em bebidas típicas como o fermentado kvass. Nas ruas, a saída do McDonald's do país deu lugar a uma rede híbrida, que mantém parte de seu cardápio, a Gostoso e Ponto.

Rumando ao quarto mês da guerra, Putin parece crer que esse rearranjo doméstico se segure até que o Ocidente canse da guerra, como Kiev mesmo diz temer. O impacto das sanções em seus executores é duro, com inflação recorde nos EUA, Reino Unido e alguns países europeus, dados os preços de energia e alimentos majorados.

Nessa corrida contra o tempo, o russo tem levado a melhor, mas o prolongamento da guerra abre uma grande interrogação sobre a resistência de sua aposta.

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