Descrição de chapéu The New York Times

El Salvador adotou bitcoin como moeda nacional, mas país está ficando sem dinheiro

Uso do bitcoin despencou entre a população e participações do governo perderam cerca de 60% de seu valor presumido

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Anatoly Kurmanaev Bryan Avelar
Nova York | The New York Times

O bitcoin deveria transformar a economia de El Salvador, projetando o pobre país centro-americano como um improvável arauto de uma revolução financeira. Mas quase um ano depois que seu presidente, Nayib Bukele, chocou o mundo financeiro ao transformar sua moeda digital mais popular em moeda nacional, a aposta parece ter falhado, destacando a distância entre as promessas utópicas dos defensores da criptomoeda e as realidades econômicas.

As participações do governo salvadorenho em bitcoin perderam cerca de 60% de seu valor presumido durante a recente queda do mercado. O uso do bitcoin entre a população despencou, e o país está ficando sem dinheiro depois que Bukele não conseguiu atrair novos fundos de investidores em criptomoedas.

Ainda assim, os contratempos financeiros não chegaram a prejudicar a popularidade de Bukele. Pesquisas mostram que mais de oito em cada dez salvadorenhos continuam apoiando o presidente, em parte graças à sua ampla repressão aos bandos criminosos e aos subsídios aos combustíveis que atenuaram o peso da inflação global.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, em evento em junho para marcar seu terceiro ano no cargo - Jose Cabezas - 1°jun.2022/Reuters

Mas o fracasso dos objetivos declarados por Bukele para o bitcoin –trazer investimentos para o país e serviços financeiros para os pobres– expôs as deficiências de seu estilo de governo autoritário, focado na imagem, segundo os críticos. Também levantou perguntas sobre a sustentabilidade financeira de seu ambicioso plano de modernizar El Salvador em detrimento da governança democrática.

No ano passado, o governo alocou o equivalente a 15% de seu orçamento anual de investimentos para tentar inserir o bitcoin na economia nacional.

Oferecia US$ 30, quase 1% do que um salvadorenho médio ganha em um ano, para cada cidadão que baixasse um aplicativo de pagamentos em criptomoedas apoiado pelo governo, chamado Chivo Wallet; "chivo" significa "legal, bacana" na gíria local.

Bukele afirma que quase 3 milhões de salvadorenhos, ou 60% dos adultos, atenderam ao chamado.
No entanto, após a aceitação inicial, o uso de criptomoedas despencou. Apenas 10% dos usuários do Chivo continuaram fazendo transações em bitcoin no aplicativo depois de gastar seu prêmio de US$ 30, segundo pesquisa realizada por três economistas dos Estados Unidos em fevereiro e publicada pelo Escritório Nacional de Pesquisa Econômica. Quase nenhum novo cliente baixou o aplicativo este ano, descobriram os pesquisadores.

"O governo deu a esse projeto todo o apoio que se poderia esperar, e ainda assim fracassou", disse Fernando Alvarez, economista da Universidade de Chicago e autor do estudo.

Outra pesquisa, da Câmara de Comércio de El Salvador, concluiu em março que apenas 14% das empresas do país fizeram transações em bitcoin desde que a moeda foi adotada em setembro, e só 3% disseram que viam algum valor comercial nela.

Os salvadorenhos nos Estados Unidos também ignoraram o apelo de Bukele para usar bitcoins para enviar dinheiro para parentes no país natal. Aplicativos de pagamento em moeda digital, como o Chivo, responderam por menos de 2% das remessas nos primeiros cinco meses deste ano, segundo o banco central de El Salvador.

A promoção do bitcoin por Bukele sofreu mais um golpe com a liquidação global de criptomoedas que eliminou centenas de bilhões de dólares do valor dos ativos digitais desde março.

"As pessoas estão com medo de perder seu dinheiro", disse Edgardo Villalobos, que coordena vendedores em um amplo mercado de rua no centro de San Salvador, a capital. Após o recente colapso dos preços, ele disse que o prêmio de US$ 30 pelo download do aplicativo Chivo está valendo US$ 10.

Um jovem levanta sua camisa para inspeção por um soldado que verifica tatuagens de gangues em San Salvador, El Salvador - Daniele Volpe - 15.abr.2022/The New York Times

Ainda assim, apesar da desaceleração, os entusiastas e empresários do bitcoin argumentam que a introdução da moeda transformou a imagem de El Salvador na de um pioneiro tecnológico e criou oportunidades financeiras para seus cidadãos fora dos sistemas bancários convencionais.

"Na medida em que buscamos liberdade financeira, continuamos no caminho certo", disse Eric Gravengaard, CEO da Athena Bitcoin, empresa de criptomoedas sediada nos EUA que opera a rede de caixas eletrônicos de criptomoedas de El Salvador e processa transações em bitcoin para as maiores redes varejistas do país.

Críticos dizem que o bitcoin também falhou em trazer a prometida onda de empreendedores de criptomoedas ao país.

Apenas 48 novas empresas focadas em bitcoin se registraram em El Salvador desde a introdução da criptomoeda, segundo o banco central. Isso representa menos de 2% de todas as empresas que abriram em 2019. Quase todas são startups que contratam poucos funcionários locais e trazem pouco investimento, disse Leonor Selva, diretora executiva da Associação Nacional de Empresas Privadas de El Salvador.

O colapso dos preços também não diminuiu o entusiasmo de Bukele pelo bitcoin, o que lhe rendeu prestígio na comunidade global de criptomoedas.

Em uma série de postagens no Twitter no ano passado, Bukele anunciou que tinha comprado quase 2.400 tokens de bitcoins desde setembro, em negócios avaliados em cerca de US$ 100 milhões. Quando os críticos o acusaram de irresponsabilidade financeira, ele respondeu dizendo que realiza transações em seu telefone enquanto está nu.

"Bitcoin é o futuro!", disse ele em um post no Twitter em 30 de junho, depois de anunciar sua mais recente compra em meio a uma contínua liquidação de criptomoedas. "Obrigado por venderem barato."
Não está claro onde os ativos em bitcoin são mantidos, quanto valem, como foram pagos ou mesmo quem detém os códigos que comprovam sua propriedade.

A assessoria de imprensa de Bukele, seu ministro da Fazenda, José Alejandro Zelaya, e seu consultor de bitcoin, Samson Mow, não responderam a pedidos de comentários.

Até agora, os negócios de Bukele custaram ao país cerca de US$ 63 milhões em desvalorização, de acordo com estimativas da semana passada na revista Disruptive, publicada pela Universidade Francisco Gavidia em San Salvador.

As perdas estão aumentando à medida que o governo se esforça para subsidiar os custos crescentes das importações de alimentos e combustíveis e saldar o próximo pagamento da dívida.

Salientando os desafios de financiamento, Bukele no ano passado cortou as verbas para governos municipais, forçando alguns prefeitos a reduzir serviços públicos como bolsas de estudo e infraestrutura de água.

"O problema do bitcoin é que ninguém está ganhando nada", disse Carlos Acevedo, economista salvadorenho e ex-diretor do banco central. "É um investimento que não traz benefícios sociais."

O colapso dos preços das criptomoedas já descarrilou um dos principais pilares do experimento financeiro de Bukele: a emissão do primeiro título de governo lastreado em bitcoin no mundo.

O título teria permitido a Bukele contornar instituições financeiras tradicionais, como o Fundo Monetário Internacional, que condicionou novos fundos ao país à disciplina financeira.

Depois de anunciar um título de US$ 1 bilhão denominado em bitcoin, o governo adiou o projeto indefinidamente no último minuto, em março, alegando que a Guerra da Ucrânia havia agravado as condições financeiras globais.

Economistas dizem que isso deixou o país com poucas boas opções para fazer um pagamento de US$ 800 milhões de sua dívida com vencimento em janeiro, ou pagamentos subsequentes em anos posteriores.

Com o tempo, Bukele enfrentará a difícil escolha de cortar drasticamente os gastos públicos, com o risco de irritar os eleitores, ou levar o país à moratória. Um calote poderia perturbar importações básicas, reduzir o crescimento e até causar uma corrida aos bancos.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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