Faxineira deixa de gastar com supérfluo e compra casa de R$ 350 mil

É preciso separar o que é desejo do que é necessidade para controlar as finanças, dizem especialistas

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São Paulo

Há três anos, Acidália Jesus da Rocha, 41 anos, recebeu um ultimato do marido: ou parava de gastar sem pensar ou eles iriam se separar. Econômico, o gesseiro Leandro de Oliveira Ramos, 38, assumia a maior parte das contas da casa própria de três cômodos, na zona norte de São Paulo. Já tinha conseguido comprar um carro e até um sobrado na sua cidade natal, Paramirim (BA). Mas eles ainda viviam na favela.

"Eu era muito gastona", reconhece Cida, como é chamada. "Gostava de comprar coisas para casa, para mim e para as crianças. Roupa para eles tinha que ser de marca boa", afirma a diarista, mãe de dois filhos, hoje com 10 e 3 anos, e contava com quatro cartões de crédito àquela época. Mas ela se incomodou com a pressão feita pelo marido e decidiu que era hora de mudar.

Cida procurou um psicólogo, bancado pelo convênio médico. A partir das sessões de terapia, ficou quatro meses pagando tudo à vista. Hoje, concentra os pagamentos dos clientes em no máximo duas vezes por mês. Os pagamentos acontecem próximos às datas de vencimento dos dois cartões de crédito que manteve –cujo limite é inferior ao seu ganho mensal, na casa dos R$ 6 mil.

Deixou de comprar roupa "em loja cara" e hoje vai ao Brás, bairro de comércio popular na zona leste de São Paulo. Divide todas as contas de casa com o marido, que ganha em torno de R$ 7 mil.

"Hoje consigo olhar as coisas e me controlar", diz ela. "O Leandro me ensinou a guardar dinheiro para o que realmente importa, a gente conseguiu comprar uma casa nova."

Casal branco, de pé, próximo a duas crianças sentadas no chão sobre um tapete felpudo, diante de uma TV.
Acidália Jesus da Rocha, 41, com o marido, Leandro de Oliveira Ramos, 38, e os filhos na nova casa na zona norte de São Paulo. - Zanone Fraissat/Folhapress

Há dois anos, a família saiu da Favela do Jaraguá, zona norte de São Paulo, e se mudou com a família para uma casa própria de 100 m² no Jardim Santa Lucrécia, na mesma região. Pagaram R$ 350 mil pela casa, a maior parte em um financiamento curto, de apenas cinco anos, com parcelas mensais de R$ 4 mil.

"Financiamos em pouco tempo porque a gente tem medo dele ficar desempregado de uma hora para outra", diz ela sobre Leandro, contratado em regime CLT. "Já tive carteira assinada. Mas nunca conseguiria ter o que tenho hoje trabalhando em empresa, que paga pouco. Preferi trabalhar por conta", diz Cida.

A vida dela como diarista, porém, se tornou ainda mais puxada: faz faxinas de segunda a segunda, com apenas dois domingos de folga por mês. O marido trabalha de segunda a sexta, mas faz bicos aos sábados. "Tem dinheiro de faxina que já cai direto em uma conta separada, que serve de poupança", afirma.

"Túnel da escassez" faz com que as pessoas não vejam saída, diz psicóloga

Para Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia social pela PUC-SP e especialista em psicologia econômica, exemplos como o de Cida mostram que as pessoas precisam separar o que é desejo do que é necessidade –no caso da diarista e do marido, eles decidiram que a necessidade era uma casa própria fora da favela.

"A saúde financeira de uma pessoa depende da distinção que ela faz entre o que ela precisa e o que ela deseja", diz Vera. "O desejo é uma sensação de falta, de incompletude, é inconsciente e nunca vai ser plenamente satisfeito."

É neste momento que a publicidade testa o seu poder, afirma a especialista. "Vem uma propaganda e me diz: ‘Você não sabe o que deseja? Eu sei, essa TV de 1 trilhão de polegadas’. Eu compro, achando que vou me sentir plena. Mas daqui a pouco quero outra coisa", diz ela, que preside o Iarep (International Association for Research in Economic Psychology) e está à frente da consultoria Vértice Psi.

Diante do endividamento crescente da população –que atingiu o recorde em junho, com 78% das famílias endividadas, segundo pesquisa da CNC (Confederação Nacional do Comércio)–, a especialista destaca um comportamento chamado em psicologia econômica de "túnel da escassez": submetidas a situações intensas de falta de dinheiro, as pessoas pensam apenas no que não têm o no quanto sofrem por conta disso.

"O tempo inteiro elas fazem contas do que pode entrar na lista de compras e do que não pode. Ficam atormentadas e exaustas em ter que fazer o dinheiro espichar, o que demanda muito da capacidade cognitiva e emocional", diz Vera.

"Isso faz com que elas tomem decisões equivocadas sempre que sobra algum dinheiro na conta ou tem algum crédito disponível", diz ela. "Vão gastando mais do que ganham e acabam fugindo de encarar a realidade, deixando de consultar extratos ou fatura do cartão. Mas eu não chamo isso de fobia financeira."

A fobia é um pavor, um medo irracional, sem respaldo na realidade, que a pessoa sente em ocasiões específicas, explica a especialista, dando como exemplo a aerofobia (medo de viajar de avião) e a cinofobia (medo de cachorros).

Para ela, "fobia financeira" até existe, mas é exceção.

O próprio psicólogo britânico Brendan Burchell, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Cambridge, que deu origem à expressão no início dos anos 2000 a partir de estudos no Reino Unido, concorda. "As principais causas para o endividamento da população não estão na aversão às finanças pessoais", disse ele à Folha.

"Mas sim na pobreza, na publicidade, na cultura de consumo, na desigualdade e –principalmente– nas maneiras com as quais os bancos comercializam produtos de dívida, como cartões de crédito, que incentivam as pessoas a se endividarem."

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