Bilionário fundador da Patagonia doa empresa e fortuna 'para salvar o clima'

Yvon Chouinard abriu mão da propriedade da empresa que fundou há 49 anos

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David Gelles
Nova York | The New York Times

Meio século depois de fundar a Patagonia, fabricante de roupas para esportes de aventura, Yvon Chouinard, o excêntrico alpinista que se tornou um bilionário relutante e desenvolveu uma atitude nada comum com relação ao capitalismo, decidiu doar a empresa.

Em lugar de vendê-la ou de abrir seu capital, Chouinard, sua mulher e os dois filhos adultos do casal transferiram sua propriedade da Patagonia, avaliada em cerca de US$ 3 bilhões (R$ 15,5 bilhões), a um fundo especialmente projetado e a uma organização sem fins lucrativos. As duas organizações foram criadas para preservar a independência da empresa e garantir que todos os seus lucros —cerca de US$ 100 milhões (R$ 517,6 milhões) ao ano— sejam usados para combater a mudança climática e proteger terras inexploradas em todo planeta.

A decisão incomum surge em um momento de crescente escrutínio, para os bilionários e as grandes empresas, que falam retoricamente sobre tornar o mundo melhor mas muitas vezes agravam os problemas que dizem querer resolver.

Yvon Chouinard, 83, fundador da fabricante de roupas para atividades ao ar livre Patagonia, em Wilson, EUA - Natalie Behring - 12.ago.2022/The New York Times

Ao mesmo tempo, a renúncia de Chouinard à fortuna familiar se enquadra à atitude permanente dele de desrespeito às normas empresariais, e ao seu amor vitalício pelo meio ambiente.

"Esperamos que isto influencie uma nova forma de capitalismo cujo resultado final não seja criar alguns poucos ricos e um monte de pobres", disse Chouinard, 83, em uma entrevista exclusiva. "Vamos dar o máximo de dinheiro às pessoas que estão trabalhando ativamente para salvar o planeta".

A Patagonia continuará a operar como uma companhia privada com fins lucrativos, sediada em Ventura, Califórnia, e com vendas anuais de mais de US$ 1 bilhão (R$ 5,1 bilhões) em jaquetas, chapéus e calças de esqui. Mas os Chouinard, que controlavam a Patagonia até o mês passado, não são mais proprietários da empresa.

Em agosto, a família transferiu irrevogavelmente todas as ações com direito a voto da empresa, equivalentes a 2% do total das ações em circulação, para uma entidade recém-estabelecida, o Patagonia Purpose Trust.

O fundo, que será supervisionado por membros da família e seus conselheiros mais próximos, tem o objetivo de assegurar que a Patagonia cumpra seu compromisso de administrar um negócio socialmente responsável, e de doar seus lucros. Porque os Chouinard doaram suas ações a um fundo, a família pagará cerca de US$ 17,5 milhões (R$ 90,5 milhões) em impostos sobre a transação.

Em seguida, os Chouinard doaram os 98% restantes da Patagonia, as ações ordinárias da empresa, a uma organização sem fins lucrativos recentemente estabelecida, o Holdfast Collective, que agora receberá todos os lucros da empresa e usará esse dinheiro para combater a mudança do clima. Porque o Holdfast Collective foi organizado como uma entidade 501(c)(4), o que lhe permite fazer contribuições políticas ilimitadas, a família não recebeu nenhum benefício fiscal por sua doação.

"Houve um custo significativo para eles, mas foi um custo que eles estavam dispostos a bancar para garantir que empresa se mantivesse fiel a seus princípios", disse Dan Mosley, sócio do BDT & Co., um banco de investimento que trabalha com pessoas de altíssimo patrimônio, entre as quais Warren Buffett, e ajudou a Patagonia a projetar a nova estrutura. "E eles tampouco se beneficiaram de uma dedução por sua doação para fins de caridade. Não há benefício fiscal algum na operação".

Barre Seid, doador de fundos para o Partido Republicano, é o único outro exemplo em memória recente de um empresário rico que decidiu doar sua empresa em benefício de causas filantrópicas e políticas. Mas Seid adotou uma abordagem diferente ao doar 100% de sua empresa de eletrônicos a uma organização sem fins lucrativos, e desfrutou de enormes benefícios em termos de impostos pessoais ao doar US$ 1,6 bilhão (R$ 8,2 bilhões) para financiar causas conservadoras, entre as quais esforços para bloquear a ação contra a mudança do clima.

Ao doar a maior parte de seus ativos em vida, os Chouinard —Yvon, sua mulher Malinda, e os dois filhos do casal, Fletcher e Claire, ambos na casa dos 40 anos– se estabeleceram como uma das famílias mais caridosas dos Estados Unidos.

A Patagonia já doou US$ 50 milhões (R$ 258,8 milhões) ao Holdfast Collective e espera contribuir com mais US$ 100 milhões (R$ 517,6 milhões) este ano, tornando a nova organização um dos principais agentes da filantropia climática.

Mosley disse que a história era diferente de qualquer outra que ele tenha visto em sua carreira. "Em meus mais de 30 anos de planejamento patrimonial, o que a família Chouinard fez é realmente notável", disse ele. "A decisão é irrevogável. Eles não podem retomar o controle da empresa, e não querem fazê-lo".

Para Chouinard, foi uma decisão ainda mais simples do que isso, e ofereceu uma solução satisfatória para a questão do planejamento de sucessão.

"Eu não sabia o que fazer com a empresa porque nunca quis uma empresa", disse ele, de sua casa em Jackson, Wyoming. "Eu não queria ser um homem de negócios. Agora, se eu morrer amanhã, a empresa vai continuar fazendo a coisa certa pelos próximos 50 anos, e eu não tenho que estar por perto. Isso pode realmente funcionar"'.

De certa forma, a doação do controle da confiscação da Patagonia não surpreende muito, vinda de Chouinard.

Quando era um alpinista pioneiro no vale de Yosemite, Califórnia, na década de 1960, Chouinard morava em seu carro e se alimentava com latas danificadas de comida para gatos, que comprava por cinco centavos de dólar.

Ainda hoje, ele veste roupas velhas, dirige um Subaru escangalhado e divide seu tempo entre casas modestas em Ventura e Jackson. Chouinard não tem um computador e nem um telefone celular.

A Patagonia, que ele fundou em 1973, tornou-se uma empresa que refletia as prioridades idealistas de seu proprietário e da mulher dele. A empresa esteve entre a primeiras a aderir a uma série de tendências, do uso do algodão orgânico à criação de creches no local de trabalho para seu pessoal, e, em um momento famoso, desencorajou os consumidores de comprar seus produtos, publicando um anúncio de Black Friday no The New York Times com a assinatura "não compre essa jaqueta".

A empresa vem fazendo doações equivalentes a 1% de seu faturamento há décadas, principalmente a ativistas ambientais de base. E nos últimos anos, a Patagonia se tornou mais ativa politicamente, e chegou a processar o governo Trump em uma tentativa de proteger o Bears Ears National Monument.

No entanto, com o crescimento das vendas da Patagonia, o patrimônio líquido pessoal de Chouinard continuou a subir, criando um enigma desconfortável para um outsider que abomina a riqueza excessiva.

"Eu entrei para a lista dos bilionários da revista Forbes, e isso me irritou, muito. Muito", ele disse. "Não tenho US$ 1 bilhão no banco. Não dirijo um Lexus".

O ranking da Forbes, e depois a pandemia da Covid-19, ajudaram a colocar em marcha um processo que se desenvolveria nos últimos dois anos, e que por fim levou os Chouinard a doar sua empresa.

Na metade de 2020, Chouinard começou a dizer a seus conselheiros mais próximos, entre os quais Ryan Gellert, presidente-executivo da empresa, que, se eles não conseguissem encontrar uma boa alternativa, estava preparado para vender a companhia.

"Um dia ele me disse: 'Ryan, eu juro por Deus, se vocês não começarem a se mexer quanto a isso, vou pegar a lista de bilionários da revista Fortune e começar a ligar para as pessoas oferecendo a empresa", disse Gellert. "Naquele momento, percebemos que ele estava falando sério".

A solução ideal

Agora que o futuro está claro quanto ao controle da Patagonia, a empresa terá de descobrir como realizar suas ambições de administrar uma corporação lucrativa e ao mesmo tempo lutar contra a mudança no clima.

Alguns especialistas acautelam que, sem participação financeira da família Chouinard na Patagonia, a empresa e as entidades relacionadas poderiam perder seu foco. Enquanto os filhos dos Chouinard continuarem na folha de pagamento da Patagonia e seus pais tiverem dinheiro suficiente para viver confortavelmente, a empresa não distribuirá mais nenhum lucro para a família.

"O que faz do capitalismo um sucesso tão grande é que existe motivação para o sucesso", disse Ted Clark, diretor executivo do Centro para Empresas Familiares na Universidade Northeastern. "Se você remover todos os incentivos financeiros, a família essencialmente não terá mais interesse nisso, exceto a nostalgia pelos bons e velhos dias do passado".

Quanto à forma como o Holdfast Collective distribuirá os lucros da Patagonia, Chouinard disse que boa parte do foco estará em soluções para o clima baseadas na natureza, tais como a preservação de terras selvagens. E em sua condição de organização sem fins lucrativos, o Holdfast Collective também poderá estender o histórico da Patagonia em termos de financiar ativistas de base, e além disso poderá fazer lobby e doar dinheiro para campanhas políticas.

Para os Chouinard, isso resolve a questão do que acontecerá com a Patagonia depois que seu fundador se for, e garante que os lucros da empresa serão colocados para trabalhar na proteção ao planeta.

Tradução de Paulo Migliacci

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