Concessões em saneamento sofrem resistência, e meta de universalização fica ameaçada

População atendida por concessionárias privadas saltou de 4,5% em 2018 para 23% neste ano, mas 81% do investimento ainda é de entes públicos

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Brasília

O acesso a serviços de saneamento básico precisa ser massificado até 2033, mas a meta definida pelo novo marco do setor corre risco diante da resistência de governadores e prefeitos em delegar os serviços de água, esgoto e coleta de resíduos à iniciativa privada.

Apesar de a população atendida por concessionárias privadas ter saltado de 4,5% em 2018 para 23% neste ano, a maior parte do investimento (81%) ainda continua concentrada em entes públicos.

"Os estados e municípios precisam acelerar o ritmo das concessões", diz Percy Soares Neto, diretor-executivo da Abcon (associação das concessionárias de água e esgoto).

Dados da associação indicam que o investimento médio para que toda a população tenha acesso à infraestrutura básica precisa ser de R$ 75 bilhões por ano pelos próximos 12 anos —4,5 vezes o patamar atual (de R$ 16,5 bilhões).

Estação de tratamento de água da Cedae, que abastece o Rio de Janeiro - 24.nov.2022-Eduardo Anizelli/ Folhapress

Para Cláudio Frischtak, sócio da Inter.B, consultoria que assessora grandes grupos de infraestrutura no país, não há mais espaço para o Estado nesse mercado. "Precisa de muito investimento e a escassez fiscal impede [a participação estatal]", diz. "Em pouquíssimos anos, a iniciativa privada já demonstrou interesse [pelo negócio]. Mas, se o ritmo atual de investimento seguir como hoje, não vamos universalizar o serviço."

Frischtak também considera que a questão é política.

"Essas estatais são ineficientes e funcionam como cabides de empregos", diz. "Não há como universalizar sem que haja um plano robusto de concessões por governadores e prefeitos."

O prazo para que os entes federativos publiquem o plano de saneamento —com diretrizes para o cumprimento da meta de cobertura— vence em 31 de dezembro. Até o momento, poucos cumpriram a exigência legal.

Os 26 leilões previstos no país até 2023 devem gerar mais de R$ 21,7 bilhões em novos investimentos contratados ao longo de 35 anos de concessão em 303 municípios —onde vivem 16% dos habitantes do país. Caso se concretizem, até lá, quase 40% dos brasileiros estarão sendo servidos pela iniciativa privada.

Os principais projetos são de água e esgoto no Ceará, Sergipe, Rio Grande do Sul e Alagoas.

Um estudo recente do BTG Pactual mostra que o mercado tem apetite para financiar as novas entrantes. A receita da concessionária —líquida e certa— é a principal garantia de que as empresas honrarão o pagamento de possíveis empréstimos.

Os bancos também têm atuado na emissão de debêntures (títulos privados de dívida) das concessionárias. Somente as 12 principais já levantaram R$ 6,5 bilhões após a aprovação do marco.

No geral, as captações com debêntures passaram de R$ 5 bilhões, em 2019, para R$ 19,5 bilhões, em 2021. Neste ano, movimentaram R$ 14,7 bilhões até setembro.

Entretanto, são números ainda inexpressivos diante do esforço que o país precisa fazer para atingir níveis aceitáveis.

Dados do Snis (Serviço Nacional de Informação de Saneamento) mostram que, em agosto de 2020, cerca de 16% da população não tinha acesso à água potável e 45% não era servida por esgotamento sanitário.

Com esse desempenho, o país se iguala ao Peru e fica abaixo de outros emergentes, como México, Rússia, Chile e China.

Próximos passos

Refratário a privatizações, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deixou o assunto para ser discutido com o futuro ministro das Cidades.

No entanto, a equipe de transição recomendou a criação de um novo marco legal para o saneamento básico, dificultando concessões e barrando privatizações.

Até a aprovação da nova legislação, a equipe de Lula pede um revogaço de dispositivos da lei por meio de decretos para garantir, primordialmente, a possibilidade dos chamados contratos de programa —em que empresas estaduais de saneamento assumem contratos de prestação do serviço em prefeituras, sem licitação.

Hoje, segundo o relatório do BTG, mais da metade desses contratos está em situação irregular e a grande maioria não segue sob supervisão de agências reguladoras —que, por serem independentes, exigem o cumprimento das metas sob pena de multa e, no limite, a cassação dos contratos.

Uma das críticas de assessores do PT ao modelo de concessão definido pelo novo marco é que o preço pago pelos consumidores subiu demais.

O levantamento do BTG, entretanto, mostra que o preço médio por metro cúbico de água e esgoto cobrado atualmente por empresas privadas é de R$ 4,63, contra R$ 4,72, por empresas públicas.

Ainda não se sabe como Lula conduzirá o assunto. Mesmo assim, oito associações ligadas ao setor já pediram, em manifesto, que o novo marco seja mantido.

Além da Abcon, estão entre elas a Abdib (Associação Brasileira da Infraestrutura e das Indústrias de Base) e a Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos).

Entre o público e o privado, a trajetória do saneamento no Brasil

Desde a fundação do país, os primeiros projetos do gênero ficaram restritos a iniciativas locais de dragagens de terrenos ou construção de chafarizes.

A primeira obra foi um poço construído no Rio de Janeiro sob a ordem de Estácio de Sá —fundador da cidade. O primeiro aqueduto, os Arcos da Lapa, só começou a ser construído em 1673 e ficou pronto em 1723.

Arcos da Lapa, no centro do Rio de Janeiro - 14.mar.2022-Paulo Carneiro/Photopress/Folhapress

A demanda por água encanada só ganhou urgência com a chegada da família real portuguesa, em 1808, movimento que fez dobrar a população brasileira rapidamente, exigindo planejamento.

No entanto, diante das dificuldades da coroa portuguesa em levar adiante um projeto desse porte, os primeiros projetos só se tornaram realidade a partir do final do século 21 —e por meio de empresas estrangeiras.

Mas o desenvolvimento da infraestrutura não foi satisfatório. Os serviços prestados eram de péssima qualidade, o que forçou o governo a estatizar o serviço.

Entre 1857 e 1877, o governo de São Paulo construiu o seu primeiro sistema de abastecimento de água encanada.

A elite, antes instalada na região dos Campos Elíseos, região próxima à Estação da Luz, se transferiu para Higienópolis —bairro que tentava reproduzir o estilo europeu e que recebeu esse nome por ser o primeiro a oferecer aos moradores um sistema de água e esgoto.

Porto Alegre e Rio de Janeiro só receberam água encanada em 1861 e 1876, respectivamente.

Em 1930, a Constituição delegou aos municípios a responsabilidade pelos serviços de saneamento e abastecimento de água —o que se mantém até hoje.

Na década de 1940, começaram a surgir as primeiras autarquias e mecanismos de financiamento para o setor. Começou ali a comercialização dos serviços de saneamento para a população graças a uma política de controle de doenças, conduzida pelo então Serviço Especial de Saúde Pública —hoje Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

O impulso ao setor se deu no governo militar por um decreto de 1969, que autorizou o então Banco Nacional de Habitação (BNH) a aplicar recursos próprios e do FGTS para financiamentos na área.

Pouco depois, o Plano Nacional de Saneamento (Plansa) foi instituído, tendo como pilar a autossustentação do sistema por meio da cobrança de tarifas.

Somente em 2007, no segundo governo de Lula, o Congresso aprovou a Lei Nacional do Saneamento Básico, com as diretrizes nacionais, modificadas recentemente pelo novo marco, que estabeleceu a competição (por meio de leilões) entre estatais e empresas privadas pelos contratos de prefeituras e estados.

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