Caso Americanas reflete cultura tóxica de resultado a qualquer custo, diz gestor

Para sócio de empresa que zerou posição na varejista em 2019, crise não é caso isolado

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Rio de Janeiro

Quando decidiu, ainda em 2019, zerar sua posição em Americanas, a gestora especializada em ESG Fama Investimentos ainda não tinha noção da crise que levaria ao pedido de recuperação judicial para equacionar uma dívida de mais de R$ 40 bilhões no início de janeiro.

Mas já via pouca transparência em seu balanço e questionava a estratégia da companhia, que se orgulhava de ser "obcecada por resultados". "Jamais imaginaria que era uma questão desse tamanho, mas tinha sinais ali", lembra um dos fundadores da Fama, Fábio Alperowitch.

Especialista em ESG (sigla em inglês para ambiente, social e governança) e conselheiro de organizações que fomentam responsabilidade social e maior consciência empresarial, ele defende que o caso não é isolado. "É um caso emblemático de falência de uma cultura tóxica de busca do resultado a qualquer custo."

Retrato de homem sentado em cadeira numa sala
Fabio Alperowitch, fundador da Fama Investimentos, gestora de fundos com foco em ESG - Divulgação

O sr defendeu, em artigo, logo após o início da crise, que o caso da Americanas não é um caso isolado, mas produto de uma cultura mais hostil do capitalismo. Por quê? Minha intenção naquele momento era que a gente não fosse casuísta, porque a gente não pode tratar o caso das Americanas como o caso das Americanas. É um caso emblemático de falência de uma cultura tóxica de busca de resultado a qualquer custo. Se a gente trata como caso Americanas, a gente fecha o olho para todo o resto.

O que seria essa cultura? Nos anos 1990, as empresas eram geridas integralmente em favor dos acionistas, sem preocupação com os demais stakeholders [públicos de interesse]. Portanto, uma empresa que "amassava" fornecedores a ponto de até quebrá-los era bem vista porque estava capturando o resultado para si. Uma empresa que entregava produtos de má qualidade ou prestava um mau serviço era bem vista porque isso aumentava o resultado financeiro em detrimento da satisfação do consumidor. O mesmo raciocínio vale para os colaboradores: não se investia em bem-estar no ambiente de trabalho, comunidades, minoritários, meio ambiente ou governos. Esse capitalismo está em ocaso e abrindo espaço para um capitalismo mais inclusivo que contempla stakeholders em seus processos decisórios. Esse novo capitalismo tem produzido empresas mais responsáveis, mais longevas, mais respeitadas, que conseguem atrair e reter talentos e tomam melhores decisões.

O sr escreveu também sobre o sistema de incentivos a executivos, com bônus e ações, que podem levar a decisões em benefício próprio. Isso explica esses casos? Sim, mas eu acho que a gente não pode culpar o sistema de incentivo. Acho que a gente tem que culpar o exagero do sistema de incentivo. E o fato de o sistema de incentivo não estar acompanhado de outros indicadores a não ser os financeiros. Mas ele tem um lado positivo também, é aquela velha história: entre o antídoto e veneno, a questão é a dose. A gente precisa saber dosar exatamente para que não vire veneno. Acho que é um pouco mais nesse sentido.

E como é que se faz isso? Nos últimos anos aqui no Brasil a gente teve alguns casos de reforço nesse tipo de incentivo, como nas próprias Americanas, na Petrobras... Não há uma reflexão substancial sobre políticas de incentivos [no Brasil]. Primeiro, porque o caminho mais fácil é não fazer reflexão, é continuar na inércia. Segundo, porque é conveniente para muita gente. Como grande parte dos investidores olha muito para curto prazo, os executivos olham muito para o curto prazo... E infelizmente o mundo corporativo e o mundo financeiro são pouco empáticos a quem sofre as externalidades [de uma atividade]. Daí veem o resultado olhando para o financeiro e não levam em consideração outras questões.

A Eletrobras, por exemplo, acaba de aumentar o salário do presidente para R$ 300 mil, alegando que tem um desafio muito grande pela frente e precisa ter os melhores profissionais do mercado. Sabe o que vai acontecer? Daqui a três anos, a Eletrobras vai falar que precisa de uma pessoa ainda melhor, então em vez de R$ 300 mil, tem que pagar R$ 500 mil, depois R$ 800 mil. Não tem limite, não vai ter nunca limite. E isso vai criando cada vez mais distanciamento entre a cúpula e o trabalhador médio da empresa, porque ninguém fala que lá embaixo a pessoa também precisa ser bem remunerada. A Americanas tinha a maior disparidade salarial do Brasil em 2019 e a segunda maior em 2021. E dá incentivo só para a cúpula, que provavelmente é quem sabia o que estava acontecendo. É uma cultura nociva.

Essa foi uma das razões da Fama ter zerado a posição em Americanas em 2019, certo? Foi uma conjunção de fatores. Primeiro, a gente detectou muita tensão com fornecedores. Existe sempre uma tensão entre varejista e fornecedor, tem sempre uma briga, compra mais barato, compra para vender mais rápido... Mas estava indo muito além do que é inerente ao negócio: fornecedores não serem pagos, fornecedores com mercadoria devolvida... Tinha também um giro muito grande de executivos, por alguma razão a Americanas não conseguia reter as pessoas. Outra coisa que chamou a atenção era essa disparidade salarial. E o balanço não era muito transparente, quando a gente compara com outras empresas do setor. As contas que eles publicavam eram muito aglutinadas, é como se colocasse muita coisa no "outros". O que são esses "outros"? As respostas eram lacônicas. Também começou a nos incomodar o resultado financeiro, o valor que eles pagavam de juros era desproporcional ao tamanho da dívida. Por que a empresa está pagando tanto juro? Não fazia sentido pela dívida que ela reporta. Então, opa, tem alguma coisa aí. Bom, jamais imaginaria que era uma questão desse tamanho, mas tinha sinais ali.

Olhando agora, parece que a governança do mercado não funcionou. Não teve alerta de agência de rating, de auditoria... Não, Americanas não tem governança. E tem uma questão quando a gente está lidando com o trio: existe uma aura em volta deles, que torna todos os processos piores. Um banco que vai dar crédito teoricamente deveria ser frio, olhar os números. Mas não: "isso aqui é do [Jorge Paulo] Lemann, se um dia tiver qualquer problema, o cara é bilionário, vai botar dinheiro e tal, então eu confio". E, quando um banco vai fazer análise, evita falar mal de uma empresa do trio porque nunca mais vai fazer negócio com eles. Cria-se um ambiente que não tem crítica. As pessoas que estão nesse ecossistema tendem a compactuar com tudo.

Voltando um pouco na questão da disparidade salarial: não vemos um debate sobre o tema no país. Por que? Isso dificilmente virá do meio empresarial, virá da sociedade civil. Existem algumas entidades, como o Instituto Ethos, que tentam trazer essa pauta. Mas a gente precisa de um empenho muito maior do setor privado para redução de desigualdade. Existe um trabalho do consultor de governança Renato Chaves, que publica um ranking da desigualdade salarial nas empresas, que é muito interessante, mas não vira ainda cobrança porque ninguém lê, não sai na Folha. Todos esses dados deveriam virar cobrança da sociedade: por que o CEO da Renner ganha cem vezes mais do que a média da empresa e o da Americanas ganha 600 vezes mais?

Fomentar uma mudança de comportamento não seria também um papel do ESG? A grande questão do ESG é quando são necessárias escolhas e essas escolhas não são necessariamente triviais, ainda mais para o tomador de decisão tradicional, que é ainda o homem branco hétero de meia-idade, que vem de uma cultura pouco empática. O ESG de essência não tocou essas pessoas ainda. E há um reducionismo total. É achar que dentro do E só vale mudança climática e que dentro da mudança climática só vale carbono. Ninguém fala de biodiversidade, de água, de economia circular. A questão do carbono tem um lado perverso, porque vira uma licença para transgredir. Não é ruim, mas é novamente a questão entre o antídoto e o veneno. Eu emito X toneladas de carbono, compro tantos créditos e assim ganho salvo-conduto para fazer todos os tipos de transgressão.

A impressão é que a sigla ESG trata o ambiental de uma forma mais prioritária, mas o Brasil tem problemas sociais complexos. Esse não deveria ser também um eixo importante? Deveria. A pessoa que cunhou o termo ESG lá em 2004 ou 2005 foi genial, porque falar em investimento responsável era uma coisa mais abstrata. Porém, ao fazer isso você também estraga a compreensão, como se fosse possível separar o social do ambiental. Quando a gente fala de mudança climática, não está falando de um ou dois graus a mais na temperatura, está falando de refugiados do clima, de áreas inundadas, de lugares se tornarem inóspitos para viver, de alimento mais caro e aumento da desigualdade e pobreza. Então é tudo social no final das contas. Agora, você tem toda a razão: essa visão ambiental é mais de países mais ricos, que não têm tantos problemas sociais. Aí você vem para o país mais transfóbico do mundo, um dos mais racistas, uma das maiores desigualdades sociais, um dos que mais tem acidente no trabalho... O Brasil tem 53% de negros, então se não houver um movimento do investidor local trazendo a questão da equidade racial, não haverá pressão de fora nesse sentido.

Raio-x

Fabio Alperowitch, 51, é fundador da Fama Investimentos e responsável pela gestão de fundo de ações focado em companhias aderentes às boas práticas ESG. Formado em administração de empresas pela FGV (Fundação Getulio Vargas), é conselheiro de organizações como WWF Brasil, Instituto Ethos e Capitalismo Consciente Brasil.

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