Julgar um livro de 200 páginas por dois parágrafos não parece ser a melhor forma de definir uma obra. O tribunal da internet, porém, não tardou em atribuir o escândalo bilionário na Americanas a um dos capítulos de um livro tido como de cabeceira de Marcel Telles, um dos acionistas de referência (antes controladores) da companhia.
O pequeno trecho que ganhou redes sociais e páginas caça-cliques ensina a atrasar o pagamento de fornecedores para melhorar momentaneamente —naquele ano, não sempre— o balanço de uma empresa.
Tirada do contexto, a etapa 37 do livro "Dobre seus Lucros - Como Reduzir os Custos, Aumentar as Vendas e Melhorar Drasticamente os Resultados de sua Empresa em Seis Meses" o transforma em um manual do calote que caiu como uma luva para o caso Americanas.
O que faz o autor Bob Fifer, especializado em aumentar a lucratividade de pequenas e grandes empresas, é estabelecer parâmetros para uma companhia buscar, obsessivamente, o lucro. E é no corte obsessivo de gastos —de pessoal a mobiliário, de relatórios a material de escritório, de estoques a aluguéis— que Fifer concentra sua carga.
"Alguns empresários se concentram de tal modo (e erroneamente) nos clientes que deixam de ver a enorme oportunidade de lucros que existe dentro da própria empresa", escreve ele na etapa 48 ("Seja mais rigoroso com as funções internas").
Claro, a alocação estratégica de recursos e o aumento das vendas estão lá; afinal, defende Fifer, o objetivo não é um cliente perfeitamente satisfeito, mas um cliente que dê o máximo de lucro à companhia.
A estratégia proposta pelo autor é que o administrador se concentre obsessivamente nos resultados financeiros, e se possível apenas nisso. Para tanto, precisa de uma empresa meritocrática, onde todos os funcionários tenham chance de crescer e que sejam comprometidos com essa busca desenfreada pelo lucro a todo custo. Só assim entenderão por que uma despesa extra é negada, por que demissões foram necessárias, por que tiveram de mudar para um local mais distante com aluguel mais barato.
As recompensas para essa equipe devem ser salários maiores do que a média, de modo que todos trabalhem com afinco e comprometidos com a visão de lucro máximo. Já os benefícios devem ser os mínimos possíveis —incluindo cestas de Natal—, já que, claro, representam um custo para a companhia.
Os gastos devem ser voltados para aquilo que traz resultados de fato, como a equipe de vendas e estratégias de marketing, que não devem ser abandonadas em momentos de crise para evitar que a empresa "desapareça" para o público.
Hoje essas estratégias parecem óbvias, e mesmo datadas (como no trecho em que afirma que nem todos os funcionários de escritório precisam de computador porque parte deles usa o equipamento apenas poucos dias na semana). O livro foi escrito há 30 anos, e muito do que ensina já é posto em prática. Há manuais e consultorias por aí especializados em tornar uma companhia mais enxuta, treinar vendedores, estabelecer preços etc., atualizados para a dinâmica acelerada do século 21.
Além disso, a agenda ESG, antes inexistente —mas que certamente seria um gasto a ser cortado na visão de Fifer—, passou a ser exigência de parte dos acionistas (embora haja um movimento contrário a ele), e uma nova geração de profissionais tem interesses além dos meramente financeiros.
O leitor não irá encontrar resposta para estas questões contemporâneas em "Dobre seus lucros", escrito durante a fase de primazia da agenda liberal e do lucro a qualquer custo dos anos 1990.
Na época, um dos maiores divulgadores da obra foi Jack Welch, CEO da General Electric que transformou a companhia na maior do mundo no fim do século 20. Com uma política agressiva de aquisições e demissões em massa, ele fez a alegria de acionistas e executivos, que viram seus rendimentos e salários crescerem de forma exponencial.
Welch inspirou executivos mundo afora, incluindo os brasileiros Telles, Beto Sicupira e Jorge Lemann, com uma estratégia de resultados a curto prazo. É dele a ideia —posteriormente implementada na Ambev, sob o trio brasileiro— de premiar com bônus os 20% melhores trabalhadores, demitir os 10% considerados piores e manter inalterados os 70% demais.
Posteriormente à saída de Welch, em 2001, a GE entrou em declínio, deixou de ser líder em tecnologia e a maior parte de seu resultado vinha do braço financeiro da companhia, atingido pela crise de 2008. Welch, um forte apoiador de Donald Trump, já não era mais a unanimidade de antes quando morreu, em 2020, mas seus ensinamentos instruíram gerações. E parte disso deve-se a "Dobrando seus Lucros".
Sem editora no início, Fifer lançou ele mesmo o livro e o enviou a cerca de 80 presidentes-executivos de empresas listadas na Fortune 500, segundo reportagem da CNN de 1994. Welch era um deles. Gostou e encomendou 125 exemplares para distribuir a seus gerentes sêniores, que na sequência encomendaram outras 2.700 cópias (outros empresários fizeram o mesmo).
Para a geração do lucro acima de tudo, o livro é (ou foi) um manual certeiro, capaz de transformar empresas burocráticas dos anos 1970-1980 em máquinas de fazer dinheiro. Hoje, deve ser lido com ressalvas.
Um dos ensinamentos do autor, por exemplo, é não gastar com excesso de informações —para ele, há um desejo inútil de ser exato, já que no mundo dos negócios a maioria das decisões é tomada por instinto.
Mas com a profusão de dados disponível hoje, é difícil dizer para um empresário para deixar de analisá-los, mesmo que ainda não se saiba muito bem o que fazer com os números. Quem descobrir primeiro sai na frente.
O mesmo vale para a urgência da indústria 4.0, uma tecnologia do mundo da ficção científica 30 anos atrás.
Voltando aos dois parágrafos que viralizaram, hoje já é prática comum que contratos com fornecedores prevejam pagamentos em prazos largos —embora algumas empresas, como fez a Americanas, atrasem mesmo assim suas obrigações.
Essas ressalvas, porém, não inviabilizam a obra. É possível extrair dali técnicas para tornar a empresa mais eficaz, melhorar os resultados e possibilitar melhoria de salários a funcionários competentes. Pode ser especialmente útil para micro e pequenas empresas que não têm acesso a boas consultorias nem a gerentes mais qualificados, já versados em técnicas de redução de custos e maximização de lucros.
Mas é preciso ler com a cabeça de 2023, para evitar que se transforme uma empresa contemporânea em uma firma com 30 anos de atraso.
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