Advogados criticam valor de indenização acordado com vinícolas em caso de trabalho escravo

MPT-RS prevê R$ 7 milhões em multa; procurador diz que cifra é substancial, mas admite que pesou urgência para firmar acordo

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Porto Alegre

O valor estabelecido no TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) firmado entre o MPT-RS (Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul) e as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, envolvidas na denúncia recente de exploração de mão de obra em regime análogo ao de escravidão em Bento Gonçalves, vem sendo alvo de críticas por especialistas na área.

O acordo prevê R$ 7 milhões em indenizações à sociedade e aos trabalhadores. Se comparado ao faturamento anual das três empresas da serra gaúcha, o montante corresponde a 0,46%.

beliche de camas em quarto em local precário
Operação com PRF, MPT e Ministério do Trabalho resgatou trabalhadores mantidos em situação de escravidão em Bento Gonçalves (RS) - Divulgação

Especialistas em Direito do Trabalho ouvidos pela Folha consideraram o valor acordado baixo, sobretudo se considerado que, deste montante, apenas R$ 2 milhões serão usados para indenizar os 207 trabalhadores, o que corresponderia a R$ 9.600 de indenização por trabalhador.

O restante, R$ 5 milhões, corresponde ao dano moral coletivo, e deve ser revertido pelo MPT-RS em ações sociais. Por outro lado, os especialistas elogiam o nível de detalhamento das 21 medidas de controle estabelecidas pelo órgão, que devem ser cumpridas pelas vinícolas sob pena de multa.

Questionado sobre como as partes envolvidas chegaram a esse número, o procurador do Trabalho Lucas Santos Fernandes classificou o valor como "substancial". No entanto, ele admitiu que foi uma cifra que levou em conta a urgência de firmar um acordo para um maior controle na cadeia produtiva da uva já na próxima safra.

Conforme a advogada trabalhista e professora licenciada de Direito do Trabalho da Unisinos, Carolina Mayer Spina, não é atípico que o valor estabelecido para o dano coletivo seja mais substancial em TACs. Isso porque o foco do MPT não é representar judicialmente os trabalhadores, mas sim a sociedade como um todo. Ela ressalta que o acordo não impede que os trabalhadores acionem as vinícolas na Justiça individualmente pelos maus-tratos sofridos.

Ainda assim, ela considera os valores inadequados se levados em conta três fatores: a extensão do dano causado, a capacidade econômica das empresas envolvidas e o chamado "punitive damage", termo utilizado no Direito Internacional que pode ser traduzido como "dano exemplar".

"O 'punitive damage' deve levar em conta que outras empresas devem ser desestimuladas a ter conduta semelhante. A pensar duas vezes antes de burlar as regras do jogo. Na minha opinião, os R$ 7 milhões são desproporcionais levando em conta os três fatores, mas sobretudo esse último", diz Carolina.

Segundo a advogada, o "punitive damage" é importante por levar em consideração a vantagem competitiva irregular que a empresa obteve ao desprezar boas práticas —ou seja, ao violar obrigações legais, elas conseguem ter custos menores e lucro maior do que concorrentes que respeitam direitos trabalhistas.

Essa discussão veio à tona, relembra a especialista, no caso da Zara Brasil. Em 2011, 15 trabalhadores bolivianos que costuravam roupas para a marca foram resgatados em situação degradante. A empresa alegou desconhecimento, mas firmou inicialmente um acordo que previa indenização coletiva de R$ 3,4 milhões e outro, em 2017, de R$ 5 milhões pelo descumprimento do primeiro.

Carolina observa que o caso da colheita da uva envolveu 13 vezes mais trabalhadores e, conforme a investigação, já vinha ocorrendo em safras anteriores.

Advogado, juiz aposentado e presidente da Associação dos Magistrados do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, Roberto Siegmann atribui as baixas indenizações aos trabalhadores a uma "ideia mal formada" de que valores indenizatórios não podem representar uma premiação aos indenizados.

"Não é exclusividade deste TAC. Para desestimular pedidos [de indenização] que não fazem sentido, a Justiça muitas vezes opta por estabelecer indenizações trabalhistas baixas mesmo quando elas se justificam. Em um caso como esse das vinícolas, o primeiro critério para estabelecer o valor deveria ser o efeito terapêutico", diz o magistrado.

Siegmann, todavia, elogia o caráter didático do TAC ao listar passo a passo as medidas a serem tomadas pelas vinícolas em questão. Para ele, o documento pode servir como um roteiro para qualquer empresa interessada em estreitar o acompanhamento de suas relações com fornecedores e prestadores de serviço.

"Do ponto de vista teórico, [o TAC] é muito bem feito. Aponta inúmeras violações que foram cometidas e diz ali, com todas as letras, que a empresa que contrata os serviços de um terceiro é responsável e tem a obrigação de fiscalizar e exigir que as normas sejam cumpridas", diz.

Para Siegmann, ao listar minuciosamente obrigações em relação a alojamento, instalações sanitárias, refeições e questões contratuais de pagamento caso haja inadimplência das terceirizadas junto aos contratados, o documento abre caminho para que haja uma maior clareza dos deveres trabalhistas em outras culturas agrícolas do RS e do Brasil.

No dia seguinte ao anúncio do acordo com as vinícolas, houve nova operação de resgate de pessoas em situação degradante de trabalho em Uruguaiana, na fronteira oeste do RS. Foram 82 pessoas resgatadas - incluindo 11 adolescentes, que trabalhavam em fazendas arrendadas de arroz. Já são 291 trabalhadores resgatados no RS em 2023, número que se aproxima do dobro dos 156 resgatados em 2022.

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