Descrição de chapéu Financial Times

Apple enfrenta grandes bancos com cartão de crédito, poupança e empréstimo

Empreendimentos em serviços financeiros do gigante da tecnologia sinalizam ambições maiores de bater de frente com Wall Street

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Patrick McGee Joshua Franklin
San Francisco e Nova York | Financial Times

Em 2019, depois de meses de trabalho árduo, executivos da Apple e do banco Goldman Sachs estavam se preparando para revelar o Apple Card, um passo histórico para as crescentes ambições da fabricante do iPhone quanto aos serviços financeiros.

À medida que a data de lançamento se aproximava, os parceiros esbarraram em um obstáculo: A Apple, ávida por ser vista como provedora de um valor único para os clientes e habituada a afirmações de marketing grandiosas, queria vender o produto como "o cartão de crédito mais seguro de todos os tempos".

A Apple tinha a vantagem. O Goldman Sachs via o Apple Card como um produto essencial para mostrar que era capaz de atender a clientes pessoa física. "Para o Goldman Sachs, o que estava sendo proposto era, ‘ei, vocês não têm um produto de consumo, e adivinhe? Podemos lhes dar acesso a todos os clientes da Apple’", diz um antigo executivo da Apple. "A Apple estava ciente disso, e por isso espremeu tudo que podia daquela negociação".

Foto mostra logo da Apple, uma maçã prateada com uma mordida do lado direito, refletindo o logo da Apple Store, um "A" branco num círculo azul, que está sendo projetado por um iMac. O fundo da foto é todo escuro
Logo da Apple refletindo logo da Apple Store - AFP

Mas o Goldman Sachs não pôde aceitar a história do "cartão mais seguro de todos os tempos". Uma pessoa informada sobre as discussões disse que "afirmar que algo é ‘o mais seguro’ exporia o banco a processos judiciais".

No fim, eles resolveram adotar uma fórmula mais discreta, a de que o Apple Card "proporciona um novo nível de privacidade e segurança", e que a ausência do número de 16 dígitos e do código de segurança no cartão o tornava "mais seguro do que qualquer outro cartão de crédito físico".

O episódio foi um dos maiores debates entre a Apple e o Goldman Sachs no período que antecedeu o lançamento, de acordo com pessoas informadas sobre o assunto, e provou ser uma lição precoce para a Apple na navegação da burocracia que existe nos serviços financeiros.

Agora, quatro anos mais tarde, a fabricante do iPhone se sente cada vez mais confortável nessa arena, e está intensificando seus esforços para se expandir ainda mais no novo mercado. Por exemplo, nas últimas três semanas, a Apple lançou —com a ajuda do Goldman— dois grandes produtos.

O Apple Pay Later, seu produto para "comprar agora e pagar mais tarde", é o primeiro exemplo de empréstimo direto de dinheiro da Apple aos consumidores. O Savings, uma conta poupança de alto rendimento, oferece aos clientes americanos uma taxa de juros de 4,15%, dez vezes superior à média nacional. Os depósitos serão administrados pelo Goldman Sachs, que como banco licenciado tem acesso a garantias de depósitos bancadas pelo governo americano.

A questão para os bancos e outros prestadores de serviços financeiros é o quanto devem se preocupar com uma empresa de tecnologia que conta com 1,2 bilhão de usuários do iPhone, um valor de mercado de US$ 2,6 trilhões e um histórico de inovação desordenadora, e parece disposta a invadir seu território.

A escala da Apple faz com que mesmo os maiores bancos do mundo pareçam pequenos. A divisão de serviços da empresa, que fatura com assinaturas recorrentes e pagamentos realizados na App Store, gerou lucros de US$ 55 bilhões no ano passado –maiores do que os do JPMorgan e Citi somados. E ainda assim representa apenas um quinto das receitas totais da Apple.

E a empresa não tem sido tímida quanto às suas ambições nessa arena. Anúncios de emprego atuais da Apple falam de "transformar o setor nos pagamentos, trânsito e identidade". E Jennifer Bailey, vice-presidente da Apple Pay, disse em 2016 que a Apple estava "em uma boa e longa viagem no fim da qual substituiremos a carteira".

Para Jamie Dimon, presidente-executivo do JPMorgan Chase, o risco é claro a ponto de ele rotular a Apple como banco. "Pode não ter depósitos protegidos, mas é um banco", disse o executivo em junho do ano passado. "Se movimenta dinheiro, detém dinheiro, gerencia dinheiro, empresta dinheiro —isso é um banco".

Dimon avisou novamente os investidores da ameaça iminente, este mês, dizendo que "as grandes empresas de tecnologia" têm "enormes recursos em termos de dados e sistemas proprietários —tudo isto lhes dá uma vantagem competitiva extraordinária".

Stephen Squeri, presidente-executivo da American Express, admitiu a analistas na quinta-feira que ele é também "paranoico" com relação à Apple e à Amazon, que definiu como empresas "fenomenais", dotadas de ligações profundas com o consumidor.

"Não somos ingênuos o bastante para pensar que podemos simplesmente continuar em ritmo de passeio, aqui", ele disse. "Vemos que todo mundo está vindo para cima de nós."

Este relato dos planos da Apple quanto aos serviços financeiros se baseia em entrevistas com oito pessoas envolvidas na estratégia, que solicitaram que seus nomes não fossem revelados porque não estavam autorizadas a falar publicamente. A Apple e o Goldman Sachs se recusaram a comentar.

Poder glacial

A Apple costuma se expandir em novos setores, tipicamente, não por meio de aquisições cintilantes, mas por etapas incrementais que lhe conferem uma vantagem sustentável ao longo do tempo.

Nas finanças, os frutos da estratégia de avanço lento são mais claros no caso da Apple Pay, sua tecnologia para pagamentos sem fio destinada a "transformar os pagamentos móveis", anunciada pela primeira vez ao lado do iPhone 6, em 2014.

A adoção foi suficientemente lenta para que a Apple fosse alvo de zombaria, nos seus primeiros anos de operação. Em 2016, apenas 1 em cada 10 proprietários de iPhone no planeta usava o Apple Pay. Mas a base de usuários subiu para 50% até 2020, de acordo com a Deepwater Asset Management. Em 2022, a adoção atingiu 75% e a Comissão Europeia decidiu abrir uma investigação antitruste sobre a unidade.

"Eles se movem com a velocidade e força de uma geleira", diz Gene Munster, sócio-diretor da Deepwater. Comentando os próximos movimentos da Apple no setor bancário, ele acrescenta que "isso levará de cinco a dez anos, mas quando a hora chegar pensaremos na Apple como pensamos no Citi, JPMorgan e Wells Fargo".

A fabricante do iPhone joga pensando no futuro das finanças e pagamentos, dizem três antigos funcionários da Apple, e as suas jogadas atuais estão preparando as bases técnicas para conquistar uma participação de mercado maior.

Por exemplo, a Apple passou anos trabalhando no que era conhecido internamente como Projeto Muirfield –o desenvolvimento da capacidade do iPhone não só para enviar mas para receber pagamentos. A funcionalidade foi anunciada sem muito alarde em fevereiro de 2022: um comunicado de imprensa da Apple descrevia que os comerciantes que utilizassem iPhones com chips NFC "tap and go" podiam agora aceitar pagamentos com cartões de crédito sem "necessidade de qualquer hardware ou terminais de pagamento adicionais". O sistema funciona com fornecedores de serviços de pagamento como a Stripe, Adyen e Square.

As pessoas familiarizadas com a tecnologia dizem que as implicações são muito mais amplas: se o comprador e o comerciante usarem, ambos, iPhones ou iPads para processar pagamentos, isso dará à Apple a capacidade de criar um circuito fechado que não requer parceiros bancários ou redes geridas pela Visa e Mastercard.

"No momento, eles não podem incomodar os bancos e não podem separar os parceiros de rede –que são importantes demais para a distribuição, no início", diz um antigo funcionário da Apple. "Mas é fácil imaginar que o pêndulo se move: à medida que mais e mais pessoas passarem a usar o Apple Pay, ele se moverá para o campo da Apple e permitirá que ela faça outras jogadas não são tão dependentes dos bancos".

Munster acrescenta que a Apple tem um longo histórico de parceria com terceiros, até que seja vantajoso para a empresa operar sozinha, e suspeita que esse também seja o objetivo final no segmento de finanças. "A lista de antigos parceiros da Apple que se tornaram obsoletos é longa", ele diz.

Sam Shawki, presidente-executivo da MagicCube, que oferece tecnologia semelhante para dispositivos Android, disse que a capacidade de os comerciantes aceitarem com segurança pagamentos através de smartphones e tablets poderia tornar obsoleto todo o mercado de dispositivos de pagamento —um setor liderado nos Estados Unidos pela Verifone e Ingenico, e que movimenta US$ 48 bilhões ao ano.

"Isso é uma máquina de fax em uma era em que já existe o email", diz ele sobre os dispositivos de utilização única. "Dar uma dentada no mercado da [empresa de pagamentos] Block não é nada, mas dar uma dentada na Ingenico e Verifone é alguma coisa, e dar uma dentada no Visa e PayPal é o objetivo de longo prazo".

Michel Léger, vice-presidente de inovação da Ingenico, admite que as soluções para pontos de venda baseadas em software trouxeram "uma nova era de aceitação de pagamentos", mas argumenta que a oferta da Apple irá complementar os terminais físicos em vez de os substituir. Seria "impraticável imaginar uma frota de smartphones caros nos caixas de um supermercado", ele diz.

Outros no setor não veem a Apple como ameaça existencial. Eva Wang, antiga executiva da American Express que agora lidera parcerias na Firework, uma solução comercial para vídeo-shopping, diz que o interesse da Apple nos pagamentos e serviços bancários tem a ver acima de tudo com extensão do alcance do iPhone - para acrescentar conveniência mas também para manter os usuários "presos" ao ecossistema da Apple.

"Se eu estiver usando todas essas coisas da Apple, é menos provável que eu decida mudar (para o Android)", ela diz. "O que os interessa é algo muito diferente dos bancos".

As grandes empresas que historicamente dominam setores precisam com certeza estar "cientes" do que a Apple está fazendo, diz Boe Hartman, antigo chefe da divisão de tecnologia do Goldman Sachs que construiu a infraestrutura para o Apple Card. Mas ele não imagina que a Apple venha a criar o Bank of Cupertino, no futuro previsível.

"Os bancos estão enraizados em regulamentação constante, e é preciso provar que esses regulamentos estão sendo cumpridos todos os dias", ele diz. "Alguém como o Google ou a Apple só quer a experiência de servir as pessoas, para manter a adesão delas ao seu ecossistema. É isso que eles querem. Não querem lidar com coisas regulatórias, que são difíceis e complexas".

As vantagens da Apple

É do firme interesse da Apple limitar suas ambições à experiência do cliente e deixar a outros a construção de infraestruturas, ou lidar com o risco de crédito e as questões regulatórias, diz Amit Daryanani, analista da Evercore ISI.

Isto permite à Apple adotar uma abordagem mais seletiva, de maior margem e de investimento baixo de capital para suas atividades bancárias, turbinada pela capacidade da empresa de incorporar ferramentas ao sistema operacional do iPhone —em vez de a um app separado que o usuário tem de encontrar e baixar.

Um antigo executivo da Apple diz que o custo de aquisição de novos clientes para o Apple Card era "risivelmente mais baixo do que o de qualquer outra empresa de cartões de crédito", porque ela tinha tantos canais de distribuição.

Por exemplo, a Apple enviou lembretes aos usuários durante anos para que se inscrevessem no Apple Pay, chegando a enviar notificações em vermelho no menu de configurações que implicavam que algo estava errado se o serviço não fosse configurado.

Kim Schwendeman, vice-presidente sênior de adoção de pagamentos na Stax, uma plataforma de pagamento para pequenas empresas, diz que táticas semelhantes poderiam dar uma vantagem ao programa Apple Pay Later.

"É fácil para os consumidores que têm Apple Pay alavancar essas capacidades e obter um empréstimo", ela diz. "Para alguns dos concorrentes mais estabelecidos, a experiência não é tão descomplicada. Isso vai causar alguma ansiedade".

A Apple também tem outra vantagem em longo prazo, nos dados dos usuários do iPhone —que poderiam potencialmente ser utilizados para avaliar o risco de crédito de forma mais abrangente.

No ano passado, a empresa assinalou o seu interesse na ideia quando adquiriu a Credit Kudos, uma startup de pontuação de crédito "alternativa" criada no Reino Unido.

Se esses dados fossem utilizados para avaliar riscos, poderiam ser "muito poderosos na tomada de decisões de crédito inteligentes", diz Charlotte Principato, analista da Morning Consult, uma empresa de "business intelligence".

"Quanto mais informações você tiver sobre um consumidor, melhores as decisões de empréstimo que poderão ser tomadas", ela acrescenta. E a Apple "está sentada sobre uma montanha de dados".

Tradução de Paulo Migliacci

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