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Quebra da Vice arranha fundos de investimento que apostaram no futuro da mídia

Investimento de US$ 450 mi da TPG evaporou, em sinal do que pode acontecer quando Wall Street lida com furor da indústria criativa

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Anna Nicolaou Sujeet Indap
Nova York | Financial Times

Quando fundos de investimento aplicaram quase US$ 500 milhões (cerca de R$ 2,5 bilhões) na Vice Media em 2017, o cofundador Shane Smith deu a entender que o dinheiro ajudaria sua empresa de mídia digital a conseguir uma listagem pública que "seria muito sexy".

Falando em um festival de publicidade em Cannes (França), com óculos escuros e a Riviera Francesa ao fundo, o executivo de mídia brincou com os repórteres que ele "arredonda para cima" a avaliação de US$ 5,7 bilhões da Vice (R$ 28,4 bilhões), para US$ 6 bilhões (R$ 29,9 bilhões), "porque é mais fácil dizer".

A Vice foi, durante anos, amplamente considerada o futuro da mídia. A injeção de dinheiro conduzida pelo grupo de private equity TPG e seu então sócio Sixth Street pretendia impulsionar a empresa para uma oferta pública inicial ou uma venda multibilionária.

O diretor administrativo do banco de negócios francês Lazard France, Matthieu Pigasse (à direta) e o fundador da Vice, Shane Smith, em Paris - Matthieu Alexandre - 10.mar.2016/AFP

Ao invés disso, a Vice entrou com pedido de falência, após uma série de resultados decepcionantes, anos de gestão caótica, empreendimentos arriscados e uma crise de liquidez. A aposta de US$ 450 milhões (R$ 2,2 bilhões) da TPG foi reduzida a zero. A avaliação geral da Vice está abaixo de US$ 300 milhões (R$ 1,4 bilhão).

"Você coloca um grande alvo nas costas quando diz 'nós sabemos mais, nós somos o futuro'", diz um ex-executivo sênior da Vice. "Shane estava sempre tentando ser o fazedor de chuva [...] Todo mundo comprou isso. Mas não deu certo e agora veja a queda."

O fim da Vice é o ápice de uma era em que a mídia tradicional e os investidores aplicaram bilhões em startups de notícias online, como BuzzFeed, Vox Media e Group Nine, na esperança de capturar usuários da geração do milênio e dólares de publicidade. Em 2012, Rupert Murdoch bebeu tequila com o barbudo e tatuado Smith no escritório da Vice no Brooklyn. Meses depois, seu grupo 21st Century Fox investiu US$ 70 milhões (R$ 349,8 milhões) na Vice.

A queda também é a história da colisão entre Wall Street e uma indústria criativa que abrigava grandes personalidades e egos gigantes. Em alguns meses, a empresa que apostou sua reputação de ousada e irreverente publicando histórias como "Aqui está tudo o que você precisa saber sobre a cetamina" e "Vinte horas em um clube de strip de Nova York" será propriedade de credores de Wall Street.

Isso levanta perguntas sobre as táticas dos fundos de equity, que nos últimos anos ganharam a reputação de ser a maldição da mídia noticiosa dos Estados Unidos, estripando jornais para obter lucros em curto prazo. Alguns investidores e ex-executivos da Vice, incluindo o acionista James Murdoch, filho do presidente da Fox Corporation, Rupert Murdoch, culpam a TPG pela morte da Vice.

"[James Murdoch] ficou muito desapontado e chateado com a posição [da TPG]", diz uma pessoa próxima da situação. Muitos ex-executivos e investidores da Vice entrevistados para este artigo pediram anonimato devido aos procedimentos legais; James Murdoch recusou um pedido de comentário.) Outra pessoa próxima à Vice descreveu o relacionamento TPG-Vice como um casamento mal construído: duas pessoas atraentes e talentosas que se casam rapidamente e logo percebem que são incompatíveis. Outro investidor descreveu o envolvimento da TPG como "sufocando a empresa até a morte".

"Apoiamos ativamente a Vice durante todo o nosso investimento e, apesar de não controlarmos a empresa, trabalhamos incansavelmente com sua liderança para aumentar sua lucratividade", afirmou a TPG em comunicado. "A situação de liquidez da Vice é resultado de perdas operacionais e da incapacidade da empresa de pagar dívidas separadas do investimento da TPG", acrescentou.

Os perdedores na falência da Vice incluem titãs da mídia e das finanças –os Murdoch, Bob Iger, da Disney, sir Martin Sorrell e outros– cujas empresas ou ex-empresas combinadas despejaram cerca de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,4 bilhões) na Vice ao longo dos anos e perderam quase tudo.

As perdas revelam como um bom discurso de vendas pode impressionar até mesmo os gigantes dos negócios mais experientes –especialmente na era do "dinheiro grátis", na década de 2010, quando investidores procuravam lugares para colocar seu dinheiro.

O dinheiro transformou a Vice de um novato disruptor em um porta-estandarte do futuro da mídia digital. Como o próprio Smith resumiu: "Éramos o irmão menor de todo mundo, até começarmos a receber muito dinheiro das pessoas".

GAROTO NOVO NO PEDAÇO

Smith começou a Vice há quase três décadas como uma revista de contracultura em Montreal (Canadá). Seu público inicial de alguns milhares de canadenses procurava a Vice por seus artigos subversivos sobre música, moda, drogas e sexo –temas que continuaram sendo uma parte central da marca.

Em 1999, Smith mudou a operação para Nova York e fez amizade com o diretor Spike Jonze e o executivo de mídia Tom Freston. Com o incentivo deles, expandiu a Vice para o vídeo online, para onde o dinheiro da publicidade estava migrando na década de 2010.

A Vice ganhou muitos seguidores por sua mistura eclética de cobertura de amenidades –como uma enviada por um jornalista que tomou LSD e foi à exposição de cães em Westminster– com documentários premiados sobre o Estado Islâmico no Iraque e na Síria filmados em um estilo gonzo característico.

As principais publicações da mídia ficaram maravilhadas com a Vice, o novo garoto radical do bairro. "News Corp, Time Warner, Bertelsmann, Condé Nast... todos estão atrás de nós", disse Smith ao Financial Times em 2012.

Os maiores conglomerados de antiga mídia se juntaram. Os US$ 70 milhões da Fox foram seguidos pela Disney em 2015, com uma participação de US$ 200 milhões (R$ 999,6 bilhões) que rapidamente dobrou. Em 2014, Smith distribuiu pessoalmente US$ 1.500 (R$ 7.480) em dinheiro para cada funcionário numa festa para toda a empresa, na qual o rapper Lil Wayne se apresentou. A mensagem provocativa de Smith para a velha mídia era clara: junte-se a nós ou fique para trás.

Cheio de dinheiro, Smith anunciou em 2015 que a Vice faria uma "onda de negócios" agressiva. Ele assumiu um novo projeto alto e caro: lançar um canal de notícias a cabo. Descrevendo ambições de construir um híbrido de "MTV, ESPN e CNN" para a geração do milênio, a Viceland rapidamente se expandiu para dezenas de países em uma série de joint ventures.

Nessa época, a Vice passou vários meses discutindo com a Disney a aquisição de toda a empresa, mas um acordo não se concretizou, segundo quatro pessoas familiarizadas com o assunto.

O que começou como uma revista impressa se transformou numa produtora de vídeo e televisão online com uma série de acordos globais de distribuição e licenciamento, incluindo um noticiário noturno para a HBO e uma agência de publicidade interna. De alguma forma, mesmo enquanto produzia vídeos patrocinados para corporações tradicionais como a GE, a Vice manteve seu fator "cool".

Entra em cena a TPG, um dos maiores grupos de capital privado do mundo, que ficou conhecido como investidor astuto em valores e ativos problemáticos na década de 1990, recuperando companhias aéreas, bancos e empresas falidas como Burger King e J Crew.

Na década de 2010, com as taxas de juros pairando em torno de zero e as avaliações corporativas disparando, o conjunto limitado de compras de barganha forçou a TPG a entrar no chamado patrimônio de crescimento.

Nesses negócios, a TPG financiou empresas prestes a abrir o capital que precisavam de uma última infusão de dinheiro antes de atingir a velocidade de escape. A TPG fez grandes apostas no Uber, Airbnb e Spotify, entre outros, que renderiam muito.

Mas esses investimentos vêm com condições destinadas a proteger os interesses do investidor. O dinheiro da TPG e da Sixth Street entrou via ações preferenciais em vez de ações ordinárias. As ações preferenciais pagavam um dividendo de 12% na forma de ações adicionais e dívida subordinada, em vez de dinheiro, e tinham outros direitos de pagamento prioritário que contribuíam para uma "estrutura de patrimônio complexa e restritiva", de acordo com os pedidos de falência. Esse investimento, no entanto, deixou espaço para empréstimos preferenciais de prioridade mais alta a serem realizados pela Vice nos anos à frente.

Não foram as letras miúdas do negócio, mas sim a impressionante avaliação de US$ 5,7 bilhões da Vice que ganhou as manchetes. A TPG colocou o valor da Vice em mais que o dobro do valor de mercado do The New York Times na época e mais de 22 vezes o que Jeff Bezos pagou pelo The Washington Post em 2013.

Insiders e investidores da Vice apontam o entusiasmo de Smith –que ajudou a transformar uma pequena revista punk em um império de mídia global em expansão– como o motor por trás do que se tornou um ciclo tóxico de avaliações cada vez mais altas.

"Quando você levanta dinheiro em avaliações crescentes, se você se retratou em um determinado valor, acaba gerenciando a estratégia do negócio de acordo com ele", diz um grande investidor da Vice. "Portanto, se você estabeleceu que é uma empresa de US$ 10 bilhões, precisa crescer de uma forma que seja... irracional."

No entanto, a avaliação de 2017 foi uma espécie de miragem. Uma pessoa próxima às finanças da empresa observa que, embora o investimento em ações preferenciais da TPG tenha avaliado a Vice em um total de US$ 5,7 bilhões, esse número foi amplamente planejado para fins de marketing.

Em vez disso, o número-chave na época era a "preferência de liquidação" sobre as ações preferenciais de 1,8 vez. Isso significava que, em caso de falência, a TPG e a Sixth Street tinham direito a receber US$ 810 milhões –seu investimento original de US$ 450 milhões multiplicado por 1,8– antes que qualquer outro dos então acionistas pudesse obter qualquer receita.

'CAOS TOTAL'

Quando a TPG entrou em cena, em 2017, as rachaduras começaram a aparecer no império Vice.

Viceland, que Smith havia prometido que "traria a geração do milênio de volta à TV", foi um fracasso, atraindo audiências minúsculas. A empresa ainda estava ganhando elogios por seu jornalismo, notadamente um despacho de um comício neonazista de 2017 em Charlottesville, na Virgínia.

Mas a equipe executiva de Smith, bem como os investidores e funcionários da Vice, estavam ficando impacientes. "As pessoas ficaram furiosas por não terem ficado ricas como Shane tinha prometido", diz um ex-executivo sênior.

"Tudo era: junte-se a nós, obtenha patrimônio, estamos em ascensão na nova mídia (...) havia muitos jovens que não entendiam o que significa estrutura patrimonial", diz o executivo, apontando para funcionários que ingressaram na empresa com salários de apenas US$ 40 mil por ano.

A Vice gastou muito para lançar seus canais de televisão, pressionando suas finanças, no momento em que a publicidade online estava diminuindo. Sobrecarregada por seu erro de cálculo com a Viceland, a Vice errou suas metas de receita em US$ 100 milhões em 2017.

Fechando o ano ruim, dias antes do Natal, The New York Times publicou um relatório de má conduta sexual generalizada na empresa. A irreverência da Vice, antes um ativo, tornou-se um passivo. Ex-executivos descrevem aquele momento como o ponto de inflexão em que a empresa mergulhou no "caos total".

Em meio a todos esses fatores, alguns investidores acabaram culpando a TPG pela queda da Vice.

"O private equity faz isso: eles dão a você uma avaliação alta. Mas o papel que lhe dão é como uma corda no pescoço, que fica mais apertada enquanto você não tiver um evento de liquidez", diz um antigo acionista, referindo-se a um IPO (oferta pública inicial, em português) ou a uma venda da empresa. "Se passar de dois anos, esqueça. Eles basicamente são os donos da empresa."

Outros investidores da Vice dizem que a estrutura de capital da TPG criou uma atmosfera combativa porque a posição preferencial da TPG a deixou com incentivos diferentes dos acionistas, que pareciam estar na mesma situação. "A tabela de investimentos jogou um contra o outro", diz um desses investidores.

Alguns insiders rejeitam a representação. "Esse tipo de negócio é difícil de administrar", diz outra pessoa próxima ao conselho. "A cultura era voar alto, correr e atirar, e eles se meteram em alguns problemas."

Um investidor diz que o problema da Vice não eram as condições ligadas ao dinheiro, mas o fato de que a empresa continuava tendo uma hemorragia de caixa a cada ano, queimando, segundo sua estimativa, US$ 1 bilhão nos últimos anos. O que faltava à Vice era uma voz mais forte na sala de reuniões pedindo uma estratégia de negócios sustentável, diz o investidor.

Pessoas próximas à TPG rejeitam a sugestão de que seus termos de financiamento eram muito onerosos, observando que ela nunca recebeu juros ou distribuições de dividendos em dinheiro e continuou a injetar dinheiro na Vice após seu acordo original de ações preferenciais em 2017.

Em 2018, com a empresa em crise, Smith trouxe Nancy Dubuc, uma respeitada veterana da televisão, para assumir o cargo de diretora-executiva. Sua tarefa era fortalecer a empresa e lidar com as "coisas corporativas chatas", como descreve um funcionário. Mas naquele ano as perdas operacionais dispararam para mais de US$ 200 milhões, diz uma pessoa familiarizada com as finanças. Dubuc se mexeu para reduzir custos, cortando pessoal como parte de uma reestruturação.

Mesmo com a deterioração das perspectivas da Vice, investidores novos e antigos –incluindo TPG, Sixth Street, Disney, Technology Crossover Ventures, Lupa e o Antenna Group de James Murdoch– injetaram mais capital na forma de dívida júnior e ações preferenciais.

Isso continuou mesmo após a pandemia de Covid-19. De acordo com os autos do processo, a Vice conseguiu arrecadar mais de US$ 300 milhões em 2020 e 2021, enquanto buscava em vão um comprador ou uma listagem pública por meio de uma fusão com uma empresa de propósito específico para aquisição (Spac, na sigla em inglês). Grande parte das ações e dívidas preferenciais acumulavam dividendos e juros a taxas de dois dígitos, mesmo que não fossem débitos imediatos em dinheiro.

Em 2022, a TPG e a Sixth Street assumiram o controle do conselho da Vice, na esperança de vendê-la por US$ 1,5 bilhão ou conseguir centenas de milhões por partes diferentes da empresa. As reuniões do conselho começaram a se assemelhar a reuniões de acionistas, com discussões centradas na venda da empresa, em vez de operações ou estratégia, segundo participantes das reuniões.

O processo de vendas coincidiu com uma reavaliação do mercado para empresas de mídia e tecnologia e uma desaceleração do mercado publicitário. À medida que o Federal Reserve aumentava as taxas de juros, Wall Street azedava com empresas que não eram lucrativas ou o eram apenas de forma marginal.

O financiamento mais importante da Vice Media foi um empréstimo garantido de US$ 250 milhões (R$ 1,2 bilhão) liderado por outro fundo de ponta, o Fortress Investment Group, em 2019. O vencimento desse empréstimo no final de 2022, junto com sua classificação prioritária na pilha de capital da Vice, colocou a Fortress em posição de obter o controle de uma Vice Media reorganizada.

Foi exatamente o que aconteceu na semana passada, quando a Vice entrou com pedido de falência, com a Fortress fechando um acordo preliminar para trocar US$ 225 milhões (R$ 1,1 bilhão) em dívidas pela propriedade da empresa.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Estar sob administração de terceiros é um momento humilhante para Smith, que se gabou por anos da velha mídia. Em 2016, ele disse que o setor de mídia estava à beira de um "banho de sangue" e que "estaremos sentados lá rindo loucamente", enquanto previa que a Vice poderia em breve valer US$ 50 bilhões (R$ 249,9 bilhões).

A Fortress está disposta a manter Smith em alguma função, de acordo com uma pessoa familiarizada com o assunto. Os executivos da Fortress falam muito bem do estúdio da Vice e das unidades de notícias de televisão, bem como da agência de publicidade Virtue. Eles estão menos interessados no negócio de publicação online da Vice, onde procurarão cortar custos. Mas a Fortress não tem planos hoje de fechar a Vice News, de acordo com pessoas próximas à situação.

Além da TPG e da Disney –que já havia liquidado toda a sua participação em 2019–, outra pessoa que sofreu perdas com o desastre da Vice é James Murdoch. Depois de servir em seu conselho por vários anos enquanto era executivo-chefe da 21st Century Fox, Murdoch usou parte de seus rendimentos do acordo de sucesso de seu pai, Fox-Disney, para investir na Vice. Foi uma de suas primeiras apostas depois de sair da sombra do pai. "James está superenvolvido", diz uma pessoa próxima ao conselho. "É o dinheiro dele, mas também é reputacional."

Especialistas da empresa insistem que a estrutura de custos da Vice melhorou consideravelmente com a contribuição dos investidores de private equity, mesmo que a receita não tenha se recuperado. O que antes era um conjunto complexo de segmentos de mídia díspares foi simplificado e o número de funcionários foi reduzido pela metade.

Insiders e investidores da Vice estão esperando que outro interessado entre na sala. Eles acreditam que o processo de falência livrará a Vice de seu labirinto de passivos financeiros, surgindo de forma mais enxuta e atraente para os compradores.

"Não há melhor vendedor do que Shane ´[...] e essa avaliação [atual] não poderia ser menor", diz uma pessoa próxima ao conselho. "Comprar algo barato cura muitos males."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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