Descrição de chapéu O que foi a Ditadura

Empresas criaram rede de chefes de segurança para ajudar repressão na ditadura

OUTRO LADO: Companhias citadas dizem desconhecer prática; Confab, Caterpillar, Embraer, Ericsson, Ford, Johnson & Johnson, Petrobras e Scania não responderam

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São Paulo

Indústrias e empresas da capital e da região metropolitana de São Paulo, do Vale do Paraíba e de outras cidades do interior e do litoral paulista criaram uma rede integrada de chefes de segurança para espionar seus trabalhadores durante a ditadura militar, mostram documentos da Aeronáutica.

O sistema de vigilância incluía ainda agentes de informação de diversos órgãos, como Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e militar.

A espionagem dessa rede acabou levando um grupo de operários a serem carimbados como subversivos, "inimigos da pátria". Os que foram demitidos tiveram dificuldades de obter recolocação.

Centenas de pessoas carregam faixas grandes; a faixa mais à frente tem escrito 'dia nacional de luta contra a carestia e o desemprego e pró-CUT '
Passeata no dia de luta nacional contra a carestia e o desemprego - Jorge Araújo - 1981/Acervo Folhapress

Relatório do Serviço de Informações da Aeronáutica (Cisa) comprova a existência e pleno funcionamento desse grupo, que recebeu o nome de Centro Comunitário de Segurança no Vale do Paraíba (Cecose-VP), nas décadas de 1970 e 1980. O objetivo era trocar informações sobre as lideranças e ativistas sindicais.

Ações do Cecose-VP estão relatadas no boletim nº 042, de 18 de julho de 1983, do Cisa. São dez páginas com informações sobre reuniões e assembleias de várias categorias de trabalhadores, incluindo metalúrgicos, petroleiros e operários da indústria química.

O primeiro item do documento destaca reunião organizada pela chefia de segurança da Indústria Villares no centro, integrada por "elementos de segurança e informações de grandes empresas", no dia 6 de julho de 1983. Além dos informes, foram relatadas demissões de trabalhadores, seguindo sugestões dos chefes de segurança presentes no encontro.

O relatório timbrado com o selo "confidencial" possui um carimbo na última página em que descreve a responsabilidade pelo sigilo das informações. "O destinatário é responsável pela manutenção do sigilo deste documento (art. 12 dec. Nº 79.099/77, regulamentado pela salvaguarda de assuntos sigilosos)."

Além de representantes de unidades do Exército, o encontro contou ainda com chefes do Centro Tecnológico Aeroespacial (CTA), das polícias Civil, Federal e Militar e chefes de seguranças de mais de duas dezenas de empresas.

O texto mostra que na Vibasa (Villares Indústrias de Base), o objetivo era demitir "aproximadamente 200 empregados, de diversas profissões".

O setor de segurança da Petrobras informou que os petroleiros "estavam articulando para o dia 15 de julho de 1983, um movimento que denominaram como ‘DIA DE LUTA’, provável início da greve geral".

O serviço de informações da Aeronáutica relata ainda a existência de uma "Comissão do Sindicato da categoria que funciona no horário do almoço, visando a sindicalização daqueles que ainda não são sócios do mesmo" dentro da antiga Engesa.

A Engesa (Engenheiros Especializados S/A) era uma empresa que atuava nos setores bélico, petrolífero e automobilístico. Nas décadas de 1970 e 1980, em plena ditadura militar, se transformou numa das maiores empresas do setor bélico brasileiro, junto com a Avibras e a Embraer. Faliu em 1993.

Já representante da Confab informou à rede de segurança sobre a demissão de 318 pessoas. "Os atuais empregados da Empresa estão contribuindo com 1% de seus salários para um Fundo de Assistência aos seus colegas que foram demitidos", acrescentou. Trata-se do Fundo de Greve.

Na contramão das demissões, a Ford relatava que a "Unidade de Taubaté está admitindo 100 empregados, devido a fabricação de seu novo automóvel ‘ESCORD’ (sic.)".

A Ericsson anunciou "previsão, para setembro de 1983, de uma dispensa na ordem de aproximadamente 480 empregados". A então estatal Telesp destacou que seus funcionários estavam em "estado de greve".

Um outro impresso dos órgãos de informação da ditadura militar mostra que "o Cecose-VP tem por hábito reunir-se mensalmente em diferentes locais, com finalidade de trocar dados sobre segurança patrimonial e industrial".

A CNV (Comissão Nacional da Verdade), em seu relatório final apresentado em dezembro de 2014, concluiu que havia uma política estatal sustentando a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres contra a população civil.

Caracterizando-os como crimes contra a humanidade, fez 29 recomendações ao Estado brasileiro com o objetivo de que as práticas criminosas não se repetissem e que a democracia e suas instituições fossem aperfeiçoadas.

Porém não há recomendação sobre a colaboração de empresas e empresários com os órgãos de repressão na ditadura. Tampouco foi citada necessidade de aprofundar investigações para que fossem responsabilizados os agentes civis e empresariais que colaboraram com os militares.

Parte dos estudos sobre a ditadura militar brasileira tem buscado identificar os setores civis que ofereceram sustentação ao golpe de 1964 e ao regime ditatorial. Pesquisas recentes comprovam que o apoio civil foi dado, principalmente, por determinadas empresas nacionais e multinacionais sediadas no país. Essas reflexões demonstram que havia um apoio civil específico ao golpe e à ditadura, capitaneado por um empresariado de altíssimo poder aquisitivo.

A CNV se dedicou a compreender a natureza deste relacionamento em diligências, escuta de testemunhos e seminários. A principal conclusão foi que empresários se valeram do arcabouço repressivo da ditadura para coagir os trabalhadores, inclusive financiando diretamente as práticas de tortura.

As recomendações da CNV, contudo, não apresentam sugestões específicas para esse tema, aponta o Instituto Vladimir Herzog.

Foto em preto e branco mostra gradil em frente ao qual estão três homens de jaqueta e boné
Metalúrgicos, durante greve na região do ABC - Folhapress - 1.jun.1978

OUTRO LADO

A Villares Metals, nome atual da antiga Villares e Vibasa, informa que "não compactua com tais atos e desconhece qualquer atividade dessa natureza", referindo-se à prática citada no relatório do setor de informações da Aeronáutica.

A General Motors responde que "é uma companhia que defende a democracia, respeita a legislação nos países onde atua e segue rígidas regras de compliance em todo o mundo. Não há histórico de que a empresa tenha se envolvido nas atividades relacionadas durante o período da ditadura militar no Brasil. Reiteramos nosso compromisso com os ideais democráticos e refletimos esses valores em todas as nossas operações".

A Avibras diz que "não há registros deste assunto (relatórios de colaboração com órgãos de repressão na ditadura) nos arquivos da empresa". A assessoria de comunicação da companhia afirma ainda que "os profissionais que, por ventura, poderiam ter atuado neste grupo já faleceram, ou seja, não temos condições de fornecer informações a respeito".

Outra negativa vem da Rhodia: "A direção da Rhodia desconhece o assunto e não tem comentários a fazer a respeito".

A assessoria de comunicação da Usiminas, atual controladora da Cosipa, informou através de nota que a antiga estatal produtora de aço em Cubatão "foi privatizada em agosto de 1993, quando a Usiminas ingressou em seu quadro acionário. Portanto, a empresa não tem o que comentar" sobre os fatos ocorridos durante a ditadura militar.

A Confab foi incorporada por empresa internacional e opera na cidade de Pindamonhangaba. Não houve retorno da empresa e do departamento de relações com a mídia. Também contatadas, Caterpillar, Embraer, Ericsson, Ford, Johnson & Johnson, Petrobras e Scania não responderam aos questionamentos da reportagem.

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