Ex-diretora da Americanas transferiu bens ao filho antes do anúncio do escândalo contábil

OUTRO LADO: Advogado de Anna Saicali diz que não houve intenção de proteger patrimônio

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São Paulo

A ex-diretora da Americanas Anna Christina Ramos Saicali transferiu para seu filho as quotas de uma empresa com patrimônio de R$ 13 milhões a menos de 20 dias do anúncio feito pela companhia, em 11 de janeiro, de que havia "inconsistências contábeis" da ordem de R$ 20 bilhões no balanço.

A executiva ocupava uma das posições na diretoria estatutária aprovada pelo conselho de administração da Americanas, mas foi afastada, assim como os outros diretores, depois da revelação do escândalo contábil, que virou alvo de apuração na CVM (Comissão de Valores Mobiliários), na Polícia Federal, no Ministério Público e na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Câmara dos Deputados.

Em comunicado divulgado ao mercado pela nova gestão da companhia em 13 de junho, Saicali foi apontada como uma das participantes da fraude, ao lado de Miguel Gutierrez, ex-CEO da empresa, e dos ex-diretores José Timótheo de Barros e Márcio Cruz Meirelles, além de outros executivos.

O desembarque de Gutierrez já estava definido desde agosto do ano passado, quando a varejista anunciou que ele seria substituído por Sergio Rial, um executivo recrutado fora da companhia.

Fachada de uma loja da Americanas com a logomarca da rede acima da porta de entrada e 3 pessoas à frente, uma mulher ao centro, entrando na loja, um homem parado à esquerda e outro à direita
Fachada de loja da Americanas em Brasília - Ueslei Marcelino - 19.jan.23/Reuters

Procurada pela Folha, a defesa de Saicali negou que a transferência dos bens para o filho tenha tido por finalidade proteger o patrimônio dela de eventuais medidas decorrentes das investigações, como a penhora de bens. Segundo o advogado de Saicali, Antenor Madruga, a cessão "decorreu de planejamento sucessório motivado por questões de saúde".

Documentos registrados na Junta Comercial de São Paulo mostram que Saicali formalizou em junho de 2018 a abertura de uma empresa chamada Taboca Ventures Participações Ltda., com sede em um apartamento de um prédio residencial que fica em um condomínio atrás do Shopping Iguatemi, na zona oeste de São Paulo.

Os papéis indicam que a firma tem a natureza de uma holding, com a finalidade de "constituir sociedades para atuar em setores diversos da economia" e "participar em outras sociedades, como sócia, quotista, acionista ou qualquer outra forma inclusive, através de consórcios e contas de participação".

Na abertura, o capital social era de R$ 800 mil, integralizado em dinheiro. Saicali foi indicada como sócia-administradora e detentora de quase 100% das quotas, tendo seu filho Antonio Saicali Montanha Alves Correa como único sócio e dono de apenas uma quota no valor de R$ 1.

Em julho de 2019, por meio de uma alteração do contrato social da Taboca, Saicali transferiu à empresa aproximadamente R$ 9 milhões em dinheiro e imóveis para elevar o capital da firma.

Por meio de nova alteração no fim do ano passado, Saicali cedeu para seu filho quase a integralidade de suas cotas na companhia, no valor total de mais de R$ 13 milhões, ficando com somente uma quota no valor de R$ 1.

O mesmo instrumento contratual formalizou também a transferência à Taboca de um terreno em São José do Rio Preto (SP) e uma fazenda em Sud Mennucci (SP), avaliados em cerca de R$ 2 milhões e R$ 800 mil, respectivamente, para aumentar o capital social da empresa.

Essa alteração contratual tem data de 23 de dezembro de 2022. A Americanas veio a público em 11 de janeiro de 2023 para anunciar as "inconsistências contábeis" da ordem de R$ 20 bilhões.

O ex-presidente da Americanas, Miguel Gutierrez, fez movimentação semelhante, segundo reportagem da revista Piauí. Em abril a publicação mostrou a transferência de três imóveis de seu patrimônio para empresas em nome de seus parentes e dele mesmo, no valor total de R$ 2,1 milhões, entre 26 de setembro de 2022 e 2 de janeiro de 2023, durante o processo de mudança no comando da varejista.

Segundo nota de sua assessoria de imprensa, "Miguel Gutierrez nega veementemente a acusação de participação em fraude ou qualquer medida para ocultar patrimônio".

"Miguel poderá esclarecer às autoridades que o requisitarem as circunstâncias de toda e qualquer transação que tenha realizado ao longo da vida", completa a nota.

Em uma carreira de aproximadamente 25 anos na Americanas, Anna Saicali se notabilizou por ser uma das poucas mulheres em cargos de liderança no mundo corporativo brasileiro, que há pouco mais de uma década não passava de 2% de participação feminina no comando de grandes empresas, segundo levantamento da consultoria de recrutamento Grant Thornton.

Em seus anos na varejista, ela atuou nos primórdios da operação de ecommerce da companhia e acompanhou 29 aquisições do grupo, como Hortifruti Natural da Terra e a participação no Grupo Uni.Co (dono de franquias como Imaginarium e Puket), que entraram na proposta de venda do plano de recuperação judicial.

Com formação em artes plásticas pela Universidade Mackenzie, Saicali direcionou a carreira para a área de recursos humanos, e sua trajetória evoluiu nos projetos de inovação da Americanas. Ela ingressou na varejista em 1997, nos departamentos responsáveis por pessoas e tecnologia.

A executiva despontou nos negócios da companhia desde a fusão entre a Americanas.com e a Submarino, no acordo assinado em 2006 para a formação da B2W, o gigante do comércio online no Brasil, como era visto na época. Saicali, que também foi CEO da Americanas.com, ficou responsável por chefiar a B2W. E seguiu como presidente da B2W até 2018, quando ajudou a fundar e assumiu a presidência da Ame Digital, fintech do grupo que reúne serviços como carteira digital e seguros, posição que ocupava até ser desligada da empresa, neste ano.

Em 2021, depois que as operações das Lojas Americanas foram unificadas com a B2W na estratégia de combinar o varejo físico ao online do grupo sob a Americanas S.A., em meio às transformações da pandemia no setor, Saicali permaneceu designada para comandar a frente de inovação da companhia, como presidente do IF (Inovação e Futuro), aceleradora para investimento em startups.

Foi no mesmo ano que a diretoria estatutária passou a ser formada por Gutierrez, Timótheo de Barros, Meirelles e Saicali, todos na empresa desde a década de 1990. Juntos, os membros da diretoria estatutária tiveram remuneração de R$ 49,6 milhões em 2022. A eleição dos quatro, que a companhia hoje acusa de participarem da fraude, foi aprovada pelo conselho de administração da varejista, composto por nomes como o bilionário Carlos Alberto Sicupira e Paulo Alberto Lemann, filho de Jorge Paulo Lemann, do trio de acionistas de referência.

Diante das turbulências da pandemia, Saicali também incorporou funções ligadas ao ESG da Americanas, com a liderança do comitê criado pelo grupo para promover ações sociais e a participação em movimentos em defesa da equidade racial.

Desde a eclosão do escândalo contábil, ela tem evitado manifestações públicas. Procurada pela reportagem, não quis conceder entrevista. Saicali deve se pronunciar na CPI da Americanas, que aprovou requerimento para ouvi-la, assim como os outros ex-diretores.

TRANSFERÊNCIA DE BENS FOI MOTIVADA POR PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO, DIZ DEFESA

A Folha questionou a defesa de Saicali se a cessão de quotas para seu filho teve por finalidade proteger seu patrimônio de eventuais medidas como penhora de bens, decorrentes de investigações ligadas às "inconsistências contábeis" ou fraudes da ordem de R$ 20 bilhões supostamente encontradas na Americanas.

O advogado Antenor Madruga, defensor de Saicali, afirmou que "a cessão de quotas foi pública, registrada na Junta Comercial, de mãe para filho, que já era sócio da empresa. Não teve, portanto, qualquer propósito de proteger patrimônio".

"A cessão decorreu de planejamento sucessório motivado por questões de saúde, de natureza estritamente pessoal e familiar, que a Anna prefere, por questões de privacidade, não comentar", completou.

Em relação às acusações feitas na CPI das Americanas de que a diretoria da qual ela participou teria envolvimento nas supostas fraudes da ordem de R$ 20 bilhões, Madruga afirmou que Saicali "nega veementemente qualquer conhecimento ou participação nas supostas fraudes".

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