O que pode mudar no Carf e por que isso é importante?

Câmara aprovou projeto de lei que altera regras da última instância de julgamento de questões tributárias

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São Paulo

Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que muda as regras do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), última instância de julgamento de questões tributárias na administração federal.

O resultado representou uma vitória parcial para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Foi preciso chegar a um meio-termo com os deputados para fazer a proposta avançar e ela ainda passará pelo Senado.

Pessoas passam pela fachada externa do Carf, em Brasília, ela tem cor bege, uma porta de vidro de cor mais escura e uma placa azul com a sigla Carf
Fachada externa do Carf, em Brasília - André Corrêa/Senado Federal

Veja, a seguir, algumas das principais mudanças:

O que é o Carf?

O Carf funciona como um tribunal da Receita, que julga causas tributárias na esfera administrativa (sem envolver o Judiciário) —a União e as empresas têm disputas bilionárias em torno do pagamento de tributos. Ele reúne representantes da Fazenda e dos contribuintes e as empresas têm indicados por entidades patronais.

O Carf surgiu em 2009, da junção de três conselhos. Para se ter uma dimensão, de janeiro a abril, foram concluídos 5.000 processos pelo conselho, envolvendo R$ 139 bilhões.

Quem participou da negociação?

Esse era um dos principais pontos do pacote de ajuste fiscal da equipe econômica, e a negociação contou com o ministro Fernando Haddad, que conversou com representantes do setor privado, congressistas, o relator da proposta, Beto Pereira (PSDB-MS) e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

O andamento da proposta também era importante para "destravar" a pauta econômica na Câmara, que inclui questões consideradas fundamentais pelo governo, como o novo arcabouço fiscal e a Reforma Tributária.

O que estava em jogo?

O governo queria voltar a ter o chamado voto de qualidade, em que poderia definir o resultado de uma disputa em caso de empate, mas que foi extinto pelo Congresso em 2020. As empresas reclamavam que essa ferramenta fazia com que o governo ganhasse sempre.

A União, por sua vez, argumentava que o fim do voto de qualidade gerou uma perda de arrecadação de R$ 59 bilhões, e o retorno dele era importante para ajudar no resultado primário (esse é o saldo entre despesas e arrecadação do governo, sem contar os juros da dívida pública).

O voto de qualidade chegou a ser recriado via MP (medida provisória) enviada ao Congresso em janeiro, logo no início do governo do presidente Lula (PT), com efeito imediato, mas que perdeu validade.

O governo também defendia que, caso o contribuinte perdesse a disputa no desempate, poderia recorrer à Justiça, mas se o desempate fosse a favor do contribuinte, o crédito tributário se extinguiria definitivamente e a Receita não poderia brigar na Justiça.

E quem pode acionar o Carf?

O valor mínimo em disputa para recorrer ao Carf é de 60 salários mínimos (R$ 79,2 mil). Haddad também tentava elevar esse valor para mil salários mínimos (R$ 1,32 milhão), para reduzir o número de processos. A MP do governo, antes de perder a validade, já fazia isso, mas o relator manteve a regra atual, de 60 salários.

"Houve um apelo do setor produtivo, frentes parlamentares e diversas confederações, um questionamento muito grande sobre cercear o direito do contribuinte", justificou o relator.

O governo ganhou ou perdeu?

A aprovação é considerada uma vitória para o governo, sobretudo para o ministro da Fazenda, mas o texto que passou na Câmara na semana passada colocou condições para a volta do voto de qualidade.

Em caso de empate, a cobrança do valor principal do débito continua valendo, mas são perdoados juros e multas, caso a dívida seja quitada na esfera administrativa. O Fisco também não pode representar o contribuinte ao Ministério Público por crime tributário.

Também ficou definido que, em até 90 dias do julgamento definitivo a favor da Fazenda, o contribuinte poderá pagar o débito sem juros de mora (por atraso) acumulados. Esses juros são calculados pela taxa Selic (os juros básicos, hoje em 13,75% ao ano), desde o momento de lançamento do crédito devido. É como colocar um prêmio para que ele pague sem precisar levar o processo ao Judiciário.

A mudança é boa ou ruim?

Os analistas têm divergido sobre as mudanças no Carf.

Para Livio Ribeiro, sócio da consultoria econômica BRCG e pesquisador associado do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), trata-se de um ganho para o governo —ainda que não seja uma vitória completa.

"Era uma estratégia de receita de curto prazo. Se por um lado, essa estratégia deu certo, diversos atenuantes foram colocados pelo relator. Não vejo como positivo ou negativo, mas essas mudanças podem nos levar a uma instabilidade de regras, o que é algo muito nocivo", diz.

"Se a solução seguir como foi aprovada pela Câmara, é um meio-termo, em que governo e contribuintes ganham e perdem. Os contribuintes perdem a possibilidade anterior, de desempate favorável a eles. Por outro lado, ganham pelo voto de qualidade derrubar todas as multas e a representação fiscal para fins penais", afirma o tributarista Breno Vasconcelos, também da FGV e ex-conselheiro do Carf.

"Já a União ganhou em dois pontos: volta a ter o voto de qualidade e aumentam as chances de recuperar valores devidos —hoje, a recuperabilidade dos processos que se encerram no Carf e são levados ao Judiciário é menor que 5%."

Já o consultor econômico e especialista em contas públicas Raul Velloso não é favorável a passos como esse, que em sua visão procuram meios de resolver a questão fiscal arrecadando mais, especialmente quando se trata de disputas na órbita tributária.

"Tenho dito e repetido que a questão é atacar o crescimento excessivo do gasto previdenciário, algo que a própria Constituição hoje comanda. E temos um caminho bem conhecido para fazer isso sem atingir indevidamente ninguém. Por que não seguir por essa rota?"

Em coluna publicada na Folha no ínicio de junho, o economista Samuel Pessôa avaliou que o retorno à situação que vigorava antes da lei que acabou com o voto de qualidade tornava os incentivos desequilibrados.

"A solução estrutural do problema envolve dois passos. Primeiro, é necessário que avancemos muito na agenda de simplificação para que nos tornemos um país um pouco mais normal em matéria tributária (...) e segundo, que o Carf tenha independência da Receita."

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