Disputa por mercado marca discussão sobre rotativo do cartão de crédito

Saiba como bancos, varejo e diferentes setores de cartões se posicionam na discussão

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Brasília

A solução para os altos juros do rotativo do cartão de crédito —com taxa média de 445,7% ao ano— esbarra em interesses conflitantes de diferentes segmentos do mercado financeiro e em uma intensa disputa que vem sendo travada nos bastidores nas negociações com o governo Lula (PT), o Banco Central e o Congresso Nacional.

Para mapear esse jogo, no qual qualquer movimento precipitado pode levar a um desequilíbrio que teria como principal prejudicado o consumidor final, a Folha conversou com representantes de bancos, varejo, comércio, serviços e diferentes setores do mercado de cartões.

Foram três perguntas feitas a cada um deles para entender quais são as propostas de cada setor para o rotativo, o principal risco observado nas discussões em andamento e o provável caminho para avanço nas negociações.

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Rotativo é um tipo de crédito acionado quando o cliente não paga o valor integral da fatura do cartão na data de vencimento - Eduardo Knapp - 23.jul.21/Folhapress

Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços, que representa parte das empresas de maquinhas de pagamento, dos emissores de cartões e das bandeiras), Abranet (Associação Brasileira de Internet, que representa outras empresas de maquininhas), Febraban (Federação Brasileira de Bancos) e IDV (Instituto para Desenvolvimento do Varejo) são unânimes em reconhecer a necessidade de mudanças no rotativo do cartão, embora refutem o tabelamento de juros para a modalidade.

O grande entrave está no esboço dessa reformulação.

De um lado, os bancos defendem que alterações no rotativo passem por um redesenho do parcelamento de compras sem juros. De outro, empresas de maquininhas de cartão contestam a correlação feita entre os dois temas e defendem que o parcelado sem juros não entre em pauta.

O grande varejo, por sua vez, admite uma limitação gradual nas compras parceladas sem juros, enquanto representantes da indústria do cartão, que inclui emissores e bandeiras, falam em correção de distorções e aperfeiçoamento da modalidade.

Contra o fim do rotativo, a Abipag (Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos) diz ser preciso implementar medidas para aumento da competição no mercado de crédito. A FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo), por sua vez, pede maior vigilância sobre as regras vigentes para o rotativo e investimento em educação financeira dos consumidores.

No Congresso, o relatório do deputado Alencar Santana (PT-SP) estipula um prazo de 90 dias para que, por autorregulação, seja definido um patamar de juros para o rotativo e para quem parcela o pagamento da fatura do cartão de crédito.

Se nada for feito, será aplicável um teto que limita a dívida ao dobro do montante original. O texto não aborda o parcelamento de compras sem juros.

Para a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), a causa dos altos juros do rotativo é a oferta excessiva de crédito no país. A entidade se diz alinhada com a proposta de Santana e teme que eventuais mudanças nas compras parceladas sem juros freiem o comércio de maneira desmedida.

Segundo o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a matéria poderá ser votada já na semana que vem. Apesar do andamento célere das tratativas, o debate ainda está longe de acabar.

Conheça o posicionamento dos atores envolvidos na negociação:

Ricardo Vieira, vice-presidente executivo da Abecs

"O grande receio da indústria é um tabelamento de juros. A gente tem muito medo de que uma mexida forte e drástica nas variáveis de receita induza a um desequilíbrio do sistema. Os impactos do reajuste, se não forem bem pensados, podem ser extremamente graves.

O melhor coordenador desse debate é o Banco Central, que é o regulador da indústria. Não existe uma solução única e mágica para a redução da taxa de juros.

Uma cesta de medidas precisa ser adotada. Uma das primeiras medidas da lista, que parece ser um denominador comum da indústria, é substituir o rotativo por um parcelamento automático dos débitos.

Para fazer isso, precisa de um desenvolvimento fortíssimo nas áreas de tecnologia, além de mudanças regulatórias. Precisa também de um amplo processo de comunicação à sociedade. O nível de reclamação junto a entidades de defesa do consumidor vai crescer em um primeiro momento de forma relevante.

Outra variável da equação é a portabilidade, que incentiva a concorrência. Mas a portabilidade por si só não resolve o problema, ela é mais um tijolo nessa construção.

Também defendemos um aperfeiçoamento da resolução 3.919, que define as regras para as tarifas que os emissores de cartão de crédito podem cobrar. A gente entende que o mundo mudou e diversos serviços estão contingenciados desde 2010. É uma frente que tem maturação para meados do ano que vem.

A Abecs é contra a eliminação do parcelado sem juros, mas entende que o seu aperfeiçoamento tem de ser colocado na mesa. Não tem missão predefinida de reduzir ou aumentar [quantidade de parcelas], mas coibir a utilização inadequada do produto.

Propomos a construção de um fórum amplo e técnico, separado por temas. O ideal é que sejam mostrados estudos e análises para que o regulador possa orientar o caminho.

O pior de tudo seria uma migração atabalhoada, com cada agente começando a fazer ajustes em função dos impactos que vem sofrendo. Seria o pior dos mundos."

Evelyn Bueno, diretora da Abipag

"A Abipag é contra o fim do rotativo. Vemos com preocupação medidas legislativas que interfiram na relação entre particulares, especialmente medidas que ofereçam soluções drásticas para problemas complexos, como as taxas de juros cobradas do consumidor final.

Antes, é preciso implementar medidas para aumento da competição no mercado de crédito, por exemplo. Essa sempre foi uma das bandeiras mais defendidas pela Abipag, como representante das instituições de pagamento entrantes que não fazem parte de grandes grupos verticalizados.

Também achamos importante ter incentivos à educação financeira da população, que trazem resultados positivos para a utilização de limites de crédito e instrumentos financeiros em geral, como maior transparência das taxas cobradas nas faturas e no rotativo.

Universalmente, essas medidas se mostraram eficazes para a redução de taxas cobradas ao usuário final, com destaque para a portabilidade do saldo da fatura do cartão.

Para nós, o parcelado sem juros desempenha um papel central na economia popular, especialmente entre os consumidores mais vulneráveis, além de micro e pequenos empreendedores.

Impactar o parcelado sem juros significa a perda de acesso a uma fonte de diversificação de gestão de fluxo de caixa, especialmente para os pequenos comerciantes, que são os mais relevantes na economia e os principais clientes das empresas que compõem a Abipag.

A nossa expectativa é que o projeto no Congresso seja aprovado tal como apresentado pelo relator. O texto atual é bastante preciso e adequado ao enfrentamento do problema que se propõe resolver.

Um ponto importante da proposta é a regulamentação pelo CMN da portabilidade das dívidas decorrentes de operações com cartões de crédito. Isto tem potencial relevante para promover a competitividade no setor."

Carol Conway, presidente da Abranet

"Qualquer solução para o rotativo não passa por mexer nas compras parceladas sem juros. A gente não acha também que a alteração do rotativo passa pela mecânica do curto prazo. Pode diminuir o limite [de permanência] de 30 para 20 ou 5 dias, mas tem de ter um pequeno prazo para quem não quer entrar direto em um financiamento. Pode ser complexa a decisão de acabar 100% com o rotativo.

Tem a portabilidade de dívida. Hoje, quando o cliente entra no rotativo, ele não tem outra opção senão aceitar a taxa de juro que o próprio banco oferece.

Se tiver mais ofertas de taxas, isso pode ter um impacto positivo na redução dos juros pela competição.

A câmara de recebíveis também é uma opção muito boa. Se fizer isso no rotativo, cria um marketplace de dívida. Mesmo que o cliente queira portar a dívida sem estar em atraso, ele consegue. No mercado de recebíveis fez diferença em termos de competição para antecipação das vendas.

Em março de 2011, a taxa mensal de antecipação de vendas parcelada era de 2,53% ao mês dessa antecipação de recebíveis, com Selic de 0,92% ao mês, ou seja, 1,61% de spread.

Em maio de 2023, em um cenário de competição com as câmaras de recebíveis, a taxa de antecipação foi de 1,43% ao mês, com a Selic a 1,12% ao mês, ou seja, 0,31% de spread.

A solução pode passar pelo open finance, que está sendo construído pelo Banco Central para ser um grande provedor de informações e diminuir as assimetrias. Mas não necessariamente. Pode ser qualquer infraestrutura de rede que forneça informação e permita que os players briguem por isso.

O principal risco nas discussões é ter algum tipo de definição que diminua injustamente ou de forma não razoável a oferta de crédito. O melhor caminho é focar no que pode ser feito para diminuir o custo de quem atrasa [o pagamento] no cartão e para melhorar a concessão de crédito por meio do cartão."

Paulo Solmucci, presidente da Abrasel

"Temos um excesso de emissão de cartão de crédito. Saímos de 100 milhões para 215 milhões de cartões, isso levou a uma oferta de crédito até displicente. Para mim, essa é a causa maior do problema. O rotativo é consequência desse excesso de crédito.

Estamos alinhados com a proposta do relator [Alencar Santana] sobre o rotativo. Limitar os juros a um teto de 100% me parece confortável. 100% em um cenário de 12 meses, significa uma taxa de quase 7% [ao mês]. Mas o banco pode fazer isso em menos tempo, com taxas mensais de 8%, 9% ou 10%.

A solução que a gente endereça é a questão da portabilidade. Não faz sentido não ter concorrência por esse crédito.

Na discussão, vejo um conjunto de riscos. Primeiro, ter um freio desmedido no comércio. Se uma pessoa está negativada, mas tem cartão de crédito, ela continua consumindo. Se tira o cartão dessa pessoa e ela tem que parcelar com o banco, não vai conseguir crédito. Isso pode afetar fortemente o comércio.

Outra questão que vejo como perigosa é acabar com a concorrência. Se ‘aleijam’ a maquininha [de cartão] e o parcelado sem juros, haverá concentração nos grandes bancos, que sempre primaram por elevadíssimas taxas. Isso tende a aumentar o custo do negócio.

Além disso, o comerciante usa os recebíveis para dar crédito aos próprios bancos. Essa é a única garantia que o pequeno comércio tem, ele não tem patrimônio, tem apenas o que vende. Se [o lojista] parar de fazer venda parcelada, perde essa garantia. Mais um sufoco de crédito para o comércio.

Hoje, o parcelamento em duas ou dez parcelas faz parte da estratégia de marketing. O parcelado sem juros não é a razão do problema.

O ajuste tem que ser feito onde tem distorção. A distorção é crédito concedido em excesso e sem critério pelos bancos para competirem pelo cliente. Eles falam que bancam o risco, mas não bancam esse risco sozinho. Tem a tarifa de Intercâmbio, que já tem prêmio de risco embutido.

Não queremos uma negociação de bastidor. Temos de ter um ajuste de mercado, não pode ser canetada para proteger os bancos."

Isaac Sidney, presidente da Febraban

"O subsídio cruzado crescente entre os financiamentos com juros e sem juros é a principal causa-raiz dos altos juros do rotativo do cartão de crédito no Brasil. A Febraban propõe o encaminhamento de uma solução que reduza esses subsídios cruzados de forma estrutural.

A gente não trabalha com a hipótese de eliminação do parcelado sem juros, mas com um redesenho na busca de um reequilíbrio econômico desta modalidade.

Há dois riscos no encaminhamento do debate.

O primeiro está em as discussões se limitarem a combater os sintomas, não as causas efetivas dos juros elevados do rotativo. Isso fará com que o sistema siga operando em um equilíbrio econômico frágil, com impactos relevantes para o endividamento das famílias e o risco de crédito, hoje todo concentrado nos bancos emissores, que suportam a elevada inadimplência do rotativo.

O segundo risco está na introdução de tetos arbitrários e artificiais para os juros no rotativo, medida que pode tornar uma parcela relevante dos cartões de crédito em produtos deficitários e inviáveis economicamente. Isso poderá levar à redução drástica e imediata da disponibilidade de crédito ao consumo.

As discussões seguem de forma célere, técnica e colaborativa, mas o tema é muito complexo e não há uma única solução. É ainda prematuro indicar a direção exata que a indústria terá.

A Febraban perseguirá um caminho que dilua o risco de crédito entre os elos da cadeia e elimine os subsídios cruzados.

Temos de, gradualmente, fazer um redesenho do crédito rotativo, mas também um aprimoramento do mecanismo de parcelado sem juros. Isso em uma transição sem rupturas do produto do cartão de crédito e de como ele se financia, para sairmos de um equilíbrio instável para estável e nos alinharmos ao padrão internacional."

Fábio Pina, assessor econômico da FecomercioSP

"A gente imagina que, com maior competição e negociação, o juro rotativo do cartão se acerte no mercado. A informação é o melhor caminho em todos os casos. O consumidor faz parte disso, é quem acaba validando ou não a taxa de juros. Existem necessidades, mas existe uma questão de educação financeira.

O Banco Central, tanto na mão do Ilan Goldfajn quanto do Roberto Campos Neto, deu mais transparência para tarifas, taxas de juros, acho que pode ampliar isso. Quanto mais transparência e conhecimento sobre as opções para o consumidor, melhor.

O parcelado sem juros e o rotativo são práticas que já estão consolidadas. Podemos melhorar, mas temos que tomar muito cuidado porque, a depender da prescrição, o resultado pode ser pior.

Tenho muito medo de intervenções do estado, porque às vezes a intervenção busca resolver um problema e cria dois. É preciso olhar exatamente onde está o problema e como corrigi-lo pontualmente, sem torná-lo ainda maior. A solução não passa só por uma medida, seja do Banco Central ou de qualquer autoridade.

Quando a gente começa a falar em tabelar juros, me preocupo um pouco. Tabelar juros é tabelar preço. Prefiro criar medidas para que os bancos tenham interesse em financiar essas pessoas com outras soluções, tudo é negociável. Cabe ao Banco Central conversar com os bancos e decidir em conjunto a melhor solução no caso do crédito rotativo.

Pode ser melhorada a regra atual do rotativo e a vigilância dessa regra para fazer com que os credores tomem mais cuidado no empréstimo e ofereçam aos seus consumidores linhas melhores. A gente pode trabalhar para reduzir a assimetria de informação entre fornecedor, credor, setor financeiro, lojistas, empresários e consumidores.

No caso do crédito parcelado sem juros, não vejo que exista um problema. O lojista, o consumidor e o credor estão todos de acordo. Quando o lojista coloca sem juros, quem está pagando aquele juro é ele. É claro que isso está embutido no preço, mas é uma estratégia de venda do lojista."

Jorge Gonçalves Filho, presidente do IDV

"Não somos favoráveis a qualquer tipo de tabelamento de juros. O rotativo deveria ser extinto e deveriam ser criadas novas formas de financiar o saldo não pago do cartão.

Essas novas formas teriam de estimular a competição entre instituições financeiras, isso naturalmente iria gerar uma oferta de menor juros.

O principal risco nas discussões em andamento é querer vincular a solução para menores juros no rotativo à extinção da venda com parcelado sem juros. O que não concordamos.

A solução está em encontrar um equilíbrio entre as diversas funcionalidades do uso do cartão como meio de pagamento.

Concordamos que o parcelamento sem juros acabou ficando com prazos muito longos. Era algo que nasceu para substituir o cheque pré-datado e que foi crescendo em quantidade de parcelas.

Entendemos que pode caminhar para uma redução gradual dos prazos nos próximos dois anos, porém mantendo o mínimo de parcelas no parcelado sem juros, porque ele é importante para o médio e pequeno varejo.

O grande varejo tem recursos e consegue esticar o parcelado sem juros por prazo longo. Médio e pequeno não têm esse recurso. Então, é bom também para o médio e para o pequeno [varejo] uma redução, ficando dentro de um prazo de seis vezes no máximo.

Essa coordenação tem de ser do Banco Central, que tem um papel de neutralidade.

Acho importante nesse rearranjo do setor fomentar o crédito para consumo com novas linhas, com juros em que a parcela caiba no bolso do consumidor.

Também tinha de estar nesse contexto um amplo programa de educação financeira. Por exemplo, quem for recuperar crédito deveria passar por um curso pedagógico para conscientização."

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