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The New York Times

Por que parece que tudo o que sabíamos sobre a economia global não é mais verdade

Enquanto os olhos do mundo estavam na pandemia, na guerra na Ucrânia e na China, os caminhos para a prosperidade e interesses comuns se tornaram mais obscuros

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Patricia Cohen
Londres | The New York Times

Quando os líderes empresariais e políticos do mundo se reuniram em 2018 no fórum econômico anual em Davos, na Suíça, o clima era de júbilo. O crescimento estava em alta em todos os grandes países. A economia global, declarou Christine Lagarde, então diretora administrativa do Fundo Monetário Internacional, "está num ponto muito bom".

Cinco anos depois, as perspectivas definitivamente pioraram.

"Quase todas as forças econômicas que impulsionaram o progresso e a prosperidade nas últimas três décadas estão desaparecendo", alertou o Banco Mundial em uma análise recente. "O resultado pode ser uma década perdida, não apenas para alguns países ou regiões, como ocorreu no passado, mas para o mundo inteiro."

Trabalhadores de uma empresa chinesa montam peças para servidores no Centro de Tecnologia da Lenovo, em Apodaca, México - Luis Antonio Rojas/The New York Times

Muita coisa aconteceu desde então: uma pandemia eclodiu; a guerra estourou na Europa; as tensões entre os Estados Unidos e a China ferveram. E a inflação, que se pensava ter sido guardada em segurança junto com os álbuns de discoteca, voltou com força total.

Mas, à medida que a poeira baixou, de repente parecia que quase tudo o que pensávamos saber sobre a economia mundial estava errado.

As convenções econômicas nas quais os formuladores de políticas se basearam desde a queda do Muro de Berlim, há mais de 30 anos –a superioridade infalível dos mercados abertos, comércio liberalizado e eficiência máxima–, parecem estar saindo dos trilhos.

Durante a pandemia de Covid-19, o esforço incessante para integrar a economia global e reduzir custos deixou profissionais de saúde sem máscaras faciais e luvas médicas, montadoras sem semicondutores, serrarias sem madeira e compradores de tênis sem Nikes.

Funcionários trabalham em locais de sepultamento no Cemitério Nacional de Calverton, onde os enterros diários mais que dobraram durante o auge da pandemia de coronavírus, em Calverton, Nova York, em 23 de fevereiro de 2021 - Johnny Milano/The New York Times

A ideia de que o comércio e os interesses econômicos compartilhados impediriam conflitos militares foi pisoteada no ano passado pelas botas dos soldados russos na Ucrânia.

E cada vez mais eventos climáticos extremos que destruíram plantações, forçaram migrações e paralisaram usinas de energia ilustraram que a mão invisível do mercado não estava protegendo o planeta.

Agora, à medida que o segundo ano de guerra na Ucrânia avança e os países lutam contra um crescimento fraco e uma inflação persistente, as questões sobre o campo econômico emergente ocupam o centro do palco.

A globalização, vista nas últimas décadas como uma força tão incontível quanto a de gravidade, está claramente evoluindo de maneiras imprevisíveis. O distanciamento de uma economia mundial integrada se acelera. E a melhor maneira de responder é um tema de debate acirrado.

É claro que as contestações ao consenso econômico reinante vinham crescendo há algum tempo.

"Vimos antes do início da pandemia que os países mais ricos estavam ficando frustrados com o comércio internacional, acreditando –corretamente ou não– que de alguma forma ele os estava prejudicando, a seus empregos e padrões de vida", disse Betsey Stevenson, membro do Conselho de Assessores Econômicos durante o governo Obama.

O colapso financeiro em 2008 quase afundou o sistema financeiro global. A Grã-Bretanha saiu da União Europeia em 2016. O presidente Donald Trump impôs tarifas à China em 2017, provocando uma miniguerra comercial.

A partir da Covid, entretanto, uma série de crises ruidosas expôs com surpreendente clareza vulnerabilidades que exigiam atenção.

Como a empresa de consultoria EY concluiu em sua Perspectiva Geostratégica de 2023, as tendências por trás do afastamento da globalização cada vez maior "foram aceleradas pela pandemia de Covid-19– e depois foram sobrecarregadas pela guerra na Ucrânia".

Visão aérea de prédios danificados por bombardeios na guerra entre Ucrânia e Rússia, em Bakhmut, Ucrânia, em 19 de maio de 2023 - Tyler Hicks/The New York Times

'O fim da história'

A sensação de desconforto atual é um contraste gritante com o triunfalismo inebriante que se seguiu ao colapso da União Soviética em dezembro de 1991. Foi um período em que um teórico pôde declarar que a queda do comunismo marcou "o fim da história" –que as ideias democráticas liberais não apenas venceram as rivais, como representaram "o ponto final da evolução ideológica da humanidade".

As teorias econômicas associadas sobre a inevitável ascensão do capitalismo mundial de livre mercado assumiram um brilho semelhante de invencibilidade e inevitabilidade. Mercados abertos, governo sem intervenção e a busca incansável por eficiência ofereceriam o melhor caminho para a prosperidade.

Acreditava-se que um novo mundo onde mercadorias, dinheiro e informações cruzassem o globo essencialmente extinguiria a velha ordem dos conflitos da Guerra Fria e dos regimes antidemocráticos.

Havia motivos para otimismo. Durante a década de 1990, a inflação foi baixa, enquanto o emprego, os salários e a produtividade aumentaram. O comércio global quase duplicou. Os investimentos nos países em desenvolvimento dispararam. A bolsa de valores subiu.

A Organização Mundial do Comércio foi criada em 1995 para fazer cumprir as regras. A entrada da China seis anos depois foi vista como transformadora. E ligar um enorme mercado a 142 países atrairia irresistivelmente o gigante asiático para a democracia.

A China, juntamente com a Coreia do Sul, Malásia e outros, transformou agricultores em dificuldades em produtivos operários urbanos. Os móveis, brinquedos e eletrônicos que eles vendiam em todo o mundo geraram um crescimento tremendo.

O mapa do caminho escolhido ajudou a produzir uma riqueza fabulosa, tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza e estimulou avanços tecnológicos maravilhosos.

Mas também houve falhas impressionantes. A globalização acelerou as mudanças climáticas e aprofundou as desigualdades.

Nos Estados Unidos e em outras economias avançadas, muitos empregos industriais foram exportados para países com salários mais baixos, removendo um trampolim para a classe média.

Os formuladores de políticas sempre souberam que haveria vencedores e perdedores. Ainda assim, foi deixado para o mercado decidir como empregar trabalho, tecnologia e capital, na crença de que a eficiência e o crescimento viriam automaticamente. Só depois, pensava-se, os políticos deveriam intervir para redistribuir os ganhos ou ajudar os que ficaram sem empregos ou perspectivas.

As empresas embarcaram numa caça ao tesouro mundial por trabalhadores de baixa renda, independentemente de proteções aos trabalhadores, impacto ambiental ou direitos democráticos. Encontraram muitos lugares, como México, Vietnã e China.

Televisores, camisetas e tacos estavam mais baratos do que nunca, mas muitos itens essenciais, como assistência médica, moradia e ensino superior, estavam cada vez mais fora de alcance.

Assistência alimentar durante a pandemia de Covid-19 em Joanesburgo, África do Sul, em 9 de junho de 2020 - Joao Silva/The New York Times

O êxodo de empregos derrubou os salários em casa e minou o poder de barganha dos trabalhadores, estimulando sentimentos anti-imigrantes e fortalecendo líderes populistas de extrema direita como Trump nos Estados Unidos, Viktor Orban na Hungria e Marine Le Pen na França.

Em gigantes industriais avançados, como Estados Unidos, Grã-Bretanha e vários países europeus, os líderes políticos se mostraram incapazes ou relutantes em redistribuir recompensas e ônus de forma mais ampla.

Tampouco foram capazes de evitar danos ambientais. O transporte de mercadorias em todo o mundo aumentou as emissões de gases de efeito estufa. Produzir para um mundo de consumidores exauriu os recursos naturais, incentivando a pesca predatória no Sudeste Asiático e o desmatamento ilegal no Brasil. E instalações de produção baratas poluíram países sem padrões ambientais adequados.

Descobriu-se que os mercados por si só não foram capazes de distribuir automaticamente os ganhos de forma justa ou estimular os países em desenvolvimento a crescer ou estabelecer instituições democráticas.

Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos, disse num discurso recente que uma falácia central na política econômica americana foi assumir "que os mercados sempre alocam capital de forma produtiva e eficiente –não importa o que nossos concorrentes fizessem, não importa o quanto nossos desafios comuns crescessem e não importa quantas salvaguardas derrubássemos".

A proliferação de trocas econômicas entre as nações também falhou em inaugurar o prometido renascimento democrático.

Vendedores ambulantes e pedestres usando máscaras durante a pandemia de COVID-19 em Buenos Aires, Argentina, em 14 de abril de 2021; a China se tornou um credor agressivo para países como a Argentina - Sarah Pabst/The New York Times

A China liderada pelos comunistas acabou sendo a maior beneficiária do sistema econômico global –e talvez a mestra do jogo– sem abraçar os valores democráticos.

"Ferramentas capitalistas em mãos socialistas", disse o líder chinês Deng Xiaoping em 1992, quando seu país estava se transformando no chão de fábrica do mundo. O espantoso crescimento da China fez dela a segunda maior economia do mundo e um importante motor do crescimento global. Durante todo esse tempo, porém, Pequim manteve um controle rígido sobre suas matérias-primas, terras, capital, energia, crédito e trabalho, bem como sobre os movimentos e o discurso de sua população.

Preço pago pelos países pobres

Nos países em desenvolvimento, os resultados podem ser terríveis.

A devastação econômica causada pela pandemia, juntamente com o aumento dos preços dos alimentos e combustíveis causado pela guerra na Ucrânia, criou uma onda de crises de dívida. O aumento das taxas de juros piorou essas crises. Dívidas, como energia e alimentos, muitas vezes são cotadas em dólares no mercado mundial, então, quando as taxas sobem nos EUA, os pagamentos da dívida ficam mais caros.

O ciclo de empréstimos e auxílios, porém, tem raízes mais profundas.

As nações mais pobres foram pressionadas a suspender todas as restrições à movimentação de capitais para dentro e fora do país. O argumento era que o dinheiro, como os bens, deveria fluir livremente entre as nações. Permitir que governos, empresas e indivíduos tomem empréstimos de credores estrangeiros financiaria o desenvolvimento industrial e a infraestrutura essencial.

"A globalização financeira deveria inaugurar uma era de crescimento robusto e estabilidade fiscal no mundo em desenvolvimento", disse Jayati Ghosh, economista da Universidade de Massachusetts em Amherst. Mas "acabou fazendo o oposto", disse ela.

Alguns empréstimos –sejam de credores privados ou de instituições como o Banco Mundial– não produziram retornos suficientes para saldar a dívida. Outros foram despejados em esquemas especulativos, propostas imaturas, projetos audaciosos ou contas bancárias de funcionários corruptos. E os devedores continuaram à mercê do aumento das taxas de juros que incharam o tamanho dos pagamentos da dívida num piscar de olhos.

Ao longo dos anos, empréstimos imprudentes, bolhas de ativos, flutuações cambiais e má gestão oficial levaram a ciclos de expansão e recessão na Ásia, Rússia, América Latina e outros lugares. No Sri Lanka, projetos extravagantes empreendidos pelo governo, de portos a estádios de críquete, ajudaram a levar o país à falência no ano passado, enquanto os cidadãos procuravam comida e o banco central, num acordo de troca, pagou o petróleo iraniano com folhas de chá.

É um "esquema de pirâmide", disse Ghosh.

Credores privados que ficaram com medo de não ser reembolsados cortaram o fluxo de dinheiro, deixando os países em apuros.

E a austeridade forçosa que acompanhou os resgates do FMI, que obrigou os governos sobrecarregados a cortar gastos, muitas vezes trouxe miséria generalizada ao cortar assistência pública, pensões, educação e saúde.

Até os economistas do FMI reconheceram em 2016 que, em vez de gerar crescimento, essas políticas "aumentaram a desigualdade, o que, por sua vez, pôs em risco a expansão duradoura".

O desencanto com o estilo de empréstimo do Ocidente deu à China a oportunidade de se tornar um credor agressivo em países como Argentina, Mongólia, Egito e Suriname.

Retorno à autossuficiência

Embora o colapso da União Soviética tenha aberto o caminho para o predomínio da ortodoxia do livre mercado, a invasão da Ucrânia pela Federação Russa agora a liberou decisivamente.

A história da economia internacional hoje, disse Henry Farrell, professor da Escola de Estudos Internacionais Avançados na Universidade Johns Hopkins, é sobre "como a geopolítica está engolindo a hiperglobalização".

A política das grandes potências no estilo do Velho Mundo realizou o que a ameaça de um colapso catastrófico do clima, a agitação social fervilhante e a desigualdade crescente não conseguiram: derrubou os pressupostos sobre a ordem econômica global.

Josep Borrell, chefe de relações exteriores e política de segurança da União Europeia, disse sem rodeios em um discurso dez meses após a invasão da Ucrânia: "Nós desligamos as fontes de nossa prosperidade das fontes de nossa segurança". A Europa obteve energia barata da Rússia e produtos manufaturados baratos da China. "Esse é um mundo que não existe mais", disse ele.

Os estrangulamentos da cadeia de suprimentos decorrentes da pandemia e da recuperação subsequente já haviam ressaltado a fragilidade de uma economia de fontes globais. À medida que as tensões políticas sobre a guerra aumentavam, os formuladores de políticas rapidamente acrescentaram autonomia e força às metas de crescimento e eficiência.

"Nossas cadeias de suprimentos não são seguras e não são resilientes", disse a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, na primavera passada. As relações comerciais devem ser construídas em torno de "parceiros de confiança", disse ela, mesmo que isso signifique "um nível de custo um pouco mais alto, um sistema um pouco menos eficiente".

"Foi ingênuo pensar que os mercados lidam apenas com eficiência, e não com poder", disse Abraham Newman, coautor com Farrell de "Underground Empire: How America Weaponized the World Economy" [Império subterrâneo: como os EUA usam a economia mundial como arma].

As redes econômicas, por sua própria natureza, criam desequilíbrios de poder e pontos de pressão porque os países têm diferentes capacidades e vulnerabilidades.

A Rússia, que fornecia 40% do gás natural da UE, tentou usar essa dependência para pressionar o bloco a retirar seu apoio à Ucrânia.

Os Estados Unidos e seus aliados usaram seu domínio do sistema financeiro global para retirar os principais bancos russos do sistema internacional de pagamentos.

O porto em Chornomorsk, Ucrânia, que antes da invasão russa era a maior nação exportadora de trigo do mundo, em 24 de junho de 2022 - Laetitia Vancon/The New York Times

A China retaliou contra parceiros comerciais restringindo o acesso ao seu enorme mercado.

As extremas concentrações de fornecedores críticos e redes de tecnologia da informação geraram novos pontos de estrangulamento.

A China fabrica 80% dos painéis solares do mundo. Taiwan produz 92% dos minúsculos semicondutores avançados. Grande parte do comércio e das transações mundiais são calculados em dólares americanos.

A nova realidade se reflete na política americana. Os Estados Unidos –o arquiteto central da ordem econômica liberalizada e da OMC– se afastaram de acordos de livre comércio mais abrangentes e repetidamente se recusaram a cumprir as decisões da OMC.

Preocupações com a segurança levaram o governo Biden a bloquear o investimento chinês em empresas americanas e limitar o acesso da China a dados privados de cidadãos e a novas tecnologias.

E ele adotou a política industrial no estilo chinês, oferecendo subsídios gigantescos para veículos elétricos, baterias, parques eólicos, usinas solares e muito mais para proteger as cadeias de suprimentos e acelerar a transição para a energia renovável.

"Ignorar as dependências econômicas que se acumularam ao longo das décadas de liberalização tornou-se realmente perigoso", disse Sullivan, o conselheiro de segurança nacional dos EUA. A opção pela "eficiência de mercado simplificada demais", acrescentou, provou ser um erro.

Embora a ortodoxia econômica anterior tenha sido parcialmente abandonada, não está claro o que a substituirá. A improvisação está na ordem do dia. Talvez a única suposição em que se possa confiar firmemente agora seja que o caminho para a prosperidade e as compensações políticas se tornarão mais obscuros.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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