Corrida das baterias para veículos elétricos demanda revolução na reciclagem

Incerteza sobre quais células vão alimentar carros é um dos fatores que complicam esforços para reutilizar matérias-primas

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Christian Davies Harry Dempsey Claire Bushey
Seul, Londres e Chicago | Financial Times

Do Leste Asiático à Europa e à América do Norte, as empresas na cadeia de fornecimento de baterias estão investindo bilhões de dólares em capacidade de reciclagem, à medida que enfrentam a escassez projetada de matérias-primas que vão alimentar a próxima geração de veículos elétricos.

Mas, enquanto fabricantes de automóveis, produtores de baterias e mineradoras desenvolvem sua própria capacidade de reciclagem ou estabelecem parcerias com especialistas num esforço para tornar as cadeias de abastecimento mais seguras, mais ecológicas e, em última análise, mais lucrativas, ainda é preciso resolver aspectos fundamentais da indústria nascente.

"Neste momento, todos estão preocupados com o que fazer para montar todas as fábricas de baterias de que necessitamos", disse Andreas Breiter, que dirige o Centro para Mobilidade Futura da McKinsey na América do Norte. "Mas daqui a cerca de dez anos a questão será o que faremos com todas essas baterias quando elas voltarem."

Imagem mostra carro elétrico ao lado de um carregador na parede de uma garagem de condomínio.
Carregador de carro elétrico - Zanone Fraissat - 2.ago.23/Folhapress

Ainda não está claro qual é a química de baterias que prevalecerá na corrida global entre os produtores chineses CATL e BYD e seus rivais coreanos e japoneses, o que torna difícil saber quais processos de reciclagem serão necessários.

A incerteza também paira sobre a regulamentação futura, os preços dos materiais, as tecnologias de reciclagem e até mesmo sobre quem será o proprietário de uma bateria de VE (veículo elétrico) no final da sua vida útil —tudo isso terá influência no desenvolvimento da indústria e na viabilidade de modelos de negócio específicos.

"Há uma sensação de desordem na indústria porque ninguém passou por isso antes", disse Simon Linge, executivo-chefe da produtora e recicladora de materiais para baterias Lithium Australia.

"Haverá pessoas de quem nem sequer se fala hoje e que daqui a cinco ou dez anos emergirão como grandes atores no mercado."

A reciclagem de baterias, que normalmente envolve fundição, tratamento químico ou ambos, também tem seu próprio impacto ambiental, e os recicladores enfrentam o desafio de demonstrar que sua produção permanecerá mais verde e economicamente mais interessante do que a mineração dos materiais, dados os avanços nas técnicas de extração mais limpas.

Com poucas baterias de veículos elétricos já tendo atingido o fim de sua vida útil, as principais fontes de matéria-prima para os recicladores continuam sendo células de produtos de consumo como laptops, e "sucata" de fábricas de baterias.

A sucata de produção representará 53% da matéria-prima para recicladores de baterias em 2025, conforme projeções da McKinsey. Mas esse número cairá para 43% até 2030, 14% até 2035 e apenas 6% até 2040, à medida que mais VE forem vendidos —a Agência Internacional de Energia prevê que a frota global aumentará para 350 milhões de veículos até o final desta década.

"Vemos a sucata industrial como o principal impulsionador do volume de reciclagem nesta década", disse Tim Johnston, presidente da Li-Cycle, recicladora de baterias listada em Nova York e apoiada pelo grupo de commodities Glencore. "O fim da vida útil das baterias será na próxima década."

A transição que se aproxima representa um dilema para os recicladores porque a logística e os modelos de negócio para a reciclagem de sucata e de baterias em fim de vida útil são muito diferentes.

Para os recicladores focados na produção de sucata, faz sentido ter instalações próximo de fábricas de baterias para fazer circular os materiais de volta ao processo de produção.

Na América do Norte, onde a produção de baterias está sendo turbinada pela legislação climática do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, isso levou a uma série de parcerias entre fabricantes e recicladores.

A Redwood Materials, uma startup de reciclagem fundada pelo ex-diretor de Tecnologia da Tesla, J.B. Straubel, anunciou um acordo no ano passado com a Panasonic, parceira em baterias do fabricante de EV, para fornecer materiais catódicos ricos em níquel para a nova fábrica da fabricante japonesa de celulares em Kansas.

Parcerias semelhantes foram acordadas entre a Li-Cycle, com sede no Canadá, e a produtora coreana LG Energy Solution, e entre a recicladora Ascend Elements, com sede em Massachusetts, e a fabricante coreana de baterias SK.

As baterias em fim de vida, por outro lado, precisam ser coletadas dos veículos e avaliadas quanto à segurança e ao desempenho antes de serem desmontadas e submetidas ao processo de reciclagem.

Com fabricantes de celulares e de automóveis e consumidores individuais propensos a reivindicar a propriedade de uma bateria, não está claro como os recicladores vão garantir o suprimento estável.

Um modelo é fazer com que o fabricante da bateria, a montadora ou terceiros sejam proprietários da bateria durante toda a sua vida útil. Um fabricante de baterias poderia alugá-la a um fabricante de automóveis e, em seguida, a um consumidor, e então reutilizá-la ou reciclá-la quando ela não puder mais alimentar um veículo.

Sam Abuelsamid, analista da Guidehouse Insights, disse que o modelo é "uma espécie de securitização de empréstimos —você está securitizando a bateria", e que pode ser uma opção natural para as montadoras, que já operam braços financeiros cativos que emprestam dinheiro aos clientes para veículos novos.

Na China, onde os mercados de EV, baterias e reciclagem estão mais maduros do que no Ocidente, a CATL formou uma parceria de ciclo fechado, aliando sua subsidiária de reciclagem Brunp ao grupo de reciclagem chinês GEM e à Mercedes-Benz China para reciclar baterias após a vida útil.

Isto oferece um modelo potencial por meio do qual os fabricantes de automóveis —alguns com ambições de produzir baterias— e os recicladores trabalham em conjunto para garantir baterias em fim de vida útil para criar seus próprios sistemas de circuito fechado.

Nos EUA, a Redwood Materials está construindo parcerias de circuito fechado com Volkswagen, Ford, Volvo e Toyota.

Mas alguns executivos da indústria, notando os desafios logísticos de supervisionar os processos de coleta, avaliação, transporte e desmonte, bem como a própria reciclagem, estão céticos quanto ao fato de o sistema de circuito fechado se revelar atraente em longo prazo.

O modelo é ainda mais complicado pelo fato de uma bateria que já não é adequada para utilização num veículo ainda poder ser usada para outros fins, desde iluminar ruas e casas até alimentar aparelhos ou oferecer armazenamento de energia.

"É um absurdo e contra qualquer lógica não tentar aproveitar ao máximo as baterias usadas dos veículos elétricos, conhecendo o esforço, a pesquisa e o desenvolvimento, a energia, os materiais e os investimentos envolvidos no seu desenvolvimento", disse José María Cancer Abóitiz, responsável pelo Mobility Lab da seguradora Mapfre.

Observando que o mercado de reciclagem já é "muito menos estruturado" do que o resto da cadeia de abastecimento de baterias, Mathias Miedreich, executivo-chefe da recicladora belga Umicore, prevê que o mercado se bifurcará à medida que os recicladores construam cadeias de suprimento separadas para sucata e baterias em fim de vida útil.

"É uma questão para empresas como nós onde ter suas instalações de baterias", disse Miedreich. "Você deveria colocá-las perto do mundo das baterias ou perto de onde os [fabricantes de automóveis] desenvolvem seu ciclo? Pode ser que dois ecossistemas estejam se formando."

A indústria também será moldada pelos desenvolvimentos tecnológicos e políticos na Europa e nos EUA, onde se esforçam para limitar a dependência da China de indústrias emergentes e estabelecer cadeias de abastecimento internas.

A União Europeia aprovou regulamentos destinados a criar uma "economia circular" de baterias, evitando que as unidades gastas saiam do bloco, determinando que tenham um conteúdo reciclado mínimo de 16% para o cobalto e 6% para o lítio e o níquel.

Bruxelas pretende que 65% do peso das baterias de íons de lítio seja reciclado até o final de 2025.

Sarah Colbourn, analista sênior da consultoria Benchmark Mineral Intelligence, disse que os recicladores chineses, que estão atualmente "muito à frente" dos seus pares ocidentais em tecnologia e escala, procuram entrar nos mercados europeu e americano por meio de parcerias com atores locais.

Ela destacou a "preocupação real" dos funcionários da UE com o vazamento de materiais de baterias da Europa para a China, prejudicando o desenvolvimento da indústria europeia de reciclagem.

Uma opção considerada em Bruxelas, disse ela, é que a "massa negra" —os restos prensados de baterias após a remoção do aço e do plástico indesejados— fosse redesignada como resíduo perigoso, como forma de evitar que saísse do bloco.

Outra consideração para os recicladores ocidentais é se o fosfato de ferro-lítio, ou as baterias LFP que dominam o mercado chinês, vencerão a corrida global das baterias contra as de níquel-manganês-cobalto, ou NMC, nas quais os fabricantes coreanos e japoneses são especializados.

Como o fosfato de ferro é muito mais abundante do que o níquel e o cobalto usados nas baterias NMC, o valor dos materiais recuperados pela reciclagem de uma bateria LFP é consideravelmente menor, o que significa que os recicladores LFP tendem a ter margens significativamente mais baixas.

Esse problema é menor na China, onde os recicladores operam em grande escala e com custos de capital mais baixos. Mas poderia ter repercussões para os recicladores ocidentais —e, por sua vez, para as ambições ocidentais de segurança ambiental e de recursos— se a LFP prevalecesse.

Enquanto isso, Breiter, da McKinsey, observa que a indústria ainda pode ser derrubada por técnicas proprietárias desenvolvidas por uma nova geração de pequenas empresas de reciclagem.

"Novas tecnologias são anunciadas o tempo todo, novas tecnologias estão em desenvolvimento, e pode haver um avanço a qualquer momento", disse ele.

"Não sabemos o que iremos reciclar no futuro, não sabemos que técnicas utilizaremos, não sabemos como as regulamentações vão evoluir, nem como o mercado de materiais vai funcionar", acrescentou Breiter. "São essas coisas que determinarão a viabilidade comercial do modelo de reciclagem."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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