Farmacêuticas estudam ir à Justiça contra nova regra para cobertura de plano de saúde

ANS determinou que produtos de terapia avançada terão de passar por análise técnica antes de entrar na cobertura obrigatória das operadoras

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São Paulo

No momento em que o setor de planos de saúde atravessa uma crise com prejuízo operacional sem precedentes, a indústria farmacêutica avalia uma ofensiva na Justiça para questionar uma nova regra da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).

Divulgada pelo órgão regulador na semana passada, a medida determina que os produtos classificados pela Anvisa como terapia avançada deverão passar por análise técnica e etapas de participação social, como audiências e consultas públicas, antes de serem incluídos no rol de coberturas obrigatórias garantidas pelas operadoras de planos de saúde.

Entidades representantes de grandes fabricantes de medicamentos estudam ir à Justiça contra a determinação. Segundo a indústria, a regra cria um novo obstáculo para a categoria que abrange produtos biológicos obtidos a partir de células e tecidos humanos submetidos a um processo de fabricação.

Imagem mostra enfermeiras em um corredor de hospital. Algumas delas estão sentadas e outras, em pé.
Médicas no corredor da UTI infantil de um hospital de São Paulo - Rubens Cavallari - 11.dez.22/Folhapress

Também se encaixam na categoria os ácidos nucleicos recombinantes, moléculas de DNA ou RNA manipuladas em laboratório para combinar partes de material genético de diferentes fontes.

"Estamos pensando seriamente em judicializar, em nome dos nossos associados que têm esses produtos", diz Nelson Mussolini, presidente do Sindusfarma, sindicato que reúne grandes companhias farmacêuticas.

Mussolini afirma que os produtos já são considerados medicamentos e passaram por critérios da Anvisa. "Ao registrar um medicamento, a Anvisa o faz com base em critérios objetivos que levam em consideração anos de pesquisas e somente o registra se comprovadas a eficácia e segurança", afirma ele.

Na visão de Renato Porto, presidente da Interfarma, outra entidade da indústria, faltou debate com todos os elos do setor antes da aprovação da medida. Ele afirma que se trata de mais um obstáculo para o acesso do paciente ao tratamento.

"Fomos surpreendidos com essa decisão. Estamos fazendo uma avaliação técnico-regulatória desse cenário e, concomitantemente, uma avaliação jurídica para ver se vamos judicializar", diz Porto.

Por enquanto, existem somente cinco registros na categoria de terapias avançadas, que inclui produtos para doenças raras ou linhas de tratamento oncológico fabricados por Novartis, Janssen e Gilead.

Um deles é o Zolgensma, da Novartis, cujo custo elevado –que pode superar R$ 8 milhões, segundo operadoras– vem preocupando executivos do setor de planos de saúde.

Também classificado como terapia avançada, o Kymriah atua por meio da retirada de células T do sangue do paciente para colocar um novo gene e atingir as células cancerosas do corpo, segundo a fabricante Novartis.

Em nota à Folha, a farmacêutica afirma que vem acompanhando a discussão. Segundo a empresa, este é um tema amplo e que diz respeito a todo o ecossistema de saúde.

De acordo com a nota técnica da ANS, os produtos em questão não são medicamentos comuns, mas uma "cadeia de produção e manipulação gênica, envolvendo etapas que, segundo a regulamentação sanitária, precisam estar estabelecidas e registradas para a adequada utilização".

Ainda conforme o documento, "mesmo ao se realizar todo o processo de forma padronizada e dentro das especificações, há ao final o risco de que o produto a ser dispensado e aplicado não preencha as características necessárias estabelecidas como critérios clínicos para a eficácia do produto".

Procurada pela reportagem, a ANS afirma que sua decisão "foi no sentido de proteger o consumidor, pois torna indispensável o estudo da terapia por meio da avaliação de tecnologias em saúde e privilegia a participação social", diz o órgão em comunicado.

Entre os pontos da análise para a definição das novas regras, a agência diz também que a necessidade de criar uma regulamentação específica sobre o tema e as características de preparo de alguns destes produtos sugerem que eles não são comparáveis aos medicamentos até então registrados na Anvisa, tanto pela complexidade de sua produção, quanto pelo seu custo.

Cassio Ide Alves, superintendente-médico da Abramge (associação que reúne empresas de planos de saúde), afirma que a questão da sustentabilidade financeira é, de fato, um dos pilares da avaliação das tecnologias em saúde, ao lado da eficácia e da segurança, mas essa categoria de produtos exige atenção.

"Estamos falando de terapia gênica. Se tiver alguma complicação na população em termos de herança genética, quem se responsabiliza?", afirma Alves.

O advogado Rodrigo Raposo, sócio do escritório Salomão, que advoga para diversas operadoras, também afirma que o tema, ainda que indiretamente, abarca a questão da sustentabilidade do mercado de saúde suplementar.

"Precisamos ter em mente que uma boa decisão a respeito da incorporação e da determinação de cobertura obrigatória tem que levar em consideração todos os benefícios da terapia, os riscos, as incertezas e também os altos custos que, geralmente, são inerentes a essa categoria de terapia", diz Raposo.

Renato Porto afirma que segurança, eficácia e qualidade são requisitos sanitários e avaliados pela Anvisa e aponta para a diferença de competência entre cada agência reguladora.

"Não tenho dúvida de que o alto padrão da agência sanitária brasileira garante que a população só tenha à sua disposição produtos com altíssima qualidade. Duvidar da eficácia dos produtos desenvolvidos, não só para o Brasil, mas para todo o mundo, até mesmo pela responsabilidade dos eventos adversos previstos, não contribui para o acesso de medicamentos à população, muito pelo contrário, contribui para a anti-ciência", afirma Porto.

"Por outro lado, tratar dos requisitos para dar sustentabilidade ao sistema de saúde suplementar é competência da ANS", diz o presidente da Interfarma.

No ponto de vista do consumidor, as terapias avançadas precisam, sim, passar por tal avaliação, já que se trata de uma questão de alta complexidade, afirma a advogada especializada na área da defesa do consumidor e colunista da Folha, Maria Inês Dolci.

"É lógico que pode ser uma esperança para muitos pacientes que não tenham outras opções. Mas também têm riscos e desafios, como segurança, eficácia, qualidade e custo. Por isso que eles precisam de uma regulação rigorosa e de uma avaliação cuidadosa."

Em comunicado divulgado sobre o assunto, a FenaSaúde (federação do setor) diz ver rigor científico nas novas regras estabelecidas pela ANS para a cobertura de tratamentos de terapia avançada.

"Essas terapias são de natureza complexa e inovadora. Por isso, um rito cuidadoso de aprovação garante mais segurança para a saúde dos pacientes", afirma em nota a diretora-executiva da FenaSaúde, Vera Valente.

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