Descrição de chapéu Rússia

Sem Odessa, Ucrânia tenta escoar grãos pelos portos do rio Danúbio

Com saída da Rússia do acordo, maior cidade do sul perde importância estratégica

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Yan Boechat
Odessa (Ucrânia)

Odessa está estranhamente silenciosa neste verão ensolarado de dias quentes. A cacofonia provocada pelo movimento intenso e constante de caminhões, trens e operários abandonou a cidade no fim de julho, quando a Rússia decidiu não renovar o acordo para exportação de grãos ucranianos pelo mar Negro.

Com o porto parado, o silêncio em Odessa agora só é quebrado pelas sirenes anunciando que um novo ataque aéreo pode acontecer a qualquer momento.

Moradores de Odessa aproveitam praia
Moradores de Odessa aproveitam dia de sol em um das únicas praias do litoral ucraniano que não estão minadas - Yan Boechat/Folhapress

"Eu estou tendo problemas para dormir, me acostumei com o som dos operários, dos caminhões, das cargas", afirma Dmitro Barinov, vice-presidente do Porto de Odessa, numa ampla sala de reuniões de um típico edifício construído nos tempos do Império Russo, a poucos metros da escadaria imortalizada por Sergei Eisenstein no filme "O Encouraçado Potemkin".

"Eu sempre morei perto do porto, sempre trabalhei aqui, o silêncio torna tudo muito estranho, perturbador, eu diria."

Até o início da guerra, em fevereiro de 2022, o porto de Odessa concentrava mais de dois terços das importações e das exportações ucranianas e quase 100% das 60 milhões de toneladas de grãos que saíam anualmente das fazendas no entorno do mar Negro e ao longo das margens do rio Dnipro.

Único porto de águas profundas do país e também o único com capacidade para receber navios da classe Panamax, Odessa tem sido a porta de saída de produtos ucranianos desde o final do século 18.

Com o bloqueio marítimo imposto pela Rússia desde o início da guerra, o porto só conseguiu operar durante os meses em que o acordo negociado pela Turquia e pela ONU (Organização das Nações Unidas) esteve em vigor, entre junho de 2022 e julho de 2023.

"Com o acordo conseguimos exportar mais de 30 toneladas de grãos, cerca de mil navios entraram e saíram do porto nesse período", diz Barinov. "Mas agora tudo parou novamente, e Odessa sente os impactos disso, a cidade nasceu com o porto, está intrinsicamente ligado a ele."

Com o fim do acordo, a Ucrânia agora está usando seus portos nas margens do Danúbio, na fronteira com a Romênia, para escoar a produção, que nesta safra deve chegar a quase 60 milhões de toneladas.

"Foi uma safra muito boa, tivemos um inverno quente e uma primavera com volume de chuvas bom", explica Barinov. "O problema agora é conseguir mandar essa produção para fora do país."

Com apoio dos Estados Unidos e da União Europeia, a Ucrânia está ampliando a toque de caixa a infraestrutura portuária no complexo de Ismail, nas margens do Danúbio. Mas há entraves complexos para serem resolvidos, como o calado e o tamanho dos canais, que ligam os portos ao delta do rio que deságua no mar Negro.

"Na safra passada conseguimos enviar 11 milhões de toneladas por lá e agora esperamos chegar a 20 milhões de toneladas nesta safra, mas é pouco se compararmos com a nossa produção e, principalmente, nossa capacidade de armazenamento."

Desde o fim do acordo, a Rússia já atacou as instalações portuárias de Ismail ao menos duas vezes com relativo sucesso. Mesmo distante poucos metros da fronteira com a Romênia —e a União Europeia—, o complexo foi atingido por drones e mísseis, e parte das áreas de armazenamento do porto foram destruídas.

Nas estradas que ligam Odessa à fronteira com a Romênia, filas de caminhões graneleiros são constantes.

Sem capacidade para processar tantos grãos, por vezes os caminhoneiros precisam esperar semanas para conseguir descarregar.

Caminhões fazem fila para tentar entrar no porto de Odessa, na Ucrânia
Caminhões fazem fila para tentar entrar no porto de Odessa, na Ucrânia - Florent Vergnes - 27.jul.2023 / AFP

"Se o seu navio estiver perto de zarpar, com sorte em três dias é possível descarregar", conta Anatoli, um veterano da guerra do Afeganistão durante a ocupação soviética do país asiático que agora faz a rota Odessa-Izmail a bordo de seu caminhão.

"Mas se sua carga não estiver comprometida com algum envio específico, ficamos ás vezes duas ou três semanas na fila", conta ele, enquanto aguardava para recarregar em um posto de transbordo ao norte de Odessa, na pequena cidade portuária de Iujne.

Assim como todas as cidades que nasceram e se desenvolveram no entorno de Odessa, Iujne ofre profundamente com a paralisação das atividades portuárias. Aqui pelo menos um terço da população está sem trabalhar desde o fim do acordo.

"Tem sido difícil, temos precisado fazer a distribuição de alimentos, dar atenção a essas pessoas que não estão recebendo nada", conta Oksana Vorotnikova, responsável pela administração de apoio aos civis na pequena cidade, momentos antes de ser interrompida por um novo alarme.

"Vamos para o abrigo, agora viramos alvo."

A decisão russa de abandonar a iniciativa da ONU para manter um corredor seguro para a exportação de grãos acabou também com um acordo tácito da guerra.

Cidades como Iujne , Odessa e outras ao longo dessa grande baía estavam —ou se sentiam— protegidas dos ataques. Havia interesse mútuo na manutenção de alguma normalidade e previsibilidade na região portuária.

"Agora estamos vivendo a guerra novamente", afirma Marina Plakhova, uma professora que largou sua casa no leste do país para buscar mais segurança em Odessa. "Não estamos mais seguros como estávamos, os ataques agora são constantes."

As forças russas têm atacado Odessa com mais violência e regularidade desde o fim do acordo, em especial alvos ligados à infraestrutura para exportação de grãos, como terminais portuários ou áreas de armazenamento.

No mês passado, mais de 20 drones e mísseis balísticos foram disparados contra a cidade. As autoridades ucranianas disseram ter derrubado todos, mas destroços caíram em diferentes partes de Odessa, danificando prédios, casas e destruindo um dos maiores supermercados do sul da Ucrânia. Ao menos cinco pessoas ficaram feridas.

Mesmo assim, os dias de sol forte, o calor e as águas calmas do mar Negro seguem atraindo centenas de pessoas para as poucas praias da cidade que não foram minadas e estão abertas ao público.

Em Arcádia, um complexo turístico distante poucos quilômetros do porto, crianças, jovens, idosos e adultos divertiam-se em um típico dia de praia, com direito a boias, drinques a beira-mar e fila para saltar de um píer.

"É estranho olhar para o horizonte e não ver nenhum navio, mas ao menos a água está bem mais limpa", diz Stanislav Storojenko, 21, antes de voltar ao mar.

A tarde foi chegando a um fim especialmente bonito quando as sirenes voltaram a soar, anunciando a possível chegada de mais uma leva de drones. Ao longe era possível ouvir dos disparos das baterias antiaérea. Nem Stanislav, nem ninguém em Arcádia pareceu se importar.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.