Arcabouço fiscal vai fracassar se não houver corte de gastos, diz Schwartsman

Economista diz que medidas para aumentar arrecadação são troco do ajuste nas contas públicas e defende reformas

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São Paulo

O pacote de medidas do governo para aumentar a arrecadação está superestimado e não garante o cumprimento das metas previstas no arcabouço fiscal, o limite de gastos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A avaliação é do economista e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central Alexandre Schwartsman. Para ele, as medidas que aumentam os impostos sobre os mais ricos são meritórias, mas representam apenas uma fração do que o governo quer arrecadar para zerar o rombo nas contas públicas a partir de 2024.

Em entrevista à Folha, Schwartsman afirma que o Brasil tem muito espaço para cortar gastos sem comprometer os programas sociais e os serviços públicos.

O economista Alexandre Schwartsman no lançamento do livro A Arte da Política Econômica - Ronny Santos-16.ago.23/Folhapress

Ele também critica a tentativa do governo de rever regras contábeis para colocar em dia o pagamento de precatórios. Para ele, seria melhor colocar essa conta em dia, mesmo furando o arcabouço fiscal logo no primeiro ano. "O tal do arcabouço vai ser furado logo no primeiro ano."

"É claro que tem espaço para cortar, mas não é fácil. Não adianta vir com uma regrinha e falar, não passará. Cedo ou tarde, a despesa vai bater no teto, seja um teto fixo, seja um teto móvel. E o que você vai fazer? Você vai mexer no teto, não na despesa", diz.

O governo federal escolheu fazer um ajuste nas contas públicas baseado principalmente no aumento da arrecadação. Quais as chances de alcançar as metas previstas no arcabouço fiscal com essa estratégia?
Baixíssimas. A gente sabe que tem uma superestimação enorme nessas medidas para aumentar a arrecadação.

No ano que vem, a gente teria um aumento [de receita] da ordem de R$ 230 bilhões. Uma parte viria do crescimento, mas faltam R$ 170 bilhões. Uns R$ 130 bilhões estão grosseiramente superestimados. A história do Carf [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais], a questão de antecipar pagamentos em troca de desistir do contencioso tributário com vantagem etc.

Para chegar às metas que estão no arcabouço, zerar [o déficit] no ano que vem, um superávit de 0,5% [do PIB] em 2025 e de 1% do PIB em 2026, vai precisar um crescimento de receita que ninguém diz muito bem de onde vem.

Do ponto de vista do mérito, como o sr. analisa as medidas de aumento de receita?
No que diz respeito aos fundos exclusivos e offshore, ok. Não tem grandes discussões. De fato atinge os estratos mais ricos da sociedade.

Mas isso é o troco do ajuste fiscal em termos do que se espera arrecadar, dá uns R$ 20 bilhões ao ano. Essas medidas que são meritórias representam a menor parte do aumento de receita.

A parte do Leão vem daquela coisa de que com o voto de qualidade [jargão para voto de desempate] no Carf vai arrecadar R$ 55 bilhões no ano que vem. De onde veio esse número? Tem outros R$ 43 bilhões do programa de redução de litigiosidade das empresas [transações com a PGFN e Receita].

A gente já fez uma série de programas em sentido, os Refis, e não chega nem perto desse valor em termos de um ano.

A questão de retirar os benefícios fiscais de ICMS da base de cálculo, dá para ter uma discussão supermeritória a respeito, mas na prática o que vai acontecer é que a empresa vai recorrer ao Judiciário. Não vai arrecadar R$ 35 bilhões.

Uns R$ 130 bilhões dos R$ 165 bilhões que eles querem arrecadar vêm dessas medidas. Está meio complicado.

Em termos de impacto econômico, um ajuste baseado na receita é uma estratégia adequada?
Não, por dois motivos. Um deles é porque não é de fato um ajuste. A história brasileira dos últimos 30 anos é eloquente. A gente fez várias rodadas de elevação de receita, em alguns casos com elevação de alíquota de impostos. Você gera um superávit em cima do aumento de receita.

O problema é que a gente não faz nada para controlar o gasto. Então, o gasto vai chegar de novo ao patamar de receita, e o superávit desaparece. Aí você tem de aumentar de novo os impostos. Estamos há 30 anos fazendo isso.

A nossa carga tributária era da ordem de 27% do PIB em 1994, quando a inflação foi estabilizada. E tinha superávit. Hoje, roda na casa de 34% do PIB e a gente tem déficit. Se você não fizer nada para controlar a despesa, cedo ou tarde a estratégia de ajuste fiscal fracassa.

Adicionalmente, eu sempre chamo a atenção para o livro do Alberto Alesina, do Carlo Favero e do Francesco Giavazzi, "Austerity, When It Works and When It Doesn't". Eles examinam muitos casos de economias que fizeram ajustes fiscais.

A conclusão é que economias que basearam o seu ajuste em aumento de receita tipicamente têm resultados muito negativos do ponto de vista de crescimento e de efetividade de reduzir o endividamento.

Economias que fizeram seu ajuste com base na redução de gastos têm efeitos relativamente pequenos, estatisticamente zero, em termos de redução de atividade, e são muito mais efetivas no sentido de reduzir o endividamento.

O Brasil fez nos últimos dez anos várias reformas, mudanças na Previdência, contenção de gastos com folha do funcionalismo. Ainda há espaço para cortar despesa?
Tem. A gente já viveu com um nível de despesa como proporção do PIB menor. Politicamente é outra história, se você consegue fazer esse tipo de coisa agora.

A gente tem um volume de despesa comparado a países de renda per capita similar que é muito mais alto. Comparado a países da América Latina, comparados a países emergentes de maneira geral, o Brasil gasta muito mais.

Mas não dá para fazer sem reforma. Não é simplesmente ter uma regra de que com um teto de gastos eu não vou deixar crescer. Vai fracassar. Como vai fracassar o arcabouço fiscal. Ele tem um teto móvel. O gasto cresce dentro de um certo limite.

Mas se você não faz nenhuma reforma para mexer em Previdência, funcionalismo, vinculação etc., não tem como resolver o problema.

O Brasil é um país que gasta muito mais do que os outros e não entrega serviços públicos melhores. Até mesmo na questão de gasto social, que é importante, vários trabalhos mostram que a gente consegue o mesmo efeito de redução de pobreza com um volume menor de gastos. Ou, mantendo o volume, conseguiria ser mais efetivo em termos de redução de pobreza.

Precisa repensar os programas sociais no Brasil. Não é segredo que o antigo Auxílio Brasil, atual Bolsa Família, é mal desenhado. É um exemplo entre tantos.

Funcionalismo é outro. O Brasil tem uma conta de funcionalismo muito além de qualquer país em situação similar à nossa.

É claro que tem espaço para cortar, mas não é fácil. Não adianta vir com uma regrinha e falar, não passará. Cedo ou tarde, a despesa vai bater no teto, seja um teto fixo, seja um teto móvel. E o que você vai fazer? Você vai mexer no teto, não na despesa.

Alguns membros do governo defendem que usar mais recursos para aumentar investimentos é uma forma de estimular a atividade, produzir arrecadação e fazer um ajuste mais suave.
Isso funciona superbem, desde que seja em Hogwarts [escola fictícia do personagem Harry Potter]. Se você violar as leis da matemática, talvez funcione.

Eu já fiz a conta disso. Você precisaria que o efeito multiplicador do gasto fosse estúpido. Aí você conseguiria fechar essa conta. No mundo real, não. Isso é pensamento mágico.

Se fosse verdade, não teria país com desequilíbrio fiscal no mundo. Aí fala: "Não, aumentamos o gasto em investimento". Os caras nem terminam o investimento, só tem obra parada. Isso serve para comprar apoio político e favorecer empreiteiras. Para o país, é extraordinariamente negativo.

A ideia de que você vai resolver o seu problema fiscal gastando mais é risível. É uma coisa que não deveria nem ser falada em público.

Como o sr. vê a proposta do governo de classificar parte das despesas com precatórios como despesa financeira?
Eu achei uma barbaridade o que foi feito com os precatórios, com a emenda do Paulo Guedes [ex-ministro da Economia]. Fazer o pagamento agora é correto. Mas, quando a gente paga um imposto atrasado para o governo, eles não classificam juros e multas como receita financeira, classificam como receita primária. Por que na despesa vai ser diferente?

Se a gente estivesse vindo de uma situação ideal, em que o governo nunca tivesse tentado fajutar as contas públicas, poderia até entrar em uma discussão teórica sobre qual é a real natureza desses gastos. Mas a gente teve pedaladas escancaradas na nossa cara, contabilidade criativa, que foram denunciadas.

O histórico do governo é ruim a esse respeito. Dada uma chance, os caras operam a contabilidade criativa. No mínimo você teria de estar desconfiado.

Não vamos inventar coisa nova. Põe os precatórios em dia, e vamos zerar o jogo. O tal do arcabouço vai ser furado logo no primeiro ano.

Raio-X

Alexandre Schwartsman, 60
Doutor em economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley, ex-diretor do Banco Central (2003-2006) e sócio da consultoria Schwartsman & Associados

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