Tributar os mais ricos reduz sacrifício para fazer ajuste fiscal, diz economista

Manoel Pires afirma que, sem aumento de receitas proposto pelo governo, não será possível zerar déficit

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São Paulo

A decisão de tributar contribuintes que têm maior capacidade econômica melhora a distribuição de renda e também diminui o custo e o sacrifício que a sociedade fará para reorganizar as contas públicas. A afirmação é do professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e ex-secretário do Ministério da Fazenda Manoel Pires, um dos autores do livro Progressividade Tributária e Crescimento Econômico.

Em entrevista à Folha, ele diz que, sem o aumento de receitas proposto pelo governo, com o fim de isenções para empresas e benefícios para grandes investidores, não será possível zerar o déficit no Orçamento de 2024.

O economista Manoel Pires, professor do FGV Ibre, FGV EPPG e UnB e ex-secretário do Ministério da Fazenda - Keiny Andrade-23.set.19/Folhapress

"Fechar brechas, ampliar a base de tributação, tudo isso vai na linha de aumentar a arrecadação reduzindo distorções. Consequentemente, tem pouco impacto sobre a economia. Você tem um ajuste fiscal de alta qualidade, que melhora o resultado sem impor um sacrifício muito grande para a economia."

O economista afirma também que uma economia na qual os ricos são proporcionalmente mais tributados do que os pobres é mais eficiente.

As medidas do governo que tratam da tributação da renda e do lucro das empresas contribuem para a progressividade tributária e o crescimento econômico, que são os temas do seu livro?
A discussão sobre finanças públicas está muito envolvida na avaliação sobre se o governo vai cumprir ou não a meta no ano que vem. A avaliação sobre o mérito das medidas praticamente desapareceu.

Só se alcançará a meta se o governo conseguir aprovar esse pacote. A gente tem de avaliar o conjunto de medidas fiscais que tentam reestruturar o Orçamento e trazer a dívida pública para uma trajetória de sustentabilidade a partir dos seus efeitos. Se está contribuindo para melhorar o resultado fiscal, com distribuição de renda, se o custo econômico é muito alto em termos de atividade econômica.

Se você fizer um ajuste fiscal pela receita, corrigindo o sistema tributário, isso tem menos impacto contracionista do que se você simplesmente aumentar a carga tributária.

Fechar brechas, ampliar a base de tributação, tudo isso vai na linha de aumentar a arrecadação reduzindo distorções. Consequentemente, tem pouco impacto sobre a economia. Você tem um ajuste fiscal de alta qualidade, que melhora o resultado sem impor um sacrifício muito grande para a economia.

Se você escolhe tributar os contribuintes que têm maior capacidade econômica, isso também melhora a distribuição de renda e diminui o custo, o sacrifício que a sociedade vai fazer para reorganizar as contas públicas.

Esse conjunto de medidas não seria uma simples elevação de carga tributária.
Exatamente. Tem de olhar para a qualidade do ajuste [fiscal]. A maior parte do que o ministério [da Fazenda] está querendo fazer são coisas que vão na linha de uniformizar regras, tratar os contribuintes de forma equânime, reduzir incentivo fiscal e tributário.

A gente tem uma evidência empírica sólida dizendo que o impacto sobre a atividade desse conjunto de medidas é menor, por exemplo, do que outras formas de ajuste.

Tributar os mais ricos nesse caso será bom para a economia?
Você tem uma longa discussão relacionada à ideia de que mais progressividade pode gerar menos crescimento, porque você está desestimulando com a tributação as pessoas mais produtivas da sociedade.

Eu mostro no livro que na verdade isso não acontece. Você tem um sistema tributário com uma série de distorções. Ao corrigir isso, consegue ser mais progressivo e, ao mesmo tempo, mais eficiente.

Não seria melhor fazer o ajuste fiscal também com corte de despesa?
É mais fácil atingir o objetivo usando dois instrumentos do que um só. Até o ano passado focou-se muito na questão do gasto. Agora você está focando muito no lado da receita.

A gente fez reforma da Previdência, teve redução de gastos sociais como seguro-desemprego, teve um ajuste de folha de pessoal bastante significativo. Estamos com o menor gasto com folha em pessoal [em percentual] do PIB da série histórica.

Parte dessa economia foi usada para financiar a expansão do Bolsa Família. Você tirou recursos dos salários mais altos e colocou para as pessoas que são mais vulneráveis.

Tudo isso serviu para reduzir o gasto primário em 0,7 ponto do PIB. É pouco, mas você teve uma mudança de composição no gasto gigantesca com essa migração, a qualidade do gasto melhorou.

É natural que, à medida que essas balas de prata tenham se esgotado, você foque em outras coisas, o que não impede que volte para isso mais à frente.

Já temos uma discussão de reforma administrativa. Eu só não esperaria economizar muito, porque já teve uma economia relevante nessa questão de folha. Daria para mexer na Previdência dos militares, porque você teve uma reforma que aumentou o gasto, e você pode discutir salários de entrada no serviço público.

Como avalia individualmente cada uma das propostas tributárias?
Quase metade da arrecadação gira em torno do projeto do Carf, já aprovado. Você volta a ter o voto de minerva [desempate] associado ao governo.

No sistema anterior, gerava incentivo para litígio, porque toda vez que empatava, o contribuinte ganhava. Como está criando um sistema que reduz o litígio, a tendência é arrecadar mais.

A outra medida do PL do Carf é a questão da transação tributária, que reduz a pressão por Refis. Esses dois instrumentos são adequados. Se vão funcionar como o governo está prevendo, é difícil dizer, depende do comportamento do contribuinte.

Em relação às medidas que estão no Congresso, tenho incerteza com relação à aprovação, mas pouca incerteza em relação à capacidade arrecadatória. Duas medidas estão relacionadas à tributação de fundos fechados e offshores.

É difícil associar isso à ideia de que eventualmente vai se investir menos. Offshore é dinheiro que está lá fora, ele já está deixando de investir aqui. Se tributar, neutraliza o incentivo tributário para deixar o dinheiro fora do país.

O fundo fechado é uma estratégia de acumulação de riqueza em que você usa uma engenharia financeira para evitar o imposto. Uma vez que você revise essa estratégia, provavelmente esse dinheiro vai ser canalizado para algum tipo de decisão econômica.

As duas medidas envolvem justiça tributária. Vão tratar as pessoas de forma igual. Têm impacto positivo sobre a distribuição de renda porque afetam pessoas muito ricas. Existe capacidade de pagamento desse imposto. O custo econômico delas é muito baixo.

Com a MP das Loterias, vai ter aumento de arrecadação e um efeito positivo sobre a atividade econômica. A gente hoje tem uma segurança jurídica extremamente precária para essas empresas atuarem no Brasil. É uma medida para o crescimento e não contra o crescimento.

Outra medida é o fim dos juros sobre capital próprio. No livro, o sr. propõe uma reformulação desse instrumento.
A dedução dos juros sobre o capital próprio, do ponto de vista do mérito, impacta muito as empresas multinacionais, que usam isso como diferencial competitivo para se instalarem no Brasil.

A maior parte dos países não usa JCP. Nos que usam, esse instrumento funciona como uma redução muito particular do IRPJ [Imposto de Renda da Pessoa Jurídica]. Então é natural que haja uma discussão sobre redução de IRPJ para compensar isso [no Brasil].

Uma alternativa, que talvez ajude a acelerar a tramitação dessa medida, é, em vez de eliminar a dedução do JCP, reformular o instrumento atual.

A última medida, que é a questão dos incentivos fiscais de ICMS, eu acho justa, mas pode ter algum impacto econômico sobre a atividade, aumenta bastante a carga sobre as empresas. É a que está mais recebendo reclamação.

O governo está certo no mérito, não tem sentido o sistema que a gente tem hoje. O estado dá um incentivo fiscal, normalmente feito às escuras, e repassa parte da conta para o governo federal. Mas tem de avaliar se essa é a melhor decisão [aprovar como está o texto].

O governo prepara outras mudanças no Imposto de Renda, com a volta da tributação de lucros e dividendos. Seria importante também uma revisão dos regimes especiais do lucro presumido e do Simples?
A isenção de lucros e dividendos tem uma regressividade enorme, porque o topo da renda tem uma concentração importante nessa fonte de renda. Para financiar essa isenção, a gente tem hoje uma alíquota nominal muito grande sobre as empresas do lucro real.

A ideia seria reduzir um pouco essa alíquota e voltar com a tributação de lucros e dividendos. Com isso, aumenta a competitividade do sistema tributário e melhora a progressividade.

A tributação das empresas no mundo todo passou por uma reformulação. A ideia seria fazer a mesma coisa aqui: cortar IRPJ, porque a gente está entre as maiores alíquotas nominais do mundo, e voltar a tributar lucro e dividendo, reduzindo ou eliminando a isenção do JCP.

Há uma discussão absolutamente tupiniquim brasileira. Como você convive com um sistema tributário cuja alíquota de IRPJ é tão alta? Cria isenção para as empresas sobreviverem. Cria o lucro presumido, cria o Simples, deixa faixas grandes para esses regimes especiais. Com a redução do IRPJ, você diminui a vantagem tributária que existe nesses regimes.

A ideia é alinhar a tributação do Brasil ao resto do mundo, reduzindo o IRPJ, cortando isenções. Isso em tese gera crescimento, porque você está diminuindo muito a complexidade do sistema, está tornando o sistema menos distorcido.

Não sei se o governo vai conseguir fazer isso, porque a agenda tributária ficou muito pesada. Tem de aprovar a PEC da tributação do consumo, tem as medidas de ajuste fiscal que estão na praça, depois tem de regulamentar a PEC.

A gente tem de aguardar para ver se o governo vai achar espaço na agenda política para tratar desse tema.


RAIO-X

Manoel Pires, 44
Economista, coordenador do Núcleo de Política Econômica e do Observatório de Política Fiscal do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da FGV). É professor do mestrado profissional em economia e finanças da EPPG (Escola de Políticas Públicas e Governo da FGV) e da UnB (Universidade de Brasília). Foi secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda e chefe da Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento

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