Endividadas, mãe e filha moram em carro nos Estados Unidos

Chrystal e Cierra Audet passaram meses dormindo em estacionamento de igreja

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Rukmini Callimachi
Kirkland (EUA) | The New York Times

Chrystal Audet tentou se acomodar no que ela chamava de seu "quarto" —o banco de trás de seu Ford Fusion de oito anos. Para esticar as pernas, ela precisava deixar uma das portas entreaberta, mas as noites de setembro são frias no noroeste dos EUA, com chuvas intensas que doem os ossos.

De seu próprio "quarto" no banco da frente, a filha de Chrystal, Cierre Audet, 26, pediu para a mãe fechar a porta.

"Temos de sair disso", disse Chrystal Audet para si mesma enquanto puxava um cobertor para se proteger do frio e lutava para dormir em um estacionamento em Kirkland.

Chrystal Audet dorme no banco do carro em um estacionamento de igreja na cidade de Kirkland, nos Estados Unidos
Chrystal Audet dorme no banco do carro em um estacionamento de igreja na cidade de Kirkland, nos Estados Unidos - Ruth Fremson/The New York Times

Chrystal, 49, ganha mais de US$ 72 mil (R$ 365 mil) por ano como assistente social do Departamento de Serviços Sociais e de Saúde do Estado de Washington. Mas uma combinação de azar, dívidas e uma pontuação de crédito ruim a impediu de alugar um apartamento em Bellevue, outro subúrbio de Seattle, um dos mercados imobiliários mais caros do país.

Com uma ordem de despejo iminente, ela colocou seus móveis em um depósito na primavera local (outono no Brasil) e começou a estacionar o sedã em um estacionamento na frente de uma igreja em Kirkland.

O carro, seu maior investimento, tornou-se a sua casa. E um trecho desgastado de asfalto no terreno onde está uma igreja metodista virou o seu quintal, seu bairro e seu lugar seguro.

Imóveis estão sendo reservados para pessoas como as Audet na forma de estacionamentos em toda a parte nos Estados Unidos.

Dezenas dessas áreas foram abertas nos últimos cinco anos, como nos estados da Pensilvânia e da Carolina do Norte. Elas estão espalhadas pelo meio-oeste em Green Bay, Wisconsin, e Duluth, Minnesota.

As áreas também estão presentes no noroeste do país, oferecendo um porto seguro para um grupo crescente de trabalhadores americanos que enfrentam a mesma situação. Eles se situam entre ganhar pouco para bancar um aluguel e ganhar além do limite para entrar em programas de assistência do governo, e transformaram seus carros em uma forma de moradia acessível.

A Igreja Metodista Lake Washington começou a oferecer um ponto de apoio para os "sem-teto e com carro" em 2011, em resposta à "lei dos infratores" de Seattle, que previa a apreensão de carros que acumulavam várias multas de estacionamento, uma lei que foi desastrosa para as pessoas obrigadas a viverem em seus carros.

"Nossa ideia simples foi: 'Ei, se eles estiverem em nosso estacionamento, eles não receberão multas de estacionamento. E eles não serão parados e rebocados'", disse Karina O'Malley, que ajudou a criar o programa.

Agora, existem 12 desses estacionamentos no estado de Washington.

Tudo começou com um cheque sem fundo

Em 2001, Chrystal emitiu um cheque sem fundo. O caso foi para o tribunal e acabou em sua ficha, um dos vários contratempos que prejudicaram seu crédito.

A derrocada para uma dívida insustentável começou em dezembro de 2022, quando seu carro quebrou.

Com o nome sujo, o único empréstimo que ela encontrou veio com um custo alto: para o Ford Fusion 2015 com mais de 100 mil milhas rodadas (cerca de 160,9 mil quilômetros), ela está sendo cobrada com juros de 27,99%, o que equivale a uma parcela de US$ 398 (R$ 2.017,86) por mês.

Contas médicas na casa dos milhares de dólares chegaram para sua doença de Crohn. Ela deixou de pagar duas parcelas do aluguel. E então o proprietário aumentou o aluguel para US$ 248 (R$ 1.257,36) por mês.

"Foi um caso de uma conta a mais", disse Chrystal. Nesta trajetória, houve uma série de escolhas difíceis —entre o ruim e o muito ruim— que ela fez, muitas em momentos de desespero.

Ela passou uma semana em um hotel. A Expedia ofereceu a ela a opção de parcelar os pagamentos, que ela está pagando agora a uma taxa de US$ 138 (R$ 700) por mês.

Para evitar que seu aluguel que não foi pago fosse para cobrança, ela assinou um plano de parcelamento, concordando em pagar US$ 495 (R$ 2.509,65) por mês.

No meio do verão (inverno no Brasil), o salário líquido de Chrystal, quase US$ 4.300 (R$ 21,8 mil) por mês, foi consumido por contas que totalizavam quase US$ 2.600 (R$ 13.182), deixando-a com pouco dinheiro para pagar um apartamento em uma localização onde o aluguel médio é de US$ 2.200 (R$ 11.154).

Ela finalmente encontrou o estacionamento depois de ver uma reportagem sobre programas de estacionamento para pessoas sem-teto.

Para tentar equilibrar as contas, Chrystal trabalhava em dois empregos. Em uma noite recente, depois de sair do Departamento de Serviços Sociais e de Saúde do Estado de Washington, ela pegou o ônibus de volta para Kirkland, onde sua filha, uma estudante universitária, a esperava.

Elas passaram as três horas seguintes entregando comida pela plataforma DoorDash, fazendo uma pausa para o jantar e indo até de madrugada. A dupla ganhou US$ 86,05 naquela noite, depois gastou US$ 20 em gasolina e US$ 20,37 em um local que vendia waffles para o jantar.

Elas comeram no estacionamento vazio de uma escola, com o recipiente de isopor colocado no teto do Ford.

"É a ironia de trabalhar e ter uma boa renda e ainda assim não conseguir pagar por moradia", disse Chrystal. "Eu ganho US$ 32 e alguns centavos por hora, mas mesmo assim, me vejo lutando."

A reviravolta

Sua sorte mudou no final de agosto em um evento dentro da igreja, quando ativistas de moradia perceberam que ela estava sendo acompanhada por um repórter do New York Times.

Vários ofereceram seus cartões de visita. Um deles a orientou sobre como abordar potenciais proprietários —o que compartilhar e o que omitir.

Logo depois, ela visitou um apartamento de um quarto em Redmond, Washington, que custava US$ 2.360 por mês. Com 673 pés quadrados (cerca de 62,5 metros quadrados), era um palácio: bancadas brancas e pisos brilhantes se estendiam por um espaço 20 vezes maior que seu carro.

Uma omissão calculada —que ela não estava orgulhosa, mas sentia ser necessária— permitiu que ela superasse o primeiro obstáculo.

No formulário que solicitava dois anos de histórico de aluguel, ela deixou de fora seu apartamento mais recente. Como ela havia feito um acordo de pagamento, o aluguel não pago não apareceu em seu relatório de crédito.

Ela quase chorou quando ouviu que havia sido aprovada, mas quase perdeu o apartamento quando não pôde quitar o depósito caução. A igreja onde ela estava estacionando interveio, acabando com sua situação de sem-teto por cerca de US$ 2.000.

Chrystal e sua filha se mudaram em 23 de setembro.

Por enquanto, ela está aproveitando os prazeres mais simples da vida humana —tomar um banho em um espaço que é totalmente seu e se esticar quando dorme. No entanto, a matemática de sua vida continua precária. Sua dívida continua a consumir seu salário, deixando pouco para o aluguel.

"Eu estou sempre à beira do abismo", disse Chrystal. "Pelo menos eu tenho um carro para morar e um estacionamento seguro para ficar."

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto afirmou incorretamente que 673 pés quadrados equivaliam a 205 metros quadrados. A conversão correta é 62,5 metros quadrados

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