Os cadernos do barbeiro de Buenos Aires: uma história de inflação de 19.900%

Anotações de data, corte de cabelo e preço narram o impacto devastador da crise argentina

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Buenos Aires | Reuters

As anotações manuscritas nas duas dúzias de cadernos —data, corte de cabelo, preço— narram décadas da vida profissional de um barbeiro de Buenos Aires. Mas também contam outra história, a mais importante da Argentina: uma história de inflação de 19.900% e o seu impacto devastador.

Ruben Galante, 67, corta o cabelo do seu cliente, Luciano Munoz, 46, em sua barbearia, em Buenos Aires
Ruben Galante, 67, corta o cabelo do seu cliente, Luciano Munoz, 46, em sua barbearia, em Buenos Aires - Agustin Marcarian/REUTERS

Na sua pequena barbearia com piso de madeira e uma janela de vidro tipo aquário voltada para a rua, Ruben Galante assistiu durante cerca de quatro décadas as idas e vindas de presidentes, uma infinidade de crises econômicas e a rápida subida dos preços.

O homem de 67 anos anotou todos os cortes de cabelo que realizou nos últimos 20 anos, uma rara história pessoal dos altos e baixos da inflação durante um período de dados oficiais irregulares —e às vezes não confiáveis.

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Os cadernos pautados coloridos de Galante, guardados em uma pequena prateleira no canto de sua loja, mostram que, entre 1991 e 2023, os preços dos cortes de cabelo subiram de 15 pesos para 3.000 pesos. E o atual mandato do presidente de centro-esquerda Alberto Fernandez registou os aumentos de preços mais rápidos de qualquer administração durante essas três décadas —cerca de 757% desde que assumiu o cargo em dezembro de 2019, de acordo com os cadernos de Galante.

"Esta é uma crise longa, longa e está constantemente piorando", disse Galante à Reuters na sua loja. "Isso está nos deixando mais pobres."

A inflação é de longe a principal preocupação dos eleitores antes das eleições gerais de 22 de outubro. A uma taxa anual de 124% —o nível mais elevado desde 1991— ela impulsiona a ascensão de um radical de extrema-direita, Javier Milei, que quer acabar com o peso argentino.

Alguns economistas estimam que a inflação poderá terminar o ano perto dos 200%. À medida que os preços aceleraram, a Argentina sofre uma dolorosa crise de custo de vida que deixou 4 em cada 10 pessoas na pobreza.

Galante está preocupado com seus filhos já adultos: um filho em Buenos Aires e uma filha que se mudou para o exterior e faz parte de uma fuga de cérebros de jovens argentinos que buscam melhores oportunidades. "Meu filho tem uma academia de música, trabalha duro e não consegue comprar um imóvel, um carro", disse ele. "Ele trabalha muito, mas o dinheiro simplesmente não dura".

"PESOS DERRETEM"

Quando era um jovem barbeiro, Galante, de 26 anos, alugou pela primeira vez sua loja no arborizado bairro de Belgrano em 1982, último ano da ditadura militar. Três anos depois, comprou a loja com ajuda do banco.

Os primeiros anos foram um borrão de mudanças políticas e de crise econômica, à medida que o país regressava à democracia, mas entrou numa espiral de hiperinflação no final da década de 1980, quando os preços podiam mudar várias vezes ao dia.

Isso acabou em 1991, quando o governo de Carlos Menem fixou o peso na relação de um para um com o dólar. Galante lembra que definiu seu preço em 15 pesos, valor que manteria por mais de uma década. Aos vinte e poucos anos na cosmopolita capital sul-americana, Galante sentia-se confortável. Quinze pesos equivalia a US$ 15 com a indexação da moeda. A Argentina, uma potência econômica global há um século, ainda era uma das nações mais ricas da região.

Ele se lembra de ir à cafeteria ao lado, tomar vários cafés por dia, viajar, jantar fora e reabastecer sua barbearia regularmente. Agora ele está muito mais cuidadoso. A receita por corte de cabelo de Galante caiu para cerca de US$ 4 agora, segundo as taxas de câmbio paralelas usadas pela maioria dos argentinos.

"Meu poder de compra era muito maior naqueles anos, com 15 pesos, do que é hoje", disse ele, acrescentando como exemplo que sua renda proveniente de um corte de cabelo agora não dá para comprar nem uma pizza de muçarela. "Antes dava para comprar cinco."

Anos de declínio econômico corroeram o rendimento e as poupanças dos argentinos. Os mais ricos tentam guardar recursos fora do país em dólares para escapar da inflação e da desvalorização cambial.

ABAIXO DE ZERO

O peso na sua forma atual surgiu com a indexação do Conselho Monetário em 1991, depois de meia década de "austral" que terminou com hiperinflação durante os últimos anos de Raúl Alfonsin, o ícone do retorno da Argentina à democracia em 1983. "Com a convertibilidade, a inflação foi para quase zero", disse Galante.

Mas a paridade teve um custo: enfraqueceu a capacidade do país de puxar as suas próprias alavancas de política monetária e aproximou seu destino à saúde financeira dos Estados Unidos. A pressão começou a aumentar no final dos anos de 1990, à medida que os gastos excessivos do governo aumentavam e o desemprego se espalhava, terminando na grande crise econômica de 2001-02, sob o presidente Fernando de la Rua.

No final de 2001, argentinos furiosos apelaram para que o presidente renunciasse e encenaram uma corrida aos bancos enquanto tentavam fazer retiradas após os infames "corralitos", quando o governo confiscou poupanças, seguindo exemplo do que ocorreu no Brasil durante o governo de Fernando Collor de Mello.

Em 20 de dezembro de 2001, de la Rua fugiu do palácio presidencial de helicóptero. A indexação foi desfeita, a inflação voltou. A pressão sobre Galante para atualizar os seus preços aumentou, embora as dificuldades enfrentadas pelos seus clientes significassem que um aumento significaria perder negócios. "Os custos começaram a subir cada vez mais rápido", disse ele.

ACOMPANHANDO A INFLAÇÃO

Em 2005, sob o governo do presidente Nestor Kirchner (2003-2007), Galante aumentou o preço do corte de cabelo pela primeira vez desde 1991, de 15 para 18 pesos. Durante o mandato de Kirchner, aumentou o preço em um total de 53%.

A populista Cristina Kirchner, esposa de Nestor e durante anos a figura política mais poderosa da Argentina, assumiu o poder. No primeiro mandato, o preço do corte de cabelo subiu 117%, acelerando para 200% no segundo mandato.

Em 2015, o empresário Mauricio Macri assumiu o cargo prometendo responsabilidade fiscal. Ele fez algumas reformas que agradaram aos investidores, mas a economia começou a desmoronar e ele foi forçado a buscar um empréstimo de US$ 57 bilhões do FMI (Fundo Monetário Internacional) em 2018. Os preços dos cortes de cabelo subiram 133% nos quatro anos do governo Macri.

Isso subiu muito mais agora. A maior nota local —a nota de 2.000 pesos— não cobre mais uma simples aparada de cabelo.

Os aumentos de preços de Galante estão muito aquém da inflação geral e a diferença tem aumentado nos últimos anos, segundo uma análise dos dados oficiais da inflação.

Desde dezembro de 2016, os custos dos serviços públicos foram de certa forma contidos pelos subsídios governamentais, tal como as tarifas de ônibus e trens. O vestuário, os aparelhos domésticos e os produtos de mercearia subiram mais rapidamente, enquanto o maior salto ocorreu nos cuidados de saúde.

Na gaveta da barbearia, Galante tira papéis com anos de contas de saúde. A primeira conta de seguro saúde que ele teve foi de 798 pesos em 2007, e desde então atingiu 142.636 pesos, superando os preços de seu corte de cabelo.

"Eu nem tento mais acompanhar", disse ele, encolhendo os ombros resignado, explicando que precisava garantir que seus clientes regulares não fossem prejudicados.

Com as eleições à porta, Galante mostra-se cauteloso. Ele gostou da retórica sobre a terapia de choque para a economia feita pelo favorito Javier Milei, mas disse que está preocupado com a personalidade agressiva do candidato de extrema direita.

Ele disse que provavelmente votaria na conservadora Patricia Bullrich em vez do chefe econômico do partido no poder, Sergio Massa. Todos os três oferecem planos econômicos muito diferentes.

Enquanto Galante cortava o cabelo de um cliente regular, Luciano Muñoz, 46 anos, a conversa era principalmente sobre futebol. Mas as conversas quase sempre voltavam à economia e à inflação.

"A Argentina tem uma saída para isso, a saída é política", disse Galante. "Nosso país tem recursos e muitas coisas para poder ser melhor, mas parece que ninguém consegue chegar a um acordo sobre um modelo de como chegar lá."

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