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Acusado, ex-presidente da Americanas ficou famoso e mora fora do Brasil

Miguel Gutierrez mudou-se para a Espanha após escândalo nas contas da varejista

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Daniel Cancel Cristiane Lucchesi
São Paulo | Bloomberg

O ex-presidente da gigante varejista brasileira Americanas era praticamente invisível para o público. Ele evitava entrevistas à imprensa, mantinha-se distante de investidores e analistas e existem muito poucas fotos públicas dele.

Agora, Miguel Gutierrez é famoso.

No ano desde que o escândalo envolvendo uma fraude contábil de R$ 25 bilhões eclodiu na sua antiga empresa e manchou a reputação dos seus acionistas bilionários, o carioca mudou-se para a Espanha, enquanto as investigações continuam no Brasil.

Miguel Gutierrez, ex-presidente das Lojas Americanas, participa de videoconferência
Miguel Gutierrez, ex-presidente das Lojas Americanas - Reprodução/Americanas Summit 2021

Um inquérito interno produzido por um comitê independente contratado pela Americanas aponta diretamente para Gutierrez como mentor de um esquema que levou a varejista de 95 anos à recuperação judicial e tirou o emprego de 5.000 funcionários.

Uma investigação do Congresso trouxe a público documentos —revelados pela empresa— que alegam que Gutierrez e membros de sua diretoria executiva falsificaram contratos publicitários e ocultaram empréstimos tomados por meio de uma estrutura chamada de risco sacado a fim de esconder dívidas da empresa e aumentar os lucros.

Os investigadores da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), da Polícia Federal, do MP (Ministério Público) e do comitê interno independente da Americanas ainda estão tentando desvendar o funcionamento interno do suposto esquema. Eles não quiseram comentar o estado de suas investigações. Entretanto, dois executivos seniores aceitaram acordos de delação premiada e concordaram em cooperar com as autoridades.

Gutierrez negou qualquer irregularidade. Um repórter que bateu na porta de sua casa em Madri saiu sem resposta.

Se o ex-presidente for acusado em processos judiciais, ele seria a primeira grande figura interna da Americanas a enfrentar graves consequências da investigação.

Considerando que este foi um dos maiores escândalos corporativos de todos os tempos no Brasil, "um ano depois não avançamos muito", disse André Camargo, advogado e professor de governança corporativa e ética. "É um escândalo que chama a atenção pela multiplicidade de fatores envolvidos, e isso começa a acumular hipóteses em vez de ações."

O que ficou público com as investigações representa uma mudança na narrativa desde quando as inconsistências contábeis vieram à tona: alguns credores e até mesmo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriram que os três maiores acionistas da Americanas —os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira— tinham conhecimento do suposto esquema ou até mesmo participaram dele.

Os três negaram qualquer conhecimento ou envolvimento na fraude. Embora tenham enfrentado perdas com seus investimentos na Americanas, eles representam uma fatia tão pequena das suas participações que cada um deles fechou 2023 mais rico, com um aumento de cerca de 10% nas suas fortunas, de acordo com o Bloomberg Billionaires Index.

Eles adquiriram a Americanas em 1982, o que torna a empresa um dos investimentos mais antigos dos bilionários. A sua participação mais valiosa é a Anheuser-Busch InBev, a maior cervejeira do mundo, detida por meio da 3G Capital.

Em email enviado à Bloomberg, os advogados de Gutierrez "negaram veementemente" que ele tenha participado de quaisquer atividades ilícitas enquanto trabalhava na Americanas e disseram que os atuais executivos estão usando documentos fora de contexto na tentativa de criar uma narrativa falsa para proteger o conselho de administração e os maiores acionistas.

Discrição e eficiência

Gutierrez ascendeu na hierarquia da empresa ao longo de três décadas, ocupando cargos em operações e logística. Ele foi preparado por Sicupira, que primeiro comandou a Americanas como presidente quando ele e os outros dois bilionários compraram a empresa. Gutierrez era discreto, eficiente e sempre encontrava formas de cortar custos. Isso enquadrava-se na estratégia de Lemann, Telles e Sicupira, de comprar empresas concorrentes e aumentar os lucros por meio de ganhos de escala.

Aos poucos, ele foi sumindo do radar. Uma das poucas imagens dele que existem publicamente é uma captura de tela de uma teleconferência de resultados da empresa na qual ele fez uma aparição pré-gravada de aproximadamente dois minutos. No vídeo, fica claro que Gutierrez está lendo um roteiro.

Com o tempo, os três bilionários depositaram cada vez mais confiança em Gutierrez, enquanto passavam a maior parte do tempo fora do Brasil e se concentravam em muitos outros investimentos, segundo pessoas familiarizadas com o assunto e que não estão autorizadas a falar publicamente.

A longevidade e o poder de um presidente são fatores comuns em escândalos corporativos, segundo Camargo, acrescentando que o "super CEO" muitas vezes se torna quase intocável.

Foi em meados de 2022 que o conselho da Americanas decidiu substituir Gutierrez pelo conhecido executivo Sergio Rial. Gutierrez ficou chateado porque alguém de sua própria equipe não o sucederia, afirmou Rial durante a investigação do Congresso, acrescentando que o período de transição de quatro meses foi difícil.

Após apenas 10 dias no cargo, Rial anunciou as "inconsistências contábeis" e pediu demissão.

Na época, o trio bilionário emitiu um comunicado dizendo que "nunca teve qualquer conhecimento e nunca teria tolerado quaisquer manobras ou truques contábeis na empresa. A nossa atuação ao longo de décadas sempre foi de rigor ético e legal."

O choque foi instantâneo e generalizado. As ações da Americanas caíram quase 80% em um único dia e os títulos de dívida externa caíram para menos de US$ 0,20. Os credores correram para tentar receber suas dívidas, e o setor de dívida corporativa do Brasil e outros varejistas foram punidos, já que o incidente azedou o sentimento de um mercado que já sofria com juros de dois dígitos. A empresa buscou proteção judicial temporária contra os credores dois dias após o anúncio das inconsistências e pediu recuperação judicial seis dias depois.

Os gestores de nível médio da Americanas, que também recebem ações como compensação, perderam poupanças de uma vida em alguns casos. Acionistas minoritários, detentores de títulos e outros credores registraram enormes perdas. Os maiores bancos do Brasil fizeram provisões para empréstimos inadimplentes da Americanas de mais de R$ 15 bilhões, parte das quais ainda esperam recuperar.

Durante a investigação do Congresso, que durou quatro meses, o atual presidente da Americanas, Leonardo Coelho, apresentou conclusões que, segundo ele, vieram do comitê interno, sugerindo que Gutierrez e sua equipe criaram contratos de publicidade falsa como forma de reduzir passivos com fornecedores - que foram apresentados aos auditores - ao mesmo tempo em que não contabilizavam adequadamente dívidas com bancos provenientes de transações de risco sacado.

Duas versões dos balanços

Além disso, arquivos digitais com anotações com a caligrafia do próprio Gutierrez, localizados nos computadores da empresa, confirmaram a existência de duas versões das demonstrações de resultados da Americanas, segundo Coelho. Uma era correta e rotulada como "para uso interno" pelas pessoas que participaram da fraude, enquanto a outra era destinada ao conselho, investidores e acionistas, disse Coelho.

Membros da antiga equipe executiva também falsificavam cartas e assinaturas e pediram aos bancos que removessem as referências a operações de risco sacado, de acordo com as provas apresentadas. A investigação do Congresso concluiu que a fraude foi cometida, mas não identificou quem foi o responsável.

"Fraudes envolvendo alta administração são sempre bem desafiadoras, mas o sistema de governança corporativa conta com mecanismos que auxiliam a identificação do problema, mesmo nos casos em que a alta administração está envolvida", disse Pamela Roque, advogada e professora do Insper em São Paulo. "Vale também destacar que o fraudador costuma entender o sistema em que a fraude é executada e trabalha com ele."

A Americanas não disse se acredita que a fraude teve como objetivo enriquecer os executivos ou se houve uma tentativa de esconder problemas que acabaram saindo do controle. Há investigações sobre a razão pela qual alguns ex-diretores venderam ações no segundo semestre de 2022, antes de a fraude se tornar pública.

Os bilionários, cuja participação de 30% na Americanas encolheu em mais de R$ 3 bilhões com a exposição da fraude, foram forçados pelos credores nas negociações a investir R$ 12 bilhões para recapitalizar a empresa e concordaram em não vender ações por pelo menos pelo menos três anos. Isso se soma ao R$ 1,6 bilhão em investimentos líquidos —descontados os dividendos e juros sobre o capital próprio— que eles fizeram na Americanas na última década, dizem pessoas próximas aos bilionários, que pediram anonimato ao discutir assuntos privados.

Gutierrez e vários ex-executivos da Americanas, por outro lado, ganharam cerca de R$ 750 milhões em salários, bônus e benefícios durante o mesmo período, disseram as pessoas.

Os ex-executivos também venderam ações no valor de R$ 241 milhões nos meses que antecederam a divulgação da fraude, de acordo com um documento de janeiro de 2023 assinado pelo escritório de advocacia Warde Advogados, que representa importante banco credor.

Depois de reformular os dados financeiros de 2021 e 2022, a varejista conseguiu agora chegar a um acordo com os credores para reestruturar sua dívida de R$ 42,5 bilhões. A empresa pretende voltar a ter lucro até 2025, ajudada pela venda de ativos importantes e com a estratégia de concentrar-se na sua operação de lojas físicas.

É o Sicupira, que faz parte do conselho que supervisionou Gutierrez durante anos, quem investirá mais dinheiro para tentar dar suporte à Americanas, disseram pessoas a par do assunto, já que ele detém uma participação maior na empresa do que Telles e Lemann.

"As investigações estão demorando muito e os atrasos não são positivos, criam uma sensação de impunidade", disse Camargo. "A sociedade espera que haja responsabilização entre outras ações, além de tentar salvar financeiramente a empresa."

Erramos: o texto foi alterado

O período de transição no comando da Americanas foi de quatro meses, não de seis meses como afirmado em versão anterior do texto.
 

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