Brasil pode ficar fora do mercado exportador se não fizer carros elétricos, diz presidente de associação

Ricardo Bastos diz que o primeiro modelo nacional 100% a bateria estreará até o fim de 2025 e será de origem chinesa

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São Paulo

Quando tudo parecia ir bem para o segmento de veículos eletrificados, veio a retomada do Imposto de Importação. Ricardo Bastos, presidente da ABVE (Associação Brasileira do Veículo Elétrico), foi surpreendido pela medida, mas segue em busca de incentivos para o setor.

Por outro lado, as regras estabelecidas no programa Mover (Mobilidade Verde) devem colaborar para a nacionalização de produtos. Em entrevista à Folha, o executivo prevê que o primeiro carro nacional 100% elétrico estreará até o fim de 2025 e será de origem chinesa.

Ricardo Bastos, presidente da ABVE - Karime Xavier - 13.dez.2023/Folhapress

Qual é a avaliação da ABVE sobre o programa Mover, a nova regulamentação para o setor automotivo?
É muito positiva, o texto que foi enviado via medida provisória para o Congresso reflete bem o que discutimos. Do ponto de vista dos veículos eletrificados, estamos contemplados seja por eficiência energética, seja pelos critérios que irão desenvolver a nova tributação do IPI [Imposto Sobre Produtos Industrializados].

Os diferentes programas de incentivo em vigor, com vantagem para quem produz na região Nordeste, são vistos como um problema?
A diferença de incentivos entre regiões do Brasil é um tema que está sendo discutido. Há até um racha muito grande na Anfavea sobre esse assunto.

Do ponto de vista dos fabricantes de veículos híbridos e elétricos –principalmente das marcas chinesas GWM, que está em São Paulo, e BYD, instalada na Bahia há alguma possibilidade de o programa Mover equalizar os incentivos?
Não acredito que haja contrariedade em relação ao incentivo regional, o ponto não é incentivar a descentralização da indústria. O ponto é o tamanho do incentivo dado para o regional versus o que está sendo feito para o nacional.

Eu acho que, primeiro, o Mover pode equilibrar esse jogo na medida em que dá a regra do nacional. Pode-se continuar com algum incentivo regional, mas que não deve ser maior que o nacional.

Entendo que tem de haver um equilíbrio. O foco é a descarbonização, são as novas tecnologias. Se tanto o nacional quanto o regional forem nessa linha e houver, efetivamente, uma calibração maior para o nacional, acho que começaremos a ter posições mais conciliadoras.

Como a ABVE vê a questão do etanol conciliado à eletrificação?
O etanol, hoje, está principalmente sendo queimado no motor a combustão. Tudo bem, já há grandes ganhos em relação à gasolina quando olhamos o sequestro de carbono na plantação. Mas, em relação ao que sai do escapamento, não há muita diferença entre usar etanol ou gasolina, os dois são poluidores. A questão está no plantio da cana, e, aí sim, tem o equilíbrio.

Então, para as grandes cidades, a eletrificação seria a solução mais eficiente?
Exatamente. O etanol, para nós, deve continuar sendo base da matriz energética no sentido de abastecer os tanques de combustível. Mas não podemos ficar parados aqui.

A biomassa do etanol das usinas, por exemplo, já gera 30% da energia de São Paulo. Essa energia pode ser usada em uma bateria que vai alimentar um carro. O etanol pode ser fonte de energia não só para o motor a combustão, mas também para o motor elétrico e para o hidrogênio, que é o capítulo novo que está chegando. Temos que avançar nessa agenda.

A ABVE tem conseguido levar essas demandas ao governo? Algumas medidas tomadas recentemente, como a volta do Imposto de Importação para veículos híbridos e elétricos, parecem contrariar a associação.
Temos um diálogo bom com o governo, que entende a função da ABVE. Reunimos desde o pessoal do setor de energia elétrica, dos carregadores, até os fabricantes de ônibus. Temos o pessoal das bicicletas, dos patinetes, dos carros, dos caminhões. Trabalhamos para a eletrificação e, daqui a pouco, devemos contar também com o pessoal de matérias-primas, que fornece os ingredientes para as baterias.

Mas sentimos que, realmente, a nossa voz ainda não é escutada como é a de outros. No caso, a Anfavea ainda tem mais voz. É uma entidade que tem, obviamente, mais tempo de Brasil, mais conexão com algumas coisas. Ainda assim, temos espaço.

A ABVE tentou postergar o retorno do imposto?
Sim, tentamos, conversamos bastante. Nesse ponto, não posso reclamar do governo, que abriu espaço.

Mas, então, por que resolveram voltar com a cobrança neste ano?
Na visão principalmente de alguns técnicos do governo, chegou o momento. Nós apresentamos dados, falamos que 2%, que é o volume de eletrificados importados, não eram nenhuma agressividade. Estamos falando aí de um mercado total de 2 milhões de unidades, onde 40 ou 50 mil unidades são efetivamente importadas e eletrificadas.

Mostramos também que várias montadoras estão investindo no Brasil, já adquiriram fábricas e começam a produzir eletrificados no meio de 2024, como a GWM. Mas isso não foi suficiente.

A opinião da Anfavea, que foi publicamente contrária à prorrogação da isenção do Imposto de Importação, pesou na decisão do governo?
Acho que sim. A Anfavea é uma entidade influente, e está clara a posição que manifestaram. Acho que outras entidades, como o Sindipeças, também se manifestaram publicamente sobre isso. Acho que é normal, são associações que refletem os seus associados.

A isenção do Imposto de Importação dava um sinal muito forte de que o Brasil estava aberto às novas tecnologias.

Sentimos que, talvez, falte ao governo um pouco mais de capacidade de absorver ou de se abrir para ouvir novas entidades que estão chegando, novos players que estão investindo muito pesado. A GWM, por exemplo, está trazendo um programa de R$ 10 bilhões de investimento, sem falar das outras montadoras que estão caminhando. O Brasil é um produtor de veículos e tem uma cadeia de autopeças, nós precisamos cuidar disso.

Quando olhamos para o mundo, se o Brasil não produzir eletrificação pode ficar fora do mercado exportador, e não queremos isso.

A estratégia dos chineses é muito mais agressiva, certo?
É uma visão de longo prazo que a indústria nacional geralmente não tem. É muito pautada em tiros curtos, mas, ao mesmo tempo, tem uma preocupação de que a chegada do veículo elétrico, o início da produção, pode gerar um rebuliço muito grande em empresas que não estariam prontas para fabricar componentes. Isso demandaria muito investimento e poderia reduzir a necessidade de mão de obra, o que geraria demissões, talvez em massa.

Como a ABVE lida com esse problema? É possível gerar novos empregos sem que vagas existentes sejam dizimadas?
Você pode escolher se fechar, se esconder e postergar um problema que vai te atingir daqui a um par de anos ou um pouco mais. Em 2023, por exemplo, as exportações brasileiras começaram a cair. E não podemos culpar a Argentina, porque existem outros mercados que cresceram, como o mexicano.

Em algum momento, quando acordarmos, não vamos ter mais nada para buscar. E aí, vamos ficar presos a uma indústria antiga. No nosso entendimento, o Brasil deve se abrir, deve atrair as novas tecnologias.

Temos uma indústria gigantesca ainda de carros a combustão. Mas essa chave vem sendo virada aos poucos, grandes empresas já estão associadas à ABVE e produzindo no Brasil. Baterias de ônibus estão sendo montadas aqui, e precisamos trazer a produção de células também. Motor elétrico não é muito complexo de fazer, temos várias empresas produzindo.

A ABVE tem focado na fabricação de carros elétricos no Brasil?
Sim, queremos produzir os automóveis, como já produzimos os ônibus, mas com conteúdo nacional. Para isso, é preciso ter políticas de incentivo. Já fazemos a montagem de baterias para esses ônibus no Brasil, por exemplo. Mas também queremos produzir as células que vão nas baterias, aí é um passo maior. Exige investimento em pesquisa e desenvolvimento, parcerias com os principais países, como, por exemplo, a China, que está muito aberta ao Brasil.

O país pode ser uma grande unidade produtora em parceria com a China, para que a nossa indústria avance como a deles avançou nos elétricos. Mas, para isso, precisávamos ter as regras, as políticas claras.

O novo programa é suficiente para incentivar a produção de veículos eletrificados no Brasil?
O Mover vai, sim, provocar uma movimentação na direção de veículos mais eficientes e tecnológicos. A parte de segurança também será bem contemplada, os carros híbridos e elétricos que estão chegando trazem um alto nível de equipamentos. Vemos uma oportunidade muito interessante para a produção local, tanto do "powertrain" como dos equipamentos e dos sistemas de controle e de prevenção de acidentes.

Quando a ABVE acredita que o primeiro carro de passeio 100% elétrico será produzido em alguma fábrica instalada no Brasil, e qual vai ser a nacionalidade dessa fábrica?
Não vou citar a marca, não posso. Mas a nacionalidade eu posso citar. Nós estamos falando de um horizonte de até dois anos. Então, até 31 de dezembro de 2025, nós teremos produção nacional de veículos elétricos. E a nacionalidade será chinesa.

RAIO-X

Ricardo Bastos, 53

Nascido em Morrinhos (GO), é formado em Economia pela UNB (Universidade de Brasília) e diretor de relações institucionais e governamentais da GWM e presidente da ABVE (Associação Brasileira do Veículo Elétrico).

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