Descrição de chapéu China

'Chips devem fazer da moeda chinesa o dólar do século 21', afirma executivo de banco asiático

Vice-presidente do Bank of China Brasil defende ainda uso do yuan para ampliar oportunidade a empresas brasileiras

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São Paulo


Guerra comercial com os EUA, deflação, desemprego e queda nas Bolsas. Não são poucos os desafios da China para 2024. A segunda maior economia do mundo vive um período de desconfiança global ao mesmo tempo que avança em influência geopolítica e como potência tecnológica.

Nesse cenário, o gigante asiático vê o Brasil como um parceiro sólido e engata uma nova fase de investimentos no país. A avaliação é de Hsia Hua Sheng, vice-presidente do BOC Brasil (Bank of China) e professor de finanças na FGV EAESP.

Os chineses apostam no Brasil também como mercado importante para a internacionalização de sua moeda, o renminbi (RMB) —nome oficial do yuan.

"Se no passado os petrodólares ajudaram na internacionalização do dólar, devemos ter no futuro o 'chip RMB'", afirma Sheng, que acredita no fortalecimento da moeda chinesa com a relevância do país no domínio da tecnologia de chips.

Hsia Hua Sheng, vice-presidente do Bank of China no Brasil e professor da FGV-SP
Hsia Hua Sheng, vice-presidente do Bank of China no Brasil e professor da FGV-SP - Zanone Fraissat/Folhapress

Em março de 2023, Lula e Xi Jinping assinaram um acordo permitindo trocas diretas entre o yuan e o real sem usar o dólar americano como intermediário. Desde então, alguns testes foram feitos, caso de uma exportação de celulose da Eldorado Brasil, financiada e liquidada em moeda chinesa e convertida diretamente para real, em setembro, em operação com o BOC Brasil.

"O mundo está carente de uma moeda alternativa, e o yuan acabou preenchendo essa lacuna. Ela pode cumprir essa função de transação e também de financiamento", diz Sheng.

Prevendo aumento na atividade econômica entre os países, o BOC ampliou sua operação no Brasil com a compra do CCB (China Construction Bank) no país. Os dois bancos têm como acionista majoritário o governo chinês. O CCB é o segundo maior do país asiático, e o Bank of China, o quarto, sendo o mais globalizado deles.

"O Brasil é prioridade para a China. A visão chinesa é que há uma consolidação institucional muito sólida aqui. Tanto faz ser governo de esquerda ou direita, essa relação entre os países é constante", afirma o economista.

Sheng relata que a relação entre dois países pode ser dividida em três etapas. A primeira, com intensificação no comércio de commodities, a segunda, de investimentos chineses em infraestrutura e eletricidade, e a terceira, ligada à energia limpa.

Nessa terceira fase, segundo ele, é que há potencial para investimentos no país, com instalação de fábricas e geração de renda. Cita exemplos da indústrias de veículos elétricos e de placas solares.

A China está em crise?
Não, podemos dizer que a China está em transição econômica estrutural. Ela é a segunda maior economia do mundo, não é mais aquela economia pequena de 20, 30 anos atrás. Depois de tanto tempo crescendo, você precisa ter um ajuste.

A economia chinesa vive seus desafios no setor imobiliário, no excesso de dívida em alguns governos locais e até no desemprego.

O que a China busca é um salto qualitativo no crescimento econômico. Quer sair do patamar de produzir produtos de baixo valor agregado com muito volume para ser uma economia com manufatura de maior teor tecnológico, com maior valor agregado.

O país passa por um momento de investimento focado em energia renovável, solar, eólica e carros elétricos. Isso tudo para poder elevar o teor tecnológico da produção a um novo nível. De uma forma que ajude o objetivo de uma sociedade mais justa, com mais bem-estar para todos.

Precisamos lembrar que a China não é simplesmente uma economia capitalista. É um capitalismo visando uma sociedade mais justa. É um socialismo diferenciado. É muito importante fazer esse pente-fino, fazer esse ajuste qualitativo para avançar.

O que seria esse pente-fino?
Investir focando realmente os setores que vão levar a China para um outro patamar. Por exemplo, você não vai pulverizar o esforço, você se concentra no setor de alta tecnologia, no setor de energia renovável, verde, descarbonização.

Mas, é importante chamar a atenção que na última reunião econômica, em dezembro, o presidente Xi Jinping deixou claro que o país não vai largar a indústria mais tradicional.

Normalmente, o economista pensa o seguinte: para eu avançar na inovação, para avançar no aumento de tecnologia, tenho de largar um pouco o setor tradicional. De tal forma que você tenha aquela evolução disruptiva. Mas a China sinaliza que não quer fazer isso. Pretende um desenvolvimento industrial equilibrado. Eles chamam de rebalanceamento, justamente para manter a estabilidade da economia chinesa para crescer.

A ideia é usar esse benefício tecnológico para reparar problemas de produção nos setores mais tradicionais. É o caso da indústria têxtil, do setor imobiliário, por exemplo. Você vai introduzir novos elementos de tecnologia para tornar esses setores mais verdes.

É essa interação que a China quer avançar. Isso tem impacto no crescimento. Quando você inova em alta tecnologia e corre, o crescimento econômico é mais rápido.

Quando você quer refazer, reajustar o setor tradicional com a nova tecnologia, demora mais. Você tem de ajustar toda a parte estrutural. Isso que justifica, no meu entendimento, que não há necessidade de correr quantitativamente, e sim para um crescimento qualitativo.

Nesse cenário, a China crescendo menos é o novo normal?
Dá para dizer que crescimento de dois dígitos é muito difícil. No ano passado, teve 5,2% de PIB [Produto Interno Bruto], o que não é ruim.

Muitos analistas, principalmente nos EUA, comparam a situação da China atual com a do Japão na virada dos anos 1980 para os 1990, com risco de derrota numa disputa comercial com os EUA, desvalorização da moeda e crise econômica. O senhor concorda?
Não acredito. Primeiro, a China tem um mercado interno enorme. O Japão dependia somente do mercado global.

O mundo está diferente também. O Japão só tinha o mercado ocidental. Hoje há mais opções, uma interação muito maior entre os países dos Brics: Brasil, África do Sul, Rússia e Índia. Isso muda todo o cenário. Naquela época basicamente eram os Estados Unidos.

E tem um terceiro ponto: a China continua desenvolvendo a tecnologia, o que o Japão praticamente abriu mão de fazer.

A China hoje tem patentes muito importantes, seja de telecomunicação, seja na área digital, seja na área de energia renovável. Isso permite que continue produzindo, usando a aplicabilidade dessas patentes e inovando. Isso o Japão não tinha.

Mas as Bolsas chinesas acumulam quedas nos últimos anos.
Sim, mas, desde o início da guerra comercial dos EUA, a China venceu no front comercial, vence na tecnologia e enfrenta essa briga financeira. A economia chinesa está muito sólida em termos de produção, em termos de manufatura.

Então por que as Bolsas da China caem? A razão principal é a saída maciça do capital americano. Quando um capital americano, um capital inglês sai maciçamente, não tem um país que não dê uma balançada. Isso é muito normal.

Esse capital, basicamente, saiu todo junto ao mesmo tempo. É inimaginável isso acontecer nos outros lugares do mundo sem um efeito. Mas a China aguentou, está tranquila lá. Tudo bem, a Bolsa caiu, mas a China continua produzindo, exportando, crescendo.

A China é o maior parceiro comercial do Brasil, principalmente por comprar commodities. No que essa relação pode evoluir?

A relação com o Brasil mudou muito. Eu separo em três fases.

Você teve aquela primeira fase de commodities, de exportação para China, que segue acontecendo e é importante.

A segunda fase, que é muito mais de infraestrutura e energia elétrica, com investimento chinês aqui.

E temos uma terceira fase que casa com a própria transformação da China de querer ir para uma economia de modernização de alta tecnologia e energia renovável.

As grandes parcerias dos últimos tempos, principalmente do ano passado para cá, entre Brasil e China têm a ver com energias renováveis. É nisto que há investimento: painel solar, energia eólica e toda a parte de bateria, carros elétricos.

Tem também empresas de tecnologia vindo para o Brasil e montando fazer parcerias locais, criando cadeia de suprimento, caso da Shein, por exemplo. E, claro, tem o interesse chinês em explorar lítio, muito importante para baterias.

O perfil de investimento está mudando. Acredito que, futuramente, o tema central vai estar relacionado sempre com a bioeconomia, com a economia verde, com o processo de descarbonização.

E como o senhor vê o humor dos chineses para investir no Brasil?
A China viveu nos últimos anos essa mudança de cenário geopolítico, com guerra comercial dos EUA, depois os conflitos na Ucrânia, agora Oriente Médio, então isso dá uma segurada.

Mas acredito numa retomada de investimentos aqui. Dentro dessa pauta que citei.

Claro que a reaproximação do governo Lula com os Brics ajuda, mas é importante dizer que o Brasil sempre é prioridade para a China. A visão chinesa é que há uma consolidação institucional muito sólida aqui. Tanto faz ser governo de esquerda ou direita, essa relação entre os países é constante. O ambiente de negócio no Brasil é sólido.

Há cerca de um ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou um memorando de entendimento para promover o comércio bilateral nas moedas locais. O que isso muda para o empresário brasileiro?
O uso do yuan é o resultado da tendência do cenário de conflito geopolítico global. Na verdade, é o fortalecimento do uso de moedas locais. Isso surge após a medida de excluir a Rússia do sistema global de pagamentos Swift. Gerou um receio, um alerta de risco para países. Um desacordo com os EUA pode gerar um veto semelhante.

O mundo está carente de uma moeda alternativa, e o yuan acabou preenchendo essa lacuna. Ele pode cumprir essa função de transação, mas também função de financiamento.

Tivemos bons testes no ano que passou com empresas brasileiras. Fizeram empréstimos em moeda chinesa, usaram para capital giro, compra e venda de mercadoria.

A gente teve pela primeira vez uma operação de comércio entre os dois países feita em circuito fechado com as moedas locais, com transações financiadas e liquidadas em moeda chinesa e convertidas diretamente para real.

Mas qual a vantagem para o empresário brasileiro?
O juro em yuan é mais baixo que o dos EUA, que está em 5%. Na China, está em torno de 3%. Você tem uma diferença enorme. Isso facilita muito a captação.

Hoje são empresas grandes que testam. Para este ano, acreditamos que grupos menores que trabalham com exportação e importação também vão querer usar a moeda chinesa como opção.

Esse processo de internacionalização do yuan passa também pela corrida da China para dominar a cadeia produtiva dos chips?
Sim, totalmente. Se no passado os petrodólares ajudaram na internacionalização do dólar, devemos ter no futuro o "chip RMB".

A China rompeu a barreira das sanções tecnológicas nas áreas relacionadas a semicondutores impostas pelo EUA. As empresas de semicondutores conseguiram autonomia e seu domínio para produzir não só o chip avançado mas também as máquinas e os componentes.

Pode chegar um momento em que o chinês fala assim: para comprar chip aqui, vai ter de usar o yuan. Seria algo semelhante ao que tivemos com o petróleo na década de 1970 e o uso do dólar. Não existe outro país que tenha uma cadeia produtiva completa como a China para produção de chips.


RAIO-X

Hsia Hua Sheng, 49 anos
Economista, vice-presidente do Bank of China no Brasil. É professor de finanças na FGV EAESP

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