Como era o tira-dúvidas por telefone do BC, que recebia queixas de consumidores antes do real

Núcleo de atendimento, com 100 funcionários em dois turnos de seis horas, orientava consumidores

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Emerson Voltare
Presidente Prudente (SP)

Entre 1º março e 30 de junho de 1994 Maria Luísa Zaupa, 55, e sua mãe, Neusa Pires, hoje com 78 anos, tiveram de parar com o acabamento de sua tão sonhada casa própria. Motivo: o sistema de preços de mão de obra tinha entrado em colapso naquele curto período.

"A maioria dos pedreiros só queria fechar contrato em dólar, mas a gente ganhava em cruzeiro real", lembra a comerciária.

O governo já havia informado que em 1º de julho daquele ano entraria em vigor uma nova moeda, o real.

Homem grisalho, de ócuos de armação preta retangular, camiseta polo azul marinho, posa para foto em frente a estante com dezenas de volumes
Marco Antônio Orsini, funcionário aposentado do Banco Central, que ajudou a tirar dúvidas durante a implantação do Plano Real - Pedro Ladeira/Folhapress

Desconfiado dos fracassos dos planos Cruzado 1 e 2 (1986), Bresser (1987), Verão (1989) e Collor 1 e 2 (1990 e 1991), o brasileiro já estava cascudo com os seguidos picos hiperinflacionários e até confisco de poupança. E naqueles meses fundamentais para a implementação definitiva do real a inflação parecia não querer dar trégua.

A equipe econômica do então ministro Fernando Henrique Cardoso havia definido que uma URV (unidade real de valor) equivaleria US$ 1. Ou 647,50 cruzeiros reais em março. Em 30 de junho, o dólar ou a URV já estavam valendo 2.750 cruzeiros reais. Um repique inflacionário de mais de 400%.

Faixa com URV é afixada na fachada de uma floricultura da rua Sarutaia, nos Jardins, em São Paulo - Pisco Del Gaiso - 1º.mar.1994/Folhapress

Em meados de julho, a dona de casa Mônica Barbosa, hoje com 67 anos, não pensou duas vezes. Lembrando dos fiscais da Sunab (Superintendência Nacional do Abastecimento) do ex-presidente José Sarney (1985-1990), foi até o orelhão da avenida e ligou para o número 145, que caía numa central de tira-dúvidas do real na sede do Banco Central, em Brasília.

O arroz, o feijão, o óleo e o leite que tinha comprado fiado no armazém do bairro estavam várias vezes mais caros que o anunciado no panfleto da principal rede de supermercados de sua cidade, que ficava no centro de Jequié, 365 km a sudoeste de Salvador.

"A principal reclamação do cidadão no nosso serviço emergencial de tira-dúvidas do real era o abuso de preços. Ele queria que tivéssemos um poder de polícia para autuar o comerciante que estaria lesando o consumidor", relembra o analista do Banco Central hoje aposentado Marco Antônio Orsini, 72.

Ao lado de Maria Cristina de Lauro, 73, também aposentada do BC, comandaram o Nuate (Núcleo de Atendimento ao Público), uma equipe de cerca de 100 funcionários, em dois turnos de seis horas ininterruptas, das 8h às 20h.

"A nossa função era basicamente de orientação. Havia também um serviço de 0800 que passava automaticamente a cotação diária da URV antes da entrada definitiva da nova moeda".

Para se ter uma ideia dos valores do início do real, o salário mínimo da época ficou estabelecido em R$ 64. O quilo do arroz custava por volta de R$ 0,65. O centavo, depois de quase duas décadas, voltava a ter valor.

Um litro de gasolina era vendido em média a R$ 0,50. O mesmo preço da passagem de ônibus na cidade de São Paulo. E dez centavos a mais era o preço do bilhete do metrô paulistano (R$ 0,60).

A reclamação de dona Mônica tinha razão de ser. O leite, que na rede do centro da cidade estava anunciado por R$ 0,53, Candinho da mercearia do bairro de Mônica fez um cálculo de R$ 5 o litro. A mesma confusão o comerciante fez com o feijão e o óleo. Nenhum dos produtos era tabelado. O sistema de preços foi livre desde o início.

"Mas associações supermercadistas, sindicatos patronais, de trabalhadores, de serviços, entre outros, sentaram e montaram meio que uma tabela de preços e serviços sugeridos para começar a nova moeda", relembra Orsini, que ao lado da colega fazia treinamento diário com orientações principalmente sobre o sistema de preços.

"Acho que nunca mexi com tantos números em papel sulfite e acetato para treinar equipes por meio de retroprojetores. Era o que tínhamos na época."

Com as sugestões de preços divulgadas pelo Banco Central, Mônica Barbosa já podia negociar com seu Candinho a lata de óleo e o quilo do feijão, que ele pedia R$ 7 em julho de 1994, por cerca de R$ 1, na estabilização da moeda. Ou US$ 1 para ficar mais "chique".

Assim também fizeram Maria Luísa e dona Neusa com o azulejista, que pedia R$ 10 pelo metro quadrado do piso colocado, mais de 15% do salário mínimo da época. "Em meados de agosto daquele ano ele topou botar os 100 metros de piso da casa por R$ 2 o metro quadrado. Um valor justo. Em duas semanas, fez mais de três salários mínimos."

O Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socieconômicos) informa que na implementação do real cerca de 40% dos trabalhadores viviam com menos de R$ 200 ao mês.

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