Economia global não está pousando no paraíso, diz comissário da União Europeia

Paolo Gentiloni elogia esforço do Brasil em debate sobre taxação de super-ricos no G20, mas vê acordo global vinculante como longo caminho

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Rio de Janeiro

A inflação em queda e a atividade econômica resiliente sinalizam um pouso suave da economia global mais de um ano após a declaração oficial do fim da pandemia da Covid. Mas o ponto de aterrissagem depois de crises consecutivas impõe uma série de desafios, avalia Paolo Gentiloni, comissário da União Europeia para Assuntos Econômicos.

"Não estamos pousando em um paraíso", diz ele à Folha. O ex-primeiro-ministro da Itália cita desigualdades, necessidade de investimentos para questões climáticas e qualidade do crescimento econômico como problemas a serem enfrentados pelos países. "Pouso suave significa que o pior já passou", acrescenta.

Comissário da União Europeia para Assuntos Econômicos, Paolo Gentiloni, em evento em Bruxelas - Kenzo Tribouillard - 13.mar.2023/AFP

Defensor de um sistema de tributação mais justo, Gentiloni elogia o esforço do Brasil em colocar sobre a mesa o debate sobre a taxação de super-ricos no G20 –bloco composto pelas 19 principais economias do mundo, a União Europeia e a União Africana.

Ele, contudo, alerta que essa não será uma história "curta" e "fácil". "Minha experiência me diz que alcançar um acordo global vinculante é um longo caminho", afirma. O comissário da UE conversou com a Folha durante as reuniões de Finanças do G20, no final de julho no Rio.

Quais são os principais riscos para a economia global daqui para frente?
Tivemos que enfrentar duas crises. Primeiro, a pandemia. Quando a reação estava se mostrando razoavelmente eficaz em parte da economia mundial, com o restabelecimento das relações comerciais e das cadeias de suprimentos, a invasão russa [na Ucrânia] criou uma segunda crise seguida. Se olharmos para os números gerais, a perspectiva para a economia é bastante positiva. Teremos um crescimento global de 3,2% neste ano e estável no próximo ano. Mas ainda sofremos com as consequências.

As consequências da pandemia estão entrelaçadas com tensões geopolíticas e riscos de fragmentação do comércio global. O impacto sobre os preços de alimentos e de energia e a inflação ainda estão tendo consequências difíceis, especialmente nos países mais pobres. Na África, por exemplo, o risco de sustentabilidade da dívida é muito alto. Estamos indo em direção ao chamado pouso suave, mas ele não anula as dificuldades no comércio global e os riscos para sustentabilidade da dívida em economias menos avançadas.

Vê a economia da zona do euro indo em direção ao pouso suave?
A zona do euro é simbólica dessa tendência. Tivemos uma enorme crise por causa da pandemia, mas tivemos uma reação rápida e forte. Em 2022, a economia europeia cresceu mais forte do que a dos Estados Unidos e da China. Mas a invasão russa está afetando especialmente a economia europeia. Alcançamos em outubro de 2022 nosso pico de inflação, de 10,6%. Tivemos de mudar nosso modelo energético, deixando para trás os combustíveis fósseis russos, o que era importante tanto para nossa independência energética quanto para questões relacionadas ao clima. Tivemos um 2023 difícil, com inflação ainda alta e praticamente nenhum crescimento na Europa.

A inflação agora caiu, está em 2,5%, e o crescimento está voltando muito moderadamente. Esperamos que este crescimento acelere no próximo ano considerando que a inflação está caindo, que o mercado de trabalho ainda está bastante forte e que isso poderia aumentar o consumo. A inflação afetou o poder de compra das famílias, mas agora os salários estão aumentando gradualmente, a inflação está diminuindo. Se tivermos uma retomada do consumo, o crescimento moderado que temos agora se tornará maior em 2025. É isso que tanto a Comissão [Europeia] quanto o FMI [Fundo Monetário Internacional] estão estimando para o próximo ano.

O comunicado do G20 fala sobre a crescente possibilidade de um pouso suave da economia global. Como o sr. acha que isso deveria ser tratado?
Referir-se a essa perspectiva positiva é a coisa certa a ser feita. Mas o lugar onde estamos pousando não é um paraíso. Pouso suave significa que estávamos em uma crise profunda e, apesar da pandemia e do aumento sem precedentes da inflação em 50 anos, estamos conseguindo ter uma situação melhor. Mas ainda temos problemas: qualidade do crescimento, necessidades de investimento para o clima, para inovação digital, desigualdades. Pouso suave significa que o pior já passou. Mas se quisermos reconstruir [a economia] da melhor forma, precisamos de todos os esforços que o G20 está discutindo.

O sr. disse há alguns anos que era hora de repensar a tributação na Europa. Em sua opinião, o mundo progrediu em direção à tributação global?
Progressos impressionantes foram feitos, primeiro em transparência e troca de informações. Alcançamos um acordo histórico sobre tributação global com dois princípios. Primeiro, ter uma tributação mínima de 15% para empresas. Segundo, ter um mecanismo que possibilite que as grandes multinacionais paguem seus impostos onde estão fazendo negócios e não onde têm suas sedes, o que chamamos de realocação dos direitos de tributação. Esses dois acordos que foram alcançados a nível do G20 alguns anos atrás ainda estão lutando para serem implementados. Valorizo que a presidência brasileira esteja trabalhando para evitar a perda desse ímpeto. São grandes feitos.

Agora, o terceiro capítulo. A presidência brasileira introduziu a perspectiva de uma iniciativa global para tributar as pessoas super-ricas. Temos diferenças impressionantes em nossas sociedades entre os super-ricos, que em vários casos são mais ricos do que vários países. A dificuldade dessas pessoas em pagar impostos e o risco de evasão fiscal estão minando a coesão social e a credibilidade dos sistemas tributários. Portanto, a necessidade e o problema são justificados e importantes. Como abordá-los é outra história.

Seria preciso um mecanismo global eficaz, porque, do contrário, o que está se tentando fazer em um país ou em uma região faz essa riqueza se mover para outra parte do mundo. Minha experiência me diz que alcançar um acordo global vinculante é um longo caminho. É uma boa coisa começar essa discussão, mas sem dar a impressão de que isso seria uma história fácil e sabendo que isso implica entrar em mecanismos tipicamente nacionais.

O paradoxo é a necessidade de um acordo global sem o qual nunca haverá uma tributação eficaz da super-riqueza, mas, ao mesmo tempo, é preciso respeitar a soberania nacional dos países e seus sistemas econômicos. Será um longo caminho a ser percorrido, mas acho louvável o esforço da presidência brasileira, pelo menos de colocar isso na mesa.

Qual outro aspecto, além da soberania nacional, poderia ser uma barreira?
Estamos apenas começando um processo. É cedo demais para identificar obstáculos e como endereçá-los. Há uma dificuldade sobre como tornar esse objetivo prático e implementável. Portanto, não será uma história curta e fácil.

Uma eventual vitória de Donald Trump nos EUA pode colocar mais pressão sobre a Europa para aumentar investimentos na área da defesa. Que transformação econômica isso implicaria?
Estamos satisfeitos com a cooperação com o governo Joe Biden e com a secretária do Tesouro [dos EUA], Janet Yellen. Nesses quatro anos, eles forneceram uma abordagem multilateral para questões globais, que foi absolutamente positiva e necessária. Ao mesmo tempo, a União Europeia vai cooperar com os EUA independentemente de quem for eleito.

Temos a experiência do [ex-] presidente [Donald] Trump abordando os diferentes interesses econômicos da UE e dos EUA de uma maneira mais competitiva. Também já experimentamos o apelo de Trump para aumentar os investimentos em apoio à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar do Ocidente] pela Europa. Diria que a UE está preparada. Devemos aumentar nossa defesa comum independentemente dos resultados das eleições americanas. Temos que aumentar nossa competitividade. O que acontece nos EUA pode ser um acelerador para isso, mas tenho certeza de que são coisas necessárias na Europa.

Quanto às questões climáticas, o Brasil tem demonstrado preocupação com o mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (Cbam). Como responde a isso?
Em primeiro lugar, elogiamos o engajamento e a liderança do Brasil e do presidente Lula em questões ambientais, o compromisso de lançar a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, mas também o compromisso de manter o clima na agenda. São mensagens da vontade do Brasil de não subestimar os desafios da transição climática.

No que diz respeito ao mecanismo de ajuste de carbono na fronteira, não estamos protegendo nossa economia contra importações. Estamos aplicando às indústrias vindas de fora as mesmas regras que aplicamos às indústrias europeias em termos de emissões de CO2. De acordo com nossa estimativa, isso não está afetando especialmente o Brasil. Mas entendemos que isso pode ser motivo de preocupação. Por esse motivo, esse mecanismo foi introduzido com um período de transição e não entrará em vigor antes de 1º de janeiro de 2026. Temos bastante tempo para esclarecer.


RAIO-X

Paolo Gentiloni, 69
Comissário da União Europeia para Assuntos Econômicos. Foi primeiro-ministro da Itália entre 2016 e 2018. Antes, atuou como ministro das Relações Exteriores e da Cooperação Internacional da Itália (2014-2016). Graduado em ciências políticas.

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