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Popularidade de Milei sobrevive na Argentina em meio à 'terapia de choque' na economia

Pesquisa aponta que presidente tem 52% de aprovação em governo com aumento de desemprego e da pobreza, e queda na inflação

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Manuela Tobias Patrick Gillespie
Buenos Aires | Bloomberg

Dizer que a vida não tem sido fácil na Argentina desde que Javier Milei foi eleito presidente seria minimizar a realidade cotidiana de uma nação passando por uma espécie de cirurgia econômica.

Nos oito meses desde que assumiu o cargo, os preços dispararam mais de 100%, o consumo caiu e o desemprego aumentou, enquanto os argentinos foram submetidos ao choque de austeridade mais brutal da história recente.

No entanto, algo inesperado aconteceu sob a gestão de Milei: apesar de todo o sofrimento contínuo, ele permanece tão popular quanto quando chegou ao poder prometendo cortar o estado com uma motosserra. Mesmo alguns dos afetados continuam a acreditar em seu amargo remédio econômico.

Javier Milei, presidente da Argentina, acena após discursar em evento em Buenos Aires
Javier Milei, presidente da Argentina, acena após discursar em evento em Buenos Aires - Juan Mabromata/AFP

Entre eles está Monica Perez, que tem 57 anos e é dona de um açougue, cujo sorriso disfarça o fato de que a antiga capital mundial da carne bovina viu o consumo do produto cair para o nível mais baixo em mais de um século.

Os trabalhadores da construção civil, a maioria de sua clientela, que costumavam pedir cortes de carne por quilo, agora dizem quanto dinheiro têm para gastar e compram o que isso permitir.

Isso é indicativo de uma espiral descendente de longo prazo, à medida que o poder de compra despencou sob o governo anterior. É uma tendência que se acelerou sob Milei. Perez, no entanto, ainda não desistiu dele.

"Claro que tenho esperança", diz ela em seu comércio no bairro de La Union, a uma hora ao sul da capital argentina. "As coisas têm que mudar. As coisas vão mudar, para melhor."

A Argentina está nos estágios iniciais de um experimento econômico e monetário que determinará se pode escapar de décadas de declínio e recuperar parte de sua antiga confiança como superpotência de commodities. Em todos os lugares que você olha, há sinais de decadência e as tensões que isso causa na população.

Mais da metade dos argentinos agora vive abaixo da linha da pobreza, enquanto a "terapia de choque" de Milei exacerba os já impressionantes níveis de miséria que ele herdou.

Desde que assumiu o cargo em dezembro, o presidente libertário cortou pensões e salários públicos, interrompeu quase todos os projetos de infraestrutura pública, desvalorizou o peso em mais de 50% e eliminou os controles de preços de tudo, desde leite até contas de telefone celular.

À medida que os gastos são reduzidos ao máximo em 30 anos, o número de sem-teto está aumentando. Famílias inteiras se tornaram presença constante fora dos supermercados, pedindo um saco de arroz ou macarrão, e muitas vezes tocando campainhas nas ruas da capital pedindo roupas usadas.

Os eleitores que observam os destroços ainda mantêm um alto grau de lealdade ao presidente.

A popularidade de Milei está em 52%, um aumento de um ponto percentual desde fevereiro, segundo o instituto de pesquisas Management & Fit. O antecessor, Alberto Fernandez, acumulou uma taxa de rejeição de 79% no final de seu mandato e agora enfrenta acusações de violência doméstica que podem agravar os problemas da agora oposição.

A imagem mostra uma cena de rua em frente a uma loja. Há uma pessoa saindo da loja, enquanto três pessoas estão sentadas no chão, conversando. Um cachorro pequeno está próximo à porta da loja. O ambiente é urbano, com prateleiras visíveis através da porta de vidro da loja.
Moradores de rua ficam em frente a supermercado de Buenos Aires; mais de 50% da população já está abaixo da linha de pobreza - Alessia Maccioni/AFP

A queda da inflação —o principal grito de guerra de Milei— é um dos pilares que sustentam o apoio do mandatário. Os aumentos mensais de preços caíram de um recorde de três décadas de 25,5% em dezembro de 2023 para 4% em julho de 2024.

A raiva residual contra o peronismo, o movimento estatista que governou a Argentina por 16 dos últimos 20 anos, mais recentemente sob Fernandez, ajuda a explicar o restante.

Perez, cujo açougue fica na esquina de uma estrada não pavimentada que não tem acesso a um sistema de esgoto público, lamenta as décadas de generosidade estatal com pouco a mostrar além de uma lista de estatísticas desanimadoras. "A maioria de nós está exausta", disse ela. "É por isso que votamos nele (Milei). E por isso ele ganhou."

Os líderes argentinos há muito enfrentam um equilíbrio delicado entre a necessidade econômica e a conveniência política.

É uma façanha que tradicionalmente envolve uma balança entre resolver os questionamentos da economia que exigem dor de curto prazo, enquanto tentar conciliar os custos políticos e manter as ruas calmas, de acordo com Camila Perochena, historiadora da Universidade Torcuato Di Tella em Buenos Aires.

Milei jogou esse modelo pela janela com um estilo de "o que for preciso" que abalou a política e protege suas taxas de aprovação, por enquanto, de greves trabalhistas e outros contratempos habituais.

O resultado é "um momento sem precedentes" sob o primeiro presidente economista do país, na avaliação de Camila. "(Milei) tem a convicção de que deve priorizar o equilíbrio macroeconômico sem considerar o custo social ou mesmo os custos políticos que as medidas de austeridade terão."

Para ser justo, Milei deu uma desacelerada na terapia de choque nos últimos meses para manter a inflação sob controle e proteger a classe média —que ele acredita formar a espinha dorsal de sua administração—, de acordo com um de seus principais assessores, que pediu para não ser identificado ao discutir a estratégia do presidente.

Em julho, o mandatário argentino interrompeu a remoção de subsídios de energia que faziam com que a maioria das famílias pagasse apenas 5% do custo da eletricidade; com a inflação sob controle, o Ministério da Economia reiniciou o aumento dos preços em agosto.

Desde que houve a desvalorização de 54% em dezembro, o governo rejeitou pedidos para acelerar sua depreciação mensal de 2% da taxa oficial do peso —ou eliminar os controles de capital por completo— porque temem que tal movimento apenas aumente os preços ainda mais.

Para manter o peso paralelo mais próximo da taxa oficial, o governo está intervindo no mercado de câmbio, consumindo as reservas internacionais acumuladas nos primeiros meses de austeridade, abalando Wall Street no processo. Manter o patamar atual da moeda apenas adia mais a recuperação, avaliam a maioria dos analistas, alimentando uma recessão já profunda que deve encolher a economia em 3,7% este ano.

Até agora, o autodenominado antipolítico provou ser mais politicamente astuto do que muitos pensavam. Em junho, Milei conseguiu aprovar no Congresso, com maioria da oposição, uma série de reformas econômicas que alteram as leis trabalhistas, incentivam grandes investimentos estrangeiros e até aumentam os impostos sobre a renda.

Ele fez isso através de negociações implacáveis e mudanças no gabinete, apesar de se dizer repetidamente que o Parlamento é "um ninho de ratos". Seus planos mais radicais, como a dolarização da economia, estão em segundo plano por enquanto.

Para desvendar o edifício de controles de capital implementados pelos governos anteriores, reviver a atividade e retornar aos mercados de capitais, Milei está apostando em um empréstimo considerável do FMI (Fundo Monetário Internacional)— ao qual a Argentina já deve US$ 44 bilhões.

No entanto, a intervenção do governo na moeda para manter a inflação baixa vai contra as medidas de política ortodoxa prescritas pelo credor com sede em Washington, e o conselho precisa ser convencido de que seu maior devedor merece sua 23ª chance. Milei ainda acredita que um novo programa pode vir ainda este ano.

Em última análise, é sua capacidade de estabilizar e reativar a economia que será julgada, de acordo com Camila Perochena.

Juan Pablo Rudoni é um exemplo disso. Sua empresa de construção modular com 300 funcionários, EcoSan, registrou uma queda de 40% nas vendas no primeiro semestre deste ano, impulsionada pela decisão de Milei de cortar os gastos com obras públicas que repercutiram no setor de construção da Argentina, um dos maiores em termos de emprego.

A EcoSan prosperou durante os anos da pandemia construindo hospitais modulares e continua erguendo habitações ou escritórios para indústrias como mineração, petróleo e gás.

Mas Rudoni não pode entregar o último projeto contratado pelos predecessores de Milei: apartamentos de dois andares e escritórios de treinamento profissional destinados a favelas da cidade. Eles estão praticamente concluídos, parados na fábrica da EcoSan nos arredores da cidade de Buenos Aires.

Entretanto, Milei ainda não nomeou um oficial para assinar os certificados que Rudoni precisa para ser pago e entregar. Enquanto isso, as contas de serviços públicos de sua empresa aumentaram entre 500% e 600% este ano, à medida que o presidente da Argentina gradualmente retira subsídios que mantinham os preços em níveis absurdamente baixos.

Apesar de tudo isso, Rudoni apoia a ambição de Milei de transformar a Argentina em um paraíso pró-negócios e está disposto a engolir o aumento das contas de serviços públicos. Mas ele acredita que a austeridade foi longe demais, muito rápido. Além disso, Rudoni está abrindo uma nova fábrica ainda em 2024 que financiou anos atrás, sem antecipar a histórica recessão.

Ele espera que a economia no país melhore até o final do ano. Caso contrário, Rudoni prevê que "será insustentável para nós manter nosso pessoal e estrutura."

"Precisamos ver uma luz no fim do túnel. Mas o problema é que essa luz não parece estar ao alcance", desabafou o empresário.

Os argentinos não recorreram a Milei cegamente. O país passou mais tempo em recessão desde a década de 1950 do que qualquer outra nação, segundo relatório do Banco Mundial deste ano. Um argentino nascido quando o país voltou à democracia em 1983 já viveu hiperinflação, desemprego recorde, calotes soberanos, múltiplas desvalorizações do peso e várias moedas inventadas que não existem mais. Grande parte desse tempo foi passado em recessão.

Mais recentemente, a renda média dos funcionários administrativos caiu de US$ 1.500 em 2017 para menos de US$ 500 no ano passado, antes de subir ligeiramente sob a supervisão de Milei, de acordo com dados compilados pela consultoria EconViews, com sede em Buenos Aires.

O presidente reconhece a dor e mantém que o "esforço massivo" feito pelos argentinos valerá a pena. Ao mesmo tempo, ele não está oferecendo uma alternativa.

"Tudo o que puder ser cortado, nós cortaremos", disse ele em uma entrevista de rádio em 19 de julho. "A motosserra nunca para."

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