Relembre dez textos do ex-ministro Delfim Netto publicados na Folha

Economista morreu nesta segunda-feira (12), aos 96 anos

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São Paulo

O economista e ex-ministro da Fazenda Antonio Delfim Netto, que morreu nesta segunda-feira (12) em São Paulo, colaborou com a Folha ao longo de décadas com centenas de colunas escritas.

Relembre, a seguir, dez textos marcantes do economista.

O ex-ministro Delfim Netto em seu escritório em Higienópolis - Eduardo Knapp/Folhapress - 26.out.2018

O amor ao próximo - 27.jan.1988

Dennis Robertson, um soberbo economista inglês, costumava dizer aos seus alunos que a principal tarefa dos economistas era minimizar o uso do mais escasso de todos os recursos: o amor ao próximo.

O prof. Robertson insistia com seus alunos para que desconfiassem de todas as propostas que requeiram, para o seu bom funcionamento, certas formas de altruísmo ingênuo, que realiza sempre o oposto de suas boas intenções.

Essa insistência pode parecer cínica para quem ignora o tamanho moral de Robertson, mas mostra uma realidade que tem dominado a política de muitos países.

Ainda agora, ela revela o seu aspecto devastador na formulação do que se chama "a política social" do projeto de Constituição, onde os nossos "progressistas", como bons altruístas amadores, têm tentado incorporar toda a sorte de medidas que não vão beneficiar o trabalhador, mas vão dificultar o funcionamento da economia de mercado.

Para entender isso com clareza é preciso recordar o seguinte:

  1. Ao longo de suas histórias o homem encontrou duas formas básicas de organizar a sua sobrevivência: o comando e o mercado;
  2. A forma do "comando" é a organização hierárquica a partir do centro (o comandante militar ou religioso, o partido, a igreja). Ela tem sido usada em mais de 95% do tempo de que se tem registro escrito. Ainda hoje ela é usada na maioria dos países que chamam a si mesmo de "socialistas".
  3. A forma do "mercado" foi descoberta pelo homem há menos de 300 anos. Em 1776, Adam Smith revelou que as pessoas, agindo de acordo com seus interesses, não produziam o caos, mas sim uma sociedade razoavelmente organizada, capaz de absorver com rapidez os progressos tecnológicos. Adam Smith viveu o começo da revolução industrial sem pressenti-la. Marx, um século depois, mostrou todo o potencial revolucionário para o progresso da humanidade dessa forma de organização pelo mercado a que se chamou "capitalismo" e destacou as suas injustiças;
  4. A interação entre o "mercado" e a ampliação da política pelo sufrágio universal foi corrigindo dramaticamente aquelas injustiças do "capitalismo", que se revelou, afinal, capaz de conciliar um razoável grau de eficácia produtiva, com um razoável grau de liberdade individual e com razoável segurança social, dentro do que se chama "economia social de mercado";
  5. As economias de "comando", como são as que se denominam socialistas, revelaram-se incapazes de conciliar a justiça social com a eficácia produtiva e a liberdade política, produzindo, de fato, uma nova Idade Média. Hoje são os próprios dirigentes dessas economias que reconhecem esse fato, como se lê no livro "Perestroika", de Gorbatchev.

A forma de organização pelo "mercado", isto é, pela livre iniciativa individual e pela concorrência, não foi invenção de ninguém. Foi descoberta acidental tornada possível por curtos instantes ocasionais de redução da vigilância do poder estatal. Ela revelou-se mais eficaz do que o "comando", tanto do ponto de vista produtivo, quanto do ponto de vista da liberdade individual e pode incorporar a segurança social.

Já em 1930, Lange e Lerner, dois economistas socialistas de envergadura, "descobriram" (e muito antes deles, Barone) que para uma administração eficaz, o sistema de preços (e as empresas) socialistas tinham de imitar o mercado.

Em 1961, Abel Aganbegyan (hoje o principal assessor econômico de Gorbachev e autor intelectual de "Perestroika") já se dedicava a desenvolver técnicas matemáticas que imitam o mercado. Isso parece novidade para os "progressistas" tupiniquins.

É preciso entender isto: o herói do "capitalismo" não é o empresário, mas o mercado, que significa a liberdade de iniciativa e a concorrência. Quando se deixa a um certo tipo de empresários a organização do capitalismo, eles o matam, exatamente porque tentam organizá-lo não em torno da concorrência, mas em torno de monopólios, de conluios, de reserva de mercado, de subsídios, de créditos com juros privilegiados, como aliás já alertava Adam Smith, em 1776! É preciso, portanto, proteger o capitalismo (a economia de mercado) também da ação de certos capitalistas!

Este é o ponto importante: na medida em que as decisões que serão incorporadas à Constituição dificultarem o livre funcionamento da concorrência; na medida em que elas estimularem a ação produtiva do governo que é reconhecidamente ineficaz; na medida em que criarem custos atuarialmente não estimáveis pelas empresas; na medida em que criarem reservas de mercado; na medida em que sacrificarem o mercado pela "segurança social"; elas estarão dificultando a organização da economia e tornando menos eficiente o sistema produtivo.

Como subproduto disso, estarão diminuindo as possibilidades de ampliação das liberdades individuais, e da segurança social, exatamente o oposto do que desejam nossos altruístas amadores mas, talvez, exatamente o que pretendem tantos "empresários" oportunistas!

Lei de Gerson - 4.ago.1993

O que se chama comumente de teoria econômica é um corpo organizado de conhecimento construído a partir de algumas observações muito gerais sobre a forma de comportamento humano. Na verdade, ela é pouco mais do que um sistema construído a partir de uma particular concepção do homem como um ser "racional" e "economizante".

Racional no sentido de que ele procura, permanentemente, aumentar o nível do seu bem-estar, e "economizante" no sentido de que ele, com a mesma racionalidade, procura encontrar os caminhos do maior bem-estar sujeito ao menor dispêndio de esforço.

De um ponto de vista clínico, a teoria econômica é pouco mais do que um fantástico sistema dedutivo construído a partir da famosa "Lei de Gerson"' transformada num axioma.

A crítica moralista à "Lei de Gerson" supõe um homem de natureza altruística, preocupado com seus semelhantes, incapaz da discriminação racial ou religiosa e, mais recentemente, sensível às questões ecológicas. A teoria econômica é construída a partir de um homem egoísta, sempre buscando um ponto de mínimo (menor esforço, menor custo, menor gasto de energia) ou um ponto de máximo (maior bem-estar, maior lucro).

É claro que do ponto de vista moral é horroroso pensar (e pior, aceitar) um homem egoísta. Como seria bom ter uma sociedade fraterna, onde a política econômica pudesse ser entendida e realizada de forma decente. Onde as inevitáveis contradições de interesses produzidas pela infinitude das necessidades e dos desejos, em contraste com a finitude de meios para satisfazê-los, pudessem ser resolvidas de maneira "justa".

Recentemente alguns economistas começaram a explorar este caminho, para recuperar
"a moral perdida pela economia". A separação entre moral e economia é coisa do fim da Idade Média. O grande Adam Smith dividiu-se entre elas, escrevendo dois livros muito interessantes, "A Teoria dos Sentimentos Morais", em 1759, e, quase 20 depois (1776), "A Riqueza das Nações", não totalmente compatíveis. Isso deu origem ao que se chama "o problema de Smith" (integração entre as duas obras).

Na matemática, disse Wittgenstein, hoje tão banalizado, "nada se descobre, tudo se inventa". Na economia, nada se inventa, tudo se descobre. É por isso que a economia nunca será uma matemática. O economista precisa "descobrir", não "inventar". E o que os economistas descobriram?

Descobriram que com a hipótese do "homem egoísta" eles explicam (ou entendem?) um número muito maior de fenômenos econômicos do que a do "homem altruísta". É claro que nenhum homem concreto pertence a qualquer dessas classificações extremas. O que parece claro (ainda que lamentável) é que o homem real, normal, mediano, tem um claro viés para "egoísmo".

Mais ainda, quando se tenta construir um fundamento microeconômico para a teoria macroeconômica, verifica-se que a agregação fundada naquela hipótese produz resultados mais parecidos com os verificados na realidade.

Não podendo mudar os homens, o novo recurso dos economistas é mostrar-lhes que eles estão num jogo (uma outra matemática) cuja solução "racional" e "economizante" é a cooperação. Paradoxalmente, o homem "egoísta" encontrará o "altruísta", por força do "Axioma de Gerson"!

Feijoada e câmbio - 8.mar.1995

As pessoas que não têm preocupação profissional com os assuntos econômicos têm grande dificuldade de entender por que os economistas discutem ferozmente sobre a política econômica. O leitor atento e sensível deve ter percebido que as discussões não se travam "entre" os economistas, mas de cada um com o "público", tentando convencê-lo da validade de suas posições.

A economia política não é uma ciência pura, como a física ou a química, em que a maior parte das disputas podem, em geral, ser resolvidas com um experimento crítico. Nela, a retórica é um instrumento de convencimento e suporte da política econômica.

É por isso que a analogia é um poderoso argumento. Por exemplo, a proposição: "A taxa de câmbio é como o preço do feijão, sobe ou desce de acordo com a oferta e a procura", convenceu 100% dos banqueiros, que ganharam centenas de milhões de dólares sem produzir um "pirulito". Em compensação, não convenceu os exportadores, que perderam os mesmos dólares produzindo sapatos, máquinas etc.

É tão arraigada a concepção de que a "oferta" e a "procura" produzem o preço "justo" que basta mencioná-la para tornar o resultado aceitável.

Tudo se passa como se "oferta" e "procura" fossem construções divinas. Algum Deus revoltado (por que não Mercúrio?) roubou dos céus a "oferta" e a "procura" e as entregou aos homens para que resolvessem com justiça os problemas de produção e distribuição dos bens necessários à vida em sociedade.

O interessante é que a analogia faz algum sentido e por isso convence. Mas o mais interessante é o que ela esconde. "Oferta" e "procura" não são coisas feitas, encontradas na natureza. São produto da obra humana! São produto da manipulação das conveniências de produtores e consumidores. Se a oferta de feijão supera a demanda de feijão num período de tempo, o ajuste se faz pela queda dos preços.

Mas o que acontece se a oferta de feijão dependesse de outra variável que não o seu preço fixado pelo mercado como, por exemplo, da colocação de estoques pelo governo? O "preço" seria outro e outra a dinâmica do ajuste. Aqui haveria dúvida sobre a "justiça" dos preços, porque todos veem a oferta arbitrariamente manipulada.

Ora, no caso do câmbio nominal é exatamente isso o que ocorre. A "oferta" depende das transações comerciais, mas depende, também, das operações financeiras comandadas pelos diferenciais de taxa de juro interna e externa. A "oferta" é manipulada por quem controla a taxa de juro.

Mas há uma pequena diferença entre o preço do feijão e a taxa de câmbio real. Ela certamente não produz feijoada, mas é um dos instrumentos importantes do equilíbrio interno e externo da economia. A taxa de câmbio real é, no fundo, o produto dos "fundamentais": o equilíbrio interno (pleno uso da capacidade instalada) e o equilíbrio externo (equilíbrio desejado em conta corrente).

Democracia e capitalismo - 19.jul.2000

Quase todas as utopias (algumas muito pouco democráticas) fazem restrições à acumulação de riquezas. De Thomas More a Karl Marx, elas enxergaram na propriedade privada a origem da desigualdade.

O que hoje parece claro é que —de acordo com a crítica tão antiga quanto a ideia— a eliminação da propriedade privada leva à ausência do mercado e à completa sujeição do indivíduo ao Estado. A experiência soviética e de todos os seus satélites é exemplar a esse respeito.

A questão é: como construir instituições que produzam relativa igualdade sem comprometer a eficiência produtiva e a liberdade dos cidadãos? A história mostra que os regimes de economia centralizada tendem a sacrificar a eficiência produtiva e a liberdade em favor da igualdade econômica. Os regimes de economia descentralizada tendem a sacrificar a igualdade econômica em favor da eficiência e da liberdade.

A relação entre a desigualdade econômica e o crescimento é complexa. Temos três variáveis (desigualdade, crescimento e liberdade política) determinadas simultaneamente e que devem manter-se em relativo equilíbrio.

O problema da igualdade talvez seja o único ponto de sustância que hoje separa a "esquerda" da "direita", se é que essa classificação ainda faz algum sentido, pois, dependendo do ponto de vista, é claro que os homens são iguais e desiguais ao mesmo tempo.

O processo democrático de resolver os conflitos (as urnas), combinado com o processo econômico que busca certa racionalidade (o mercado), parece constituir um mecanismo adaptativo eficiente para coordenar as três variáveis. É por isso que essa combinação tem condições de sobreviver: pode ir compondo uma sociedade que vai acomodando, pragmaticamente, três valores não inteiramente compatíveis: liberdade, igualdade e eficácia produtiva.

O estudo da história mostra uma intrigante correlação entre a liberdade política, a liberdade econômica e o desenvolvimento material. A relação não parece ser de simples causalidade, mas de possibilidade. Cada vez que os indivíduos, nos seus múltiplos papéis (de consumidor, de trabalhador, de inventor, de empresário), viveram num mundo em que a ordem política, religiosa ou militar não tinham valor exclusivo e na qual a sociedade civil não era submetida à completa tutela de um Estado autoritário, eles tenderam a encontrar formas organizacionais que privilegiavam a busca da eficácia produtiva e a pesquisa de inovações tecnológicas que caracterizam o capitalismo.

Uma coisa parece certa: o sistema capitalista deixa de ser funcional quando não há um relativo equilíbrio entre a liberdade, a igualdade e a eficiência produtiva. É isso que coloca em dúvida a sobrevivência da política neoliberal, porque, para ela, a igualdade é de menor importância. O problema é que a busca da igualdade é uma constante na história do homem.

Arte política e ciência econômica - 26.10.2005

Temos sempre insistido que a teoria econômica não é uma "ciência dura", na qual o universo observável é relativamente estável e pode ser explorado através de experiências de laboratório largamente controláveis e perfeitamente reproduzíveis.

A teoria econômica tem que enfrentar uma "natureza" que se altera (as instituições) e um objeto (o homem) que reflete, reage e se defende das intervenções das políticas econômicas executadas por governos que se supõem a si mesmos como neutros e benevolentes.

As chamadas "leis econômicas" são, necessariamente, de natureza "empírica"; verificam-se em dado contexto institucional e histórico garantido pela ordem jurídica construída na Constituição. A "experiência histórica" mostra, por exemplo, que as sociedades mais tolerantes com o funcionamento dos mercados, e que garantem a livre apropriação por seus agentes econômicos dos benefícios resultantes de suas atividades (desde que sejam consideradas "legais"), acabam construindo instituições (propriedade privada) que estimulam a explicitação do "espírito animal" dos agentes (os empresários) que mobilizam os fatores de produção e promovem o desenvolvimento econômico.

O processo produtivo propriamente dito é regulado pela tecnologia disponível e pelos interesses dos agentes e condicionado por relações objetivas. Mas Stuart Mill (antes de Marx) já sabia que a distribuição do produzido não é, propriamente, uma questão "técnica", mas uma questão política regulada pela norma constitucional.

Dessa forma, a realização dos dois valores, 1) máxima eficiência produtiva e 2) certa justiça distributiva, precisa ser politicamente compatibilizada. Outro elemento da maior importância é que um terceiro valor desejado pelos homens, a liberdade individual plena, é compatível com a máxima eficiência (os dois apoiam-se na exploração máxima das diferenças individuais), mas certamente incompatível com uma relativa justiça social.

Onde o neoliberalismo falha de maneira irremediável é na sua prioridade máxima ao individualismo e ao livre funcionamento dos "mercados", que, por "definição" e com tempo suficiente, produziriam a "melhor compatibilização" dos três valores: 1) máxima eficiência produtiva; 2) relativa justiça social e 3) ampla liberdade individual.

Os problemas enfrentados por quase todas as economias do mundo refletem a rejeição de tais proposições. As desigualdades criadas pela ênfase irrestrita no processo competitivo estão destruindo o "estado do bem-estar" nos países desenvolvidos e vai levantando uma onda de "irracionalidade" nos países emergentes. Esta traz consigo o risco de perder-se o objetivo de maximizar a taxa de crescimento econômico com políticas compensatórias bem focadas para reduzir a desigualdade e que resistam à tentação de restringir a liberdade.

A compatibilização daqueles objetivos só pode ser feita pelo exercício da "arte política" que respeite as restrições tecnológicas impostas pela "teoria econômica". Só o exercício da "boa política" pode salvar a "boa teoria econômica".

Valor do trabalho - 19.09.2007

Gostemos ou não, há algumas ideias que foram sendo internalizadas pelos indivíduos, que, por sua própria ação, se transformaram lentamente em "cidadãos", quer dizer, exigentes de liberdade, de justiça e de um nível razoável de igualdade.

A organização social foi incorporando instituições que, dinamicamente, levaram à construção daqueles valores, mas que, também, proviam a subsistência dos cidadãos. A maximização do bem-estar geral exige não apenas o exercício da liberdade, a sensação de segurança e justiça, o sentimento de inclusão produzido pela relativa igualdade mas também, e significativamente, a eficiência da estrutura produtiva.

O processo histórico seletivo, quase biológico, que transformou o indivíduo em cidadão mostrou que o mais eficiente sistema produtivo compatível com a liberdade individual é a economia de mercado, o que se chama de "capitalismo". Nela, movendo-se por sinais (preços) e incentivos adequados, os cidadãos acomodam a sua atividade. A maior virtude da "economia de mercado" é que ela não foi inventada.

Foi "descoberta" na atividade prática exigida pela necessidade de sobrevivência, muito antes de o indivíduo transformar-se em "cidadão".

Está na origem dessa construção o papel que se espera do Estado constitucional nos dias de hoje: 1) que com tributação leve a utilize de forma eficiente para cumprir as tarefas que só ele pode fazer: a) proporcionar bens públicos fundamentais, como segurança interna e externa, justiça razoável e estabilidade do valor da moeda e b) construir a infra-estrutura quando a taxa de retorno social do investimento é incapaz de atrair o setor privado, e 2) que dê ênfase na sua ação às necessidades dos mais pobres, provendo-lhes recursos temporários para uma subsistência digna, simultaneamente com a criação de mecanismos que lhes dê a oportunidade de se libertarem desse constrangimento. O imperativo ético da ação do Estado começa na "assistência", mas termina na "libertação".

Devemos ao velho Karl duas ideias fundamentais que ajudam a entender o nosso problema: 1) que o "capitalismo" está longe de ser uma organização natural, como supõem alguns de nossos economistas. E 2) que o trabalho não é apenas uma atividade para atender às necessidades do homem, mas a sua primeira necessidade, a "condição natural de sua vida"! É isso que inspira o pensamento keynesiano: todos têm o direito (não o "favor") de exercer um trabalho decente, o que, infelizmente, a "mão invisível" não pode garantir.

Keynes e Marx - 29.abr.2009

Marx e Keynes têm pelo menos três curiosos paralelismos.

Primeiro, um bando de fanáticos dogmáticos que pretendem ter o monopólio do entendimento de suas teorias transformaram-se em sacerdotes de suas igrejas. Dizem (e, quando têm poder, fazem!) as maiores barbaridades em nome dos seus deuses, comprometendo as suas memórias.

Segundo, a relação dos dois com economistas que os precederam envolve um considerável cinismo e a sutil apropriação de ideias que reconhecem muito mal. Os dois foram, obviamente, fatos novos. O problema é que se pretendem sem raízes.

A relação de Keynes com Marx é das mais ambíguas. As referências a Marx na "Teoria Geral" (1936) ou são inócuas ou depreciativas. Ainda em 1934, ele diz a Bernard Shaw que "meus sentimentos em relação ao 'Das Kapital' é o mesmo que tenho em relação ao Alcorão...", reafirmando o que já havia dito em 1925: que não podia aceitar uma doutrina fundada numa "bíblia acima e além de qualquer crítica, um livro-texto obsoleto de economia que eu sei que é cientificamente errado e sem interesse de aplicação no mundo moderno".

O enigma (o "conundrum", como diria um velho ex-quase "maestro" do Fed que ajudou a meter o mundo na confusão em que se encontra) é que em 1933 Keynes estava elaborando a sua revolucionária Teoria Monetária da Produção. Nela, a moeda produz efeitos reais sobre a produção e o emprego, ao contrário do que supõe, até hoje, a maioria dos economistas, para os quais a moeda é neutra no longo prazo.

De acordo com notas publicadas por alguns alunos, ele se referia nas aulas ao famoso problema da "realização", isto é, a possibilidade de vender a produção para "realizar" o seu valor em moeda, e dizia que "em Marx há um núcleo de verdade"!

Chegou a utilizar a conhecida fórmula de Marx em que este havia mudado a ênfase de uma economia de trocas: trocar bens ("commodities" em inglês) por moeda, para comprar bens (C-M-C), para uma economia da produção, onde a moeda compra bens para a produção e esta é vendida por moeda (M-C-M). Esta mudança na forma de ver o mundo é uma das bases da construção keynesiana.

O terceiro ponto é que a conclusão da obra de ambos não deixa de ser paradoxal e frustrante.

Marx comprometeu sua vida estudando o capitalismo e, por isso, não teve tempo de nos ensinar como construir o socialismo; Keynes construiu uma teoria para salvar o capitalismo e terminou com uma receita ("a coordenação estatal dos investimentos para manter o pleno emprego") que não conseguiu explicar como realizar sem levar a alguma forma de socialismo.

Sutileza - 17.out.2012

Nas "Lectures on Jurisprudence" (de 1766), Adam Smith afirma que todos os homens são iguais e têm um direito natural à vida, à liberdade e ao pleno gozo da sua propriedade, sem se preocupar como ficará a igualdade no correr da vida.

Condorcet, nas "Cinq Mémoires sur l'Instruction" (de 1791), reconhece a diferença natural dos homens e assegura que são direitos naturais de todos a liberdade, a segurança, a propriedade e a igualdade.

Na primeira metade do século 18, não havia um sistema de instrução pública organizado e a educação era, geralmente, feita por meio de preceptores privados aos quais só podiam ter acesso as famílias mais abastadas. Aliás, Smith era uma delas.

O sistema de instrução pública (pago para Smith e gratuito para Condorcet) seria o caminho para o gozo dos direitos naturais, aperfeiçoaria a humanidade e aumentaria a solidariedade social.

Há uma divergência entre o papel da educação para Smith e para Condorcet. Para este, "a instrução pública destina-se a aperfeiçoar a espécie humana". Não se trata de promover a igualdade absoluta, mas de dar a todos a oportunidade de participar do progresso da humanidade e da ampliação do conhecimento.

É curioso ele já advertir para os riscos de uma educação pública gratuita, ao dizer claramente que "é preciso proteger o saber e seus agentes de possíveis controles do poder, seja ele civil, político, religioso ou econômico".

Para Smith, que postula a igualdade dos cidadãos ao nascer, os hábitos, os costumes e a educação são fundamentais na explicação das desigualdades dos talentos e no comportamento moral dos indivíduos.

Ele chega a dar um exemplo: a diferença entre um "filósofo" e um trabalhador comum. "Quando eles vieram ao mundo e durante os primeiros sete ou oito anos de suas vidas, deveriam ser muito parecidos. Depois, incorporaram-se ao mundo de formas diversas. Isso ampliou, pouco a pouco, a diferença de talentos, até que ao final a semelhança entre eles é irreconhecível".

Notemos que, para Smith, a coisa é mais sutil. Potencialmente, a simples ampliação da instrução não é, necessariamente, uma condição do progresso da humanidade, porque o aprendizado do conhecimento e do saber fazer corresponde ao papel desempenhado pelo indivíduo na divisão do trabalho, que gera o crescimento da riqueza.

Para Smith, um papel importante da educação é o de anular os males sobre os humanos produzidos pela condição do progresso material que é a divisão do trabalho.

Direita e esquerda - 15.abr.2015

Há algum tempo tudo era simples e claro. De "direita" era o sujeito antiquado, pouco imaginativo, resistente ao "progresso", defensor da "ordem", que acreditava na produtividade do trabalho e desconfiado da democracia. Estava preocupado com a sua "liberdade", que, a história mostra, costuma ser morta pelo excesso de "igualdade". Acreditava em Deus e que, no mundo que Ele criou, 2+2=4, o que ele comprovava, empírica e diariamente.

De "esquerda" era o sujeito "progressista", que defendia a "igualdade" da qual emergiria, naturalmente, a "liberdade". Supunha-se portador do futuro e, portanto, saber para onde iria o mundo. Os intelectuais do século 20, inclusive no Brasil, lhe haviam ensinado a "verdade": o mundo caminha para o socialismo e ele está sendo construído por Lenin e Stalin, no paraíso soviético...

O fantástico paradoxo é que os mesmos intelectuais, na mais plena ignorância das limitações sociais e físicas que sofriam a construção daquele paraíso, reforçavam a certeza que Deus já tinha morrido e, consequentemente, a restrição 2+2=4 era apenas mais uma imposição autoritária da injustiça social construída pelos interesses do miserável "capitalismo".

A mensagem generosa e libertária da "esquerda" (o "eu posso" dos 20 anos sem ter sofrido a vida), aliada ao sentimento natural de solidariedade do ser humano, era um atrativo irresistível. Ainda mais quando apoiada na lógica implacável de Marx sobre as injustiças ínsitas na organização capitalista, principalmente na sua vulgata para consumo nas batalhas juvenis dos diretórios acadêmicos.

Hoje tudo é confuso e complicado. "Direita" e "esquerda" perderam o seu vigor e a sua graça. Estão mais para sinal de trânsito do que ferramentas na batalha para construir uma sociedade civilizada, onde o lugar de cada cidadão não dependerá do acidente do seu nascimento e a transmissão geracional da riqueza acumulada, pelo mérito ou pelo acaso, será mitigada.

Um dos mais respeitados e insuspeitos intelectuais de esquerda, o economista e professor Robert Heilbroner reconheceu que "há menos de 75 anos do começo da competição entre capitalismo e socialismo (o 'real', digo eu), ela terminou: o capitalismo venceu... Tivemos a mais clara prova que o capitalismo organiza os problemas materiais da humanidade mais satisfatoriamente do que o socialismo" ("New Perspectives Quarterly", Fall, 1989).

Perdemos a clareza, mas aprendemos que quem civiliza o capitalismo é o sufrágio universal que os trabalhadores inventaram no século 19 para defenderem-se do poder do capital que se exprime nos mercados.

Oportunismo metafísico - 16.nov.2021

O clima de polarização parece ter chegado de vez à seara econômica, o que não é um bom prenúncio para os meses vindouros. A qualidade do debate sobre temas importantes —e, consequentemente, sobre as formulações dos caminhos para o Brasil— fica prejudicada quando se perde a objetividade necessária.
A capacidade de o país manter a responsabilidade e a organização fiscal, nossa vulnerabilidade há de muito, volta a ser questionada a partir da infeliz proposta da PEC dos Precatórios.

Além de elevar a insegurança jurídica ao deixar de pagar dívidas que já transitaram em julgado, altera o indexador do teto de gastos de maneira casuística e eleitoreira para acomodar oportunisticamente despesas sob o véu da necessária expansão da rede de proteção social aos mais pobres (que seria factível sem que houvesse a violação das regras fiscais, como já mostraram inúmeras propostas de qualidade superior).

É falso, contudo, que o Brasil esteja à beira do abismo fiscal —assim como é falsa a relegação da importância do teto a uma mera entidade metafísica. A trajetória do gasto primário como proporção do PIB continua declinante, e, mesmo depois de ter gastado muito em termos absolutos e relativos, o Brasil conseguiu "segurar" e reverter a dinâmica de dispêndio imposta pela pandemia.

Por outro lado, o estrago causado pela opção (e a forma) de "furar" o teto está relacionado à significância de violar-se a credibilidade de nossa âncora fiscal como elo com um futuro fiscalmente sustentável.
Não é sobre os montantes envolvidos. A dinâmica da dívida pública é endógena e prospectiva, aspectos cruciais que frequentemente passam ao largo deste debate.

Ao reajambrar o teto dessa forma, neste momento, com as motivações implícitas e sem necessidade, corrói-se o mecanismo de coordenação através do qual o Estado brasileiro prometia, a partir da contenção do ritmo de crescimento dos gastos públicos, ser fiscalmente responsável. Isso tem reflexo nos preços, inclusive em parte dos que determinam a trajetória futura do endividamento público.

Pode-se discutir se o teto era o melhor instrumento para atingir tais objetivos, e o Brasil já não escapará de retomar o debate, que se espera seja racional, sobre a reorganização da miríade de regras fiscais vigentes em um arcabouço factível e crível em termos de regras, práticas e gestão orçamentária. Mas isso não altera o ponto central sobre o que representa a alteração hoje sobre a mesa. O resto é chantili.

Lamento profundamente a partida precoce de Cristiana Lôbo. Fará muita falta. Minha solidariedade à família e aos amigos.

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