Desde que os primeiros pedidos para importar produtos medicinais derivados da Cannabis foram aceitos pela Anvisa, em 2015, o órgão emitiu mais de 235 mil autorizações —80,6 mil no primeiro semestre deste ano.
O uso medicinal da maconha tem ganhado força diante de doenças como epilepsia e esclerose, mas, como o cultivo da planta é proibido no Brasil, é preciso recorrer à importação —que pode ser feita individualmente ou intermediada por empresas— ou a associações de pacientes que obtiveram habeas corpus coletivo para o plantio.
"Essas associações estão encabeçando o desenvolvimento do mercado", diz Getúlio Reale, pesquisador do grupo Cannabis, Mercados e Sociedade, do IFRS (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul). "Elas não têm fins lucrativos, mas desenvolvem uma gestão de negócio que pode ser aproveitada no futuro."
Com a concessão de habeas corpus, têm surgido growshops, lojas dedicadas ao cultivo que vendem produtos como fertilizantes e lâmpadas.
Clínicas especializadas na prescrição e escritórios de advocacia que auxiliam no processo também têm movimentado o setor a partir da possibilidade de importação. Por outro lado, a falta de regulamentação ainda traz riscos jurídicos e financeiros.
Fundada em 2016, a The Green Hub é uma aceleradora de negócios canábicos com 19 empresas em seu portfólio, incorporadas em quatro rodadas de investimentos. Juntas, faturam R$ 5 milhões por ano.
Alex Lucena, sócio e diretor de inovação, afirma que todo empreendedor enfrenta desafios burocráticos e financeiros, mas que nesse setor há um obstáculo adicional. "Você que é investidor vai querer colocar dinheiro em um negócio que está pautado em uma determinação de um juiz?"
Ex-secretário da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e diretor do Justa, centro de pesquisa que atua no campo da economia política e da justiça, o advogado Cristiano Maronna atribui a falta de normas a uma omissão do Legislativo, que, segundo ele, deveria agir para regular o setor, a começar pelo medicinal.
"A Anvisa foi editando portarias à medida que a demanda por remédios à base de maconha aumentou. Não existe um padrão, cada empreendedor age de uma forma, e a própria fiscalização do poder público é incipiente."
Embora os usos medicinal e recreativo sejam os mais comuns, setores como a indústria têxtil, construção civil, alimentos e bebidas e até o agronegócio podem aproveitar as diversas partes da planta, afirma Larissa Uchida, CEO da ExpoCannabis Brasil.
A primeira edição do evento de negócios canábicos recebeu 21 mil pessoas e reuniu 145 expositores em São Paulo de 14 a 16 de setembro. Segundo a assessoria da feira, os acordos fechados totalizaram R$ 20 milhões, entre cartas de intenção de investimentos, parcerias e contratos.
Como exemplos de diversificação de produtos, Uchida cita o uso do cânhamo —planta da espécie Cannabis sativa que não tem efeitos psicotrópicos— para a fabricação de tijolos e isolantes ou para a produção de ração animal a partir de seus grãos e óleos.
"Precisamos tirar da cabeça a ideia de que a maconha é só para tratar doenças ou só para relaxar", diz Poliana Rodrigues, dona da FloYou, uma das marcas presentes na feira. Ela vende calcinhas absorventes de cânhamo e algodão.
Feita 100% de Cannabis, a camada absorvente da peça é bactericida e antimofo. O processo químico a que outras empresas precisam submeter seus produtos é dispensável no caso do cânhamo, que possui essas propriedades naturalmente, diz ela.
A FloYou promete uma durabilidade de 36 ciclos, enquanto concorrentes em geral garantem 24. Cada unidade é vendida a R$ 119,90.
As principais dificuldades que ela enfrenta estão relacionadas à necessidade de importar as peças, que vêm prontas da China. "É uma logística que encarece e aumenta o tempo do projeto. Eu pago em impostos praticamente o mesmo valor da produção de uma calcinha", afirma.
O cultivo de cânhamo é proibido no Brasil, assim como a importação de sementes e plantas. Comprar as fibras do exterior, por sua vez, não é proibido, mas também não é permitido. "Os tecidos derivados do cânhamo estão em um limbo jurídico", diz Maronna.
Em 2024, a empresária pretende fabricar as peças no país a partir dos fios importados. "O tecido infelizmente vai ter que vir do exterior de qualquer maneira. Mas a montagem em solo brasileiro vai me permitir mais tempo, quantidade e margem."
À frente da marca de camisetas 2ag, lançada na ExpoCannabis, Plinio Miguel concorda que o cânhamo não é competitivo pela questão do preço. Suas peças são compostas 55% pelo material e 45% por algodão, a melhor porcentagem a que chegou para ter um produto confortável e ao mesmo tempo conscientizar o público sobre os usos da maconha.
Ele, que é médico prescritor de Cannabis, compra o quilo do tecido já misturado por cerca de R$ 175 —o quilo do algodão pesquisado pela 2ag custa de R$ 50 a R$ 60. As camisetas são vendidas a R$ 199.
"Muitas marcas estão começando a construir sua identidade agora para colher frutos na frente. Por enquanto, são mais espinhos do que frutos", diz Thiago Cardoso, cofundador da consultoria Kaya Mind, que produz dados sobre o mercado canábico brasileiro. A companhia estima movimentação de R$ 917,2 milhões no país até 2024, segundo relatório do início deste ano.
Para chegar ao número, a empresa estuda casos de outros países que avançaram na regulamentação e cruza dados de empresas privadas e órgãos como o IBGE e a Anvisa.
Apesar de não negar o potencial milionário, Reale, do IFRS, diz ser difícil avaliar números sem saber exatamente como foram calculados.
Outra entidade que faz projeções é a britânica Prohibition Partners. De acordo com a segunda edição do relatório sobre a Cannabis na América Latina e no Caribe, de novembro de 2020, o setor pode crescer até US$ 824 milhões (R$ 4 bilhões) até o próximo ano.
O pesquisador chama atenção para as portas que a maconha pode abrir. "Precisamos pensar em um modelo que vire uma oportunidade para quem vem sofrendo com a guerra às drogas."
Rodrigues, da FloYou, uma mulher negra, vê possibilidade de reparação histórica e defende que pessoas pretas e periféricas sejam incorporadas a esse mercado como futuros profissionais. "Foi por isso que entrei nessa jornada de empreender com Cannabis."
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