Empresários exploram potencial da Cannabis para além do uso medicinal

Em meio a lacunas normativas, empresas vendem produtos de cânhamo e serviços que miram a importação de remédios

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São Paulo

Desde que os primeiros pedidos para importar produtos medicinais derivados da Cannabis foram aceitos pela Anvisa, em 2015, o órgão emitiu mais de 235 mil autorizações —80,6 mil no primeiro semestre deste ano.

O uso medicinal da maconha tem ganhado força diante de doenças como epilepsia e esclerose, mas, como o cultivo da planta é proibido no Brasil, é preciso recorrer à importação —que pode ser feita individualmente ou intermediada por empresas— ou a associações de pacientes que obtiveram habeas corpus coletivo para o plantio.

"Essas associações estão encabeçando o desenvolvimento do mercado", diz Getúlio Reale, pesquisador do grupo Cannabis, Mercados e Sociedade, do IFRS (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul). "Elas não têm fins lucrativos, mas desenvolvem uma gestão de negócio que pode ser aproveitada no futuro."

Mulher de 33 anos está sentada no chão, com pernas parcialmente esticadas, e segura calcinha absorvente preta e rosa
Poliana Rodrigues, 33, fundadora da FloYou, que produz calcinhas absorventes de cânhamo, durante a ExpoCannabis Brasil, em São Paulo - Keiny Andrade - 15.set.23/Folhapress

Com a concessão de habeas corpus, têm surgido growshops, lojas dedicadas ao cultivo que vendem produtos como fertilizantes e lâmpadas.

Clínicas especializadas na prescrição e escritórios de advocacia que auxiliam no processo também têm movimentado o setor a partir da possibilidade de importação. Por outro lado, a falta de regulamentação ainda traz riscos jurídicos e financeiros.

Fundada em 2016, a The Green Hub é uma aceleradora de negócios canábicos com 19 empresas em seu portfólio, incorporadas em quatro rodadas de investimentos. Juntas, faturam R$ 5 milhões por ano.

Alex Lucena, sócio e diretor de inovação, afirma que todo empreendedor enfrenta desafios burocráticos e financeiros, mas que nesse setor há um obstáculo adicional. "Você que é investidor vai querer colocar dinheiro em um negócio que está pautado em uma determinação de um juiz?"

Ex-secretário da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e diretor do Justa, centro de pesquisa que atua no campo da economia política e da justiça, o advogado Cristiano Maronna atribui a falta de normas a uma omissão do Legislativo, que, segundo ele, deveria agir para regular o setor, a começar pelo medicinal.

"A Anvisa foi editando portarias à medida que a demanda por remédios à base de maconha aumentou. Não existe um padrão, cada empreendedor age de uma forma, e a própria fiscalização do poder público é incipiente."

Embora os usos medicinal e recreativo sejam os mais comuns, setores como a indústria têxtil, construção civil, alimentos e bebidas e até o agronegócio podem aproveitar as diversas partes da planta, afirma Larissa Uchida, CEO da ExpoCannabis Brasil.

A primeira edição do evento de negócios canábicos recebeu 21 mil pessoas e reuniu 145 expositores em São Paulo de 14 a 16 de setembro. Segundo a assessoria da feira, os acordos fechados totalizaram R$ 20 milhões, entre cartas de intenção de investimentos, parcerias e contratos.

Como exemplos de diversificação de produtos, Uchida cita o uso do cânhamo —planta da espécie Cannabis sativa que não tem efeitos psicotrópicos— para a fabricação de tijolos e isolantes ou para a produção de ração animal a partir de seus grãos e óleos.

"Precisamos tirar da cabeça a ideia de que a maconha é só para tratar doenças ou só para relaxar", diz Poliana Rodrigues, dona da FloYou, uma das marcas presentes na feira. Ela vende calcinhas absorventes de cânhamo e algodão.

Feita 100% de Cannabis, a camada absorvente da peça é bactericida e antimofo. O processo químico a que outras empresas precisam submeter seus produtos é dispensável no caso do cânhamo, que possui essas propriedades naturalmente, diz ela.

A FloYou promete uma durabilidade de 36 ciclos, enquanto concorrentes em geral garantem 24. Cada unidade é vendida a R$ 119,90.

As principais dificuldades que ela enfrenta estão relacionadas à necessidade de importar as peças, que vêm prontas da China. "É uma logística que encarece e aumenta o tempo do projeto. Eu pago em impostos praticamente o mesmo valor da produção de uma calcinha", afirma.

O cultivo de cânhamo é proibido no Brasil, assim como a importação de sementes e plantas. Comprar as fibras do exterior, por sua vez, não é proibido, mas também não é permitido. "Os tecidos derivados do cânhamo estão em um limbo jurídico", diz Maronna.

Em 2024, a empresária pretende fabricar as peças no país a partir dos fios importados. "O tecido infelizmente vai ter que vir do exterior de qualquer maneira. Mas a montagem em solo brasileiro vai me permitir mais tempo, quantidade e margem."

À frente da marca de camisetas 2ag, lançada na ExpoCannabis, Plinio Miguel concorda que o cânhamo não é competitivo pela questão do preço. Suas peças são compostas 55% pelo material e 45% por algodão, a melhor porcentagem a que chegou para ter um produto confortável e ao mesmo tempo conscientizar o público sobre os usos da maconha.

Ele, que é médico prescritor de Cannabis, compra o quilo do tecido já misturado por cerca de R$ 175 —o quilo do algodão pesquisado pela 2ag custa de R$ 50 a R$ 60. As camisetas são vendidas a R$ 199.

"Muitas marcas estão começando a construir sua identidade agora para colher frutos na frente. Por enquanto, são mais espinhos do que frutos", diz Thiago Cardoso, cofundador da consultoria Kaya Mind, que produz dados sobre o mercado canábico brasileiro. A companhia estima movimentação de R$ 917,2 milhões no país até 2024, segundo relatório do início deste ano.

Para chegar ao número, a empresa estuda casos de outros países que avançaram na regulamentação e cruza dados de empresas privadas e órgãos como o IBGE e a Anvisa.

Apesar de não negar o potencial milionário, Reale, do IFRS, diz ser difícil avaliar números sem saber exatamente como foram calculados.

Outra entidade que faz projeções é a britânica Prohibition Partners. De acordo com a segunda edição do relatório sobre a Cannabis na América Latina e no Caribe, de novembro de 2020, o setor pode crescer até US$ 824 milhões (R$ 4 bilhões) até o próximo ano.

Mulheres apontam para máquina de produtos com pôster da marca FloYou, de calcinhas absorventes feitas de cânhamo, durante a ExpoCannabis Brasil
Em parceria com a Greenie, marca de acessórios voltados ao universo canábico, FloYou expõe calcinhas absorventes na ExpoCannabis Brasil - Keiny Andrade - 15.set.23/Folhapress

O pesquisador chama atenção para as portas que a maconha pode abrir. "Precisamos pensar em um modelo que vire uma oportunidade para quem vem sofrendo com a guerra às drogas."

Rodrigues, da FloYou, uma mulher negra, vê possibilidade de reparação histórica e defende que pessoas pretas e periféricas sejam incorporadas a esse mercado como futuros profissionais. "Foi por isso que entrei nessa jornada de empreender com Cannabis."

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