Descrição de chapéu The New York Times

Serguei Skripal era peixe pequeno com um grande inimigo: Vladimir Putin

Ex-espiões foram forjado para combater o Ocidente; após o colapso da URSS, um caiu e outro ascendeu

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Ellen Barry Michael Schwirtz
Moscou | The New York Times

Serguei Skripal era peixe pequeno.

É como as autoridades britânicas descrevem hoje o oficial da inteligência russa que elas recrutaram como espião em meados dos anos 1990. Quando os russos pegaram Skripal, eles também o viram assim, e lhe deram uma sentença reduzida. O mesmo passou com os americanos: o chefe da inteligência que organizou sua libertação para o Ocidente em 2010 nunca tinha ouvido falar nele quando foi incluído em uma troca de espiões com Moscou.

Mas Skripal era importante aos olhos de um homem --Vladimir Putin, um oficial da inteligência que tinha a mesma idade que ele e o mesmo treinamento.

Os dois tinham dedicado suas vidas a uma guerra de inteligência entre a União Soviética e o Ocidente. Quando essa guerra foi suspensa, ambos lutaram para se adaptar.

Um ascendeu e o outro caiu. Enquanto Skripal tentava se reinventar, Putin e seus aliados, ex-oficiais da inteligência, juntavam os farrapos do antigo sistema soviético. Ao ganhar poder, Putin começou a acertar contas, reservando um ódio especial para os que haviam traído a tribo de inteligência quando se encontrava mais vulnerável.

Seis meses atrás, Skripal foi encontrado junto com sua filha, Iulia, caídos sobre um banco de rua numa cidade inglesa, tendo alucinações e espumando pela boca. Seu envenenamento levou a um confronto no estilo da Guerra Fria entre a Rússia e o Ocidente, com os dois lados expulsando diplomatas e discutindo quem tentou matá-lo e por quê.

Na última quarta-feira (5), autoridades britânicas ofereceram detalhes, acusando a Rússia de enviar dois homens para besuntar a maçaneta da porta da casa de Skripal com um agente neurotóxico, acusação vigorosamente negada por Moscou. Chefes da inteligência britânica afirmam ter identificado os homens como membros da mesma unidade da inteligência russa, o Diretório Principal de Inteligência (GRU na sigla em russo), onde Skripal havia trabalhado.

Não está claro se Putin teve um papel no envenenamento de Skripal, que sobreviveu e está escondido. Mas dezenas de entrevistas realizadas no Reino Unido, na Rússia, Espanha, Estônia, EUA e República Tcheca, assim como uma revisão de documentos jurídicos russos, mostram que suas vidas se cruzaram em alguns momentos.

"Enriqueçam"

No final dos anos 1990, Serguei Skripal voltou de Madri, onde foi posicionado sob disfarce no escritório do adido militar russo. A Rússia estava no caos. Mineiros de carvão, médicos e soldados não recebiam salário havia meses. Trabalhadores tomaram o controle de uma usina nuclear em São Petersburgo, ameaçando desligá-la se não recebessem o pagamento atrasado.

Skripal estava à vontade, porém, feliz na companhia de outros homens. Oleg Ivanov, que trabalhava com ele no gabinete do governador regional de Moscou, se lembra dele como um homem que se esforçava para acompanhar as mudanças no país. Ele morava em um conjunto habitacional pobre em um campo com prédios idênticos e dirigia um Niva escangalhado.

Uma coisa não combinava: nos restaurantes, ele insistia em pagar para todos. "Era algo que o diferenciava", disse Ivanov. "Não sei de onde vinha isso." Em sua turma havia muitos outros ex-espiões soviéticos, que tinham dedicado a juventude a se qualificar como oficiais de inteligência. Agora tudo parecia inútil.

"Você tem de entender, a União Soviética desmoronou", dizia Ivanov. "Toda a ideologia soviética que sustentava nosso governo também desapareceu na história. Havia um slogan na época: Enriqueçam."

Essa foi a história de Skripal, disse ele: sempre procurando oportunidades colaterais. "Ele simplesmente adorava dinheiro."

E isso, disse ele, explicou a traição de seu amigo. Em 2006, Ivanov ouviu o nome de Skripal no noticiário.

Promotores disseram que, quando estava postado na Espanha, Skripal tinha entrado como sócio de uma empresa com um agente da inteligência espanhola, que o "empurrou" para um recrutador da inteligência britânica. Skripal vinha encontrando seu intermediário secretamente desde 1996, disseram eles, passando segredos em troca de US$ 100 mil (hoje R$ 410 mil).

Os promotores pediram uma pena de 15 anos, cinco a menos que a máxima, e o juiz a reduziu para 13 anos porque Skripal cooperou.

Vladimir Putin, outro oficial de inteligência em meio de carreira, passava pela mesma perda de status. Em 1990 ele foi mandado de volta mais cedo de seu cargo na sede da KGB em Dresden (Alemanha). Seu salário não era pago havia três meses e ele não tinha onde morar.

A queda pareceu pessoal para Putin, que não conseguiu proteger da exposição todos os seus contatos alemães. Um dia, Putin apelou para o comando militar soviético para defender a sede da KGB, que estava cercada por manifestantes alemães ávidos para se apoderar dos arquivos.

"Moscou está em silêncio", disse-lhe um oficial.

Dezenas de agentes da inteligência passaram para o Ocidente naquela época, como desertores ou informantes, e Putin não consegue falar deles sem repugnância. São "animais" ou "porcos".

traição, disse ele a um entrevistador, é um pecado que não consegue perdoar. E também pode ser ruim para a saúde, disse ele sombriamente. "Os traidores sempre acabam mal", afirmou certa vez.

Quando chegou ao poder, Putin foi atrás dos traidores do mesmo modo que lidou com outros males dos caóticos anos 1990, os oligarcas e os chefes do crime. Seus primeiros anos no cargo foram marcados por uma avalanche de condenações de espiões, algumas claramente por vingança.

Ao ligar para o número de seu homólogo russo, de seu escritório em Langley, na Virgínia, Leon Panetta, diretor da CIA (sigla em inglês da Agência Central de Inteligência), não estava otimista.

Panetta havia conhecido Mikhail Fradkov, chefe do Serviço de Inteligência Estrangeira russo. Eles tinham jantado juntos em Washington, e no final da refeição Panetta havia perguntado a seu companheiro qual ele considerava o maior fracasso da inteligência russa. O dos EUA, afirmou Panetta, era a tese para a invasão do Iraque.

Fradkov fez uma longa pausa, então respondeu simplesmente: "Penkovsky".

Panetta ficou surpreso. A resposta falava muito sobre como o sistema russo via os informantes. Oleg Penkovsky era um coronel da GRU que tinha espionado para a CIA e a inteligência britânica durante os anos 1950 e 60. Ele foi apreendido por autoridades soviéticas e, acredita-se, morto.

Agora era o verão de 2010 e Panetta estava ao telefone com Fradkov, esperando pôr em prática um acordo que libertaria mais um informante da GRU. Dias antes, o FBI tinha prendido dez agentes russos que operavam nos EUA havia quase uma década.

"Esse pessoal é seu", disse Panetta a Fradkov.

"Eu disse: 'Olhe, nós vamos processá-los; poderá ser muito embaraçoso para você'", Panetta teria dito, segundo lembrou numa entrevista. "Vocês têm três ou quatro pessoas que nós queremos, e proponho fazermos uma troca."

Em um dia quente de julho, guardas da Colônia Correcional nº 5 na República Russa da Mordóvia foram à cela de Skripal e lhe disseram para pegar suas coisas. Ele foi levado à prisão Lefortovo em Moscou, onde se reuniu brevemente com sua família antes de ser embarcado em um pequeno avião. Com ele havia outros três ex-prisioneiros.

"Esconder-se pela vida toda"

Um homem, porém, estava fumegando.

"Uma pessoa dá sua vida inteira a sua pátria e então chega um filho da p*** e trai essas pessoas", disse Putin, praticamente rosnando, quando solicitado a comentar sobre a troca na televisão ao vivo. "Como ele poderá olhar nos olhos de seus filhos, o porco? Seja o que for que conseguiram em troca, as 30 moedas de prata que receberam, vão engasgar com elas. Acredite-me."

Mesmo que não tenham morrido, acrescentou ele, elas vão sofrer. "Eles terão de se esconder pela vida toda", disse Putin. "Sem poder falar com outras pessoas, com seus seres queridos." Então ele enrijeceu as costas, ergueu os ombros e falou diretamente à câmera.

"Vocês sabem", concluiu, "uma pessoa que escolhe esse destino vai se arrepender mil vezes."

Era difícil não encontrar Skripal em Salisbury. Matthew Dean, chefe do conselho de vereadores da cidade, lembra que o viu um dia num estabelecimento modesto com máquinas eletrônicas de pôquer e fotos emolduradas de cavalos de corrida. Dean é dono de um bar e conhece as categorias de bebedores de Salisbury. Este não se encaixava.

"Era uma tarde de domingo, e ele bebia vodca pura", lembrou Dean. "Era extremamente falante e usava um conjunto de corrida branco. Lembro que eu disse: 'Meu Deus, quem é essa pessoa?'".

Skripal contornou a pergunta sobre seu passado, pelo menos no início.

"Ele sentia falta da Rússia", disse Ross Cassidy, um musculoso ex-marinheiro de submarino que se tornou um de seus amigos mais próximos.

Lisa Carey, outra vizinha, observava o russo em suas voltas diárias, quando ia até a loja de pechinchas de conjunto de corrida para comprar "raspadinhas".

"Ele costumava se gabar de que era um espião, e todos ríamos disso", explicou ela. "Pensávamos que ele fosse doente mental."

Mas ele tinha segredos, sim. Skripal viajava regularmente em tarefas secretas organizadas pelo MI6, oferecendo informes sobre a GRU aos serviços de inteligência da Europa e dos EUA. Tais missões podem ser vistas como um meio de manter um ex-espião ocupado, disse Nigel West, um historiador da inteligência britânica. Não é incomum, disse ele, que desertores se sintam entediados e pouco valorizados, algo que ele chama de "síndrome de pós-utilidade".

Iulia Skripal tinha algo importante a fazer na Inglaterra.

Ela havia vendido o antigo apartamento do pai, juntamente com os móveis velhos e a águia de duas cabeças, símbolo da Rússia, que ele tinha pendurado na parede. Ela comprou para si mesma um lugar menor no oeste de Moscou. Mas recentemente tinha saído de lá para iniciar uma reforma.

A principal mudança era um pequeno quarto que Iulia queria redecorar para abrigar um bebê, segundo Diana Petik, que Iulia contratou para organizar as reformas. Segundo ela, Iulia pretendia se casar com seu antigo namorado e ter um filho.

Mas havia uma coisa que ela achava que tinha de fazer primeiro. Serguei Skripal não poderia viajar em segurança à Rússia para o casamento, então ela queria pelo menos ter sua bênção. Essa era sua intenção, segundo Petik, quando embarcou num voo da Aeroflot para Londres, em 3 de março.

Na véspera, segundo autoridades britânicas, dois oficiais da inteligência russa chegaram a Londres em outro voo da Aeroflot.

Em uma de suas malas havia um frasco especial, disfarçado de perfume, carregado com um agente neurotóxico de grau militar.

Quando Iulia Skripal passou pela alfândega no Aeroporto de Heathrow e esperou por sua bagagem, os dois, segundo investigadores britânicos, estavam em Salisbury, realizando vigilância antes do ataque.

Na tarde seguinte, pouco depois das 16h, uma mulher chamada Freya Church estava saindo do trabalho quando encontrou duas figuras caídas sobre um banco de rua no centro de Salisbury. A mulher estava apoiada no homem. Ele olhava para o céu, fazendo estranhos movimentos com as mãos, contou ela à BBC.

Nesse momento os dois homens embarcavam num trem na estação de Salisbury, a primeira etapa de sua viagem de volta a Moscou.

A notícia do crime começaria a se propagar através de serviços de inteligência de uma dúzia de países, pelo Conselho de Segurança da ONU e pelo órgão global encarregado de proibir o uso de armas químicas. Para as agências que supervisionam o exército de espiões que ficaram para trás depois da Guerra Fria, isso colocaria em questão todas as regras de envolvimento acertadas.

Mas por enquanto era um trabalho encerrado. Um oficial da GRU de meia idade enfrentando um futuro incerto tinha traído sua tribo. Segundo as regras bem conhecidas por todos nos serviços de inteligência russos, dois assassinos foram à Inglaterra e cuidaram do peixe pequeno.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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