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Venezuela

O ditador da Venezuela faz jus a seu título

O jornalista Jorge Ramos foi detido e deportado após Maduro se irritar durante entrevista

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Homem de terno segura tablet que mostra imagem de jovem comendo pedaço de comida
Jorge Ramos mostra vídeo de jovens comendo restos de comida de um caminhão de lixo; ele reproduziu a gravação ao ditador Nicolás Maduro, que então interrompeu a entrevista - Carlos Garcia Rawlins/Reuters
Jorge Ramos

Fui expulso da Venezuela em 26 de fevereiro depois de uma entrevista contenciosa com Nicolás Maduro, o homem forte do país.

Ele se levantou no meio de nossa conversa e seus agentes de segurança confiscaram nossas câmeras de TV, os cartões de memória e os nossos celulares.

Sim, Maduro roubou a entrevista para que ninguém pudesse assisti-la.

Conseguimos a entrevista à moda antiga: fizemos um telefonema e a solicitamos. Um produtor da Univision —rede de TV para a qual trabalho desde 1984— contatou o ministro das comunicações venezuelano, Jorge Rodríguez, e perguntou se Maduro estaria interessado em uma entrevista.

O líder disse "venha a Caracas". E foi o que fizemos, com documentos oficiais de autorização em mãos.

A entrevista começou na noite de 25 de fevereiro, com três horas de atraso, no Palácio de Miraflores.

Maduro havia falando minutos antes com Tom Llamas, da rede de TV americana ABC News, e parecia estar de bom humor.

A assistência humanitária que a oposição política —com a ajuda de uma coalizão internacional— havia tentado levar ao país pelas fronteiras da Colômbia e do Brasil havia sido em geral bloqueada, e Maduro se sentia empolgado.

Era um dia supostamente bom para o presidente. Nem tanto, aparentemente.

A primeira pergunta que fiz a Maduro foi se deveria chamá-lo de "presidente" ou "ditador", como fazem muitos venezuelanos.

Eu o confrontei quanto a violações de direitos humanos e casos de tortura denunciados pela organização Human Rights Watch, e o questionei sobre a existência de prisioneiros políticos.

Questionei sua afirmação de que havia vencido as eleições presidenciais de 2013 e 2018 sem fraudes e, mais importante, suas garantias de que a Venezuela não estava enfrentando uma crise humanitária. Em seguida, abri meu iPad.

Um dia antes, eu havia gravado em meu celular três jovens que estavam procurando comida na caçamba de um caminhão de lixo, em um bairro pobre a poucos minutos de distância do palácio presidencial.

Mostrei as imagens a Maduro. Cada uma delas contradizia sua narrativa de uma Venezuela próspera e progressista, 20 anos depois da revolução.

Foi então que ele perdeu a compostura.

Passados 17 minutos do início da entrevista, Maduro se levantou, tentou comicamente bloquear as imagens em meu iPad e declarou que a conversa estava encerrada.

"É isso que ditadores fazem", eu disse.

Poucos segundos depois que Maduro deixou o local, Rodríguez, o ministro das comunicações, me disse que seu governo não havia autorizado a entrevista e ordenou que seus agentes de segurança confiscassem as quatro câmeras e outros equipamentos de minha equipe, e os cartões de memória em que havíamos gravado a conversa.

Alguém gritou ordenando que eu fosse tirado imediatamente do palácio presidencial, mas em lugar disso dois seguranças me conduziram a uma sala onde ordenaram que eu lhes desse meu celular e revelasse a senha.

Estavam preocupados com a possibilidade de que eu tivesse gravado um áudio da entrevista e não queriam vazamentos. Recusei.

Pouco depois, minha colega María Martínez, uma das melhores produtoras de televisão dos Estados Unidos, foi jogada para dentro da mesma sala.

Para frustração dos seguranças, ela conseguiu fazer um rápido telefonema ao presidente da Univision News, que alertou o Departamento de Estado dos Estados Unidos e muitas organizações noticiosas sobre o que estava acontecendo.

O resto de nossa equipe —cinco empregados da Univision—, descobri mais tarde  foi levado à sala de imprensa e de lá a um ônibus do governo.

Em nossa salinha, alguém de repente desligou todas as luzes e um grupo de agentes entrou e apanhou meu celular e mochila, à força. Eles revistaram meus objetos pessoais furiosamente. Também revistaram minha pessoa, da cabeça aos pés.

María passou pela mesma experiência humilhante, diante de uma agente de segurança.

Perguntei se estávamos sendo presos. Eles responderam que não —mas ainda assim não nos deixaram sair da sala.

Por fim, disseram a María e a mim que nos uníssemos aos nossos colegas no ônibus. Disseram que seríamos levados ao nosso hotel. Recusamo-nos de novo.

Jorge Ramos desembarca em Miami após ser expulso da Venezuela
Jorge Ramos desembarca em Miami após ser expulso da Venezuela - Maria Alejandra Cardona/Reuters

Àquela altura estávamos muito preocupados com a nossa segurança e com a possibilidade de nos levarem a um centro de detenção ou a algum lugar ainda mais sombrio.

Fomos conduzidos para a rua, onde Rodríguez nos procurou para reclamar da entrevista e de nossa conduta. Eu lhe disse que nosso trabalho era fazer perguntas, e que eles haviam roubado nossa entrevista e nosso equipamento.

Àquela altura, percebemos mais tarde, as primeiras reportagens sobre nossa detenção já estavam circulando. Eles não tinham mais como manter segredo. Eram 21h30, mais de duas horas depois do final da entrevista.

Nosso motorista, que estava esperando esse tempo todo em uma das ruas próximas, subitamente apareceu. Àquela altura, as mesmas pessoas que tinham nos detido queriam que fôssemos embora. Rápido. Foi o que fizemos.

Entramos no carro e voltamos ao hotel. Membros do serviço de inteligência do governo isolaram o prédio para impedir nossa partida.

Poucas horas depois, um funcionário da imigração veio nos informar de que seríamos expulsos do país pela manhã.

Por volta da 1h, um homem que se descreveu como "capitão" —um dos que me detiveram no palácio— veio ao meu quarto e devolveu meu celular, dentro de um saco plástico. Todo o conteúdo havia sido apagado.

Presumo que eles tenham invadido o aparelho e obtido todas as informações que puderam.

Sofremos apenas uma fração da pressão e do abuso que os jornalistas venezuelanos vêm sofrendo ao longo dos anos.

Havia dois venezuelanos em nossa equipe —o correspondente Francisco Urreiztieta e o câmera Edgar Trujillo— e eles correriam riscos terríveis se ficassem em seu país.

Por sorte, todos viajamos em segurança a Miami. Mas nossas câmeras e o registro da entrevista ficaram para trás.

Do que Maduro tem medo? Ele deveria veicular a entrevista e permitir que o mundo veja. Se não o fizer, terá provado que está se comportando exatamente como um ditador.

Jorge Ramos é âncora da emissora Univision, um dos principais canais hispânicos dos Estados Unidos; tradução de Paulo Migliacci

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