Descrição de chapéu The Washington Post

Crianças iranianas estão dançando música pop, e o governo está furioso

Popularidade do cantor Sasy Mankan faz ultraconservadores do Irã suspeitarem de ataque cultural dos EUA

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Rick Noack
The Washington Post

Enquanto os Estados Unidos e o Irã trocavam ameaças nas últimas semanas e se aproximavam lentamente do limiar de um confronto militar, o governo linha-dura do Irã identificou um novo "complô político" de um "inimigo" que está "tentando maneiras diferentes de criar nervosismo entre a população", advertiu o ministro da Educação, Mohammad Bathaei.

Mas ele não estava falando do grupo de ataque do porta-aviões Abraham Lincoln ou da força-tarefa de bombardeiros que foram enviados à região no início de maio.

Não, Bathaei referia-se a vídeos de crianças iranianas, aparentemente gravados em escolas diferentes, dançando com música do cantor pop iraniano Sasy Mankan.

O "concurso de dança" de Mankan para fãs —baseado em sua canção "Gentleman"— ​parece ter levantado suspeitas entre os ultraconservadores iranianos de um ataque cultural ligado aos Estados Unidos. Canais da mídia estatal do país relataram que uma investigação foi aberta no início deste mês.

A música pop é estritamente censurada no Irã, mas Mankan mora nos Estados Unidos e alcança seus fãs iranianos através do Instagram e de outras redes sociais, contornando a censura oficial.

A localização de Mankan pode ter sido suficiente para o Irã proibir sua música, mas nesse caso o concurso de dança também coincidiu com o aumento das tensões desde que o presidente Trump se retirou do acordo nuclear com o Irã, no ano passado. A reimposição de sanções dos Estados Unidos pressionou a economia iraniana e causou aumento de preços.

A repressão às artes sob pretextos políticos é um tema comum no Irã.

Pouco depois da revolução islâmica, em 1979, o aiatolá Ruhollah Khomeini comparou toda a música transmitida na TV ou no rádio a ópio e decidiu proibi-la, afirmando que deixa o cérebro humano "inativo e frívolo".

Mas o Corão, o livro sagrado do islamismo, não proíbe explicitamente a música, o canto ou a dança.

A linha-dura religiosa no Irã e em outros países costuma contar com suas próprias interpretações dos textos religiosos para justificar restrições, que segundo os críticos são apenas um pretexto para reprimir a dissidência ideológica e política.

As proibições não detiveram os artistas iranianos, porém, que passaram à clandestinidade.

O líder Ayatollah Khomeini, que comparou toda a música transmitida na TV ou no rádio do Irã a ópio e decidiu proibi-la, afirmando que deixa o cérebro humano "inativo e frívolo" - Official Khamenei website/Reuters

Quando Hassan Rouhani se tornou presidente, em 2013, os artistas estavam entre os que esperavam mais liberdade em um país onde a poderosa polícia religiosa há muito reprime a dissidência política e outros desvios das regras. Essas esperanças logo se dissiparam.

A proibição de que mulheres cantem sozinhas na frente de homens não parentes, por exemplo, continua em vigor. Algumas das regras usadas para processar artistas ou bailarinos parecem deliberadamente mal definidas, o que os defensores dos direitos humanos temem que seja uma maneira de visar certas partes da população em particular. Enquanto as autoridades podem tolerar certa danças ou canções, entram em ação quando consideram que as danças são "atos imorais".

"Essas leis muitas vezes visam desproporcionalmente as mulheres e as minorias sexuais", explicou a organização Human Rights Watch, sediada em Nova York, depois que várias mulheres foram presas no Irã por dançar, no ano passado.

As danças também provocaram reações em outras partes do Oriente Médio, incluindo a Tunísia, onde vídeos do Harlem Shake geraram condenações oficiais em 2013. Enquanto os vídeos tunisianos causaram tensão pública, a linha-dura do Irã tem o apoio de um poderoso aparelho estatal. Em 2014, três mulheres iranianas sem véus e três homens foram condenados a prisão com sursis e açoitamento por dançarem a canção "Happy" do cantor americano Pharrell Williams.

"As autoridades iranianas calaram os artistas basicamente por meio de uma combinação de detenções e prisões sob o disfarce de religião e reputação do Estado", afirmou o relatório Estado da Liberdade Artística, de 2017.

Um dos cantores mencionados no relatório foi o músico iraniano Mehdi Rajabian, 29. Ele passou cerca de dois anos em uma das mais famosas prisões do Irã, junto com seu irmão, Hossein, cineasta. Ambos foram considerados culpados de infringir as leis de censura do Irã, que exigem que os artistas obtenham licenças musicais.

A dupla não tinha licença, mas seu selo, Barg Music, rapidamente surgiu como um peso-pesado na florescente cena musical do país.

Isso os transformou em ameaça para as autoridades, que mais tarde os acusaram de "propaganda contra o Estado" e outras violações. Na prisão, Rajabian fez greve de fome.

Hoje em liberdade depois que sua sentença foi suspensa, Rajabian ainda se recusa a ser silenciado. Em seu último projeto, que se chama Middle Eastern e foi lançado pela Sony neste ano, ele reuniu dezenas de músicos de todo o Oriente Médio para enviar uma mensagem de "paz". A artista curda Zehra Dogan, que já esteve presa, contribuiu com pinturas.

Contatado através de um aplicativo de mensagens na quarta-feira (22), Rajabian, que não pode sair do país, disse que as autoridades podem mandá-lo de volta à prisão a qualquer momento. Mas ele acrescentou que está determinado a continuar lutando pela liberdade de expressão, apesar dos riscos.

As redes sociais, disse ele, expuseram os iranianos a conteúdo que de outro modo não teriam conhecido, inclusive os recentes vídeos de crianças dançando, que ele assistiu. A repressão não é surpresa, disse.

As autoridades iranianas, segundo Rajabian, são "contra a felicidade".

Mas na era do Instagram e das redes sociais aplicar políticas que datam dos anos 1980 é cada vez mais difícil para a linha-dura religiosa do Irã.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves   

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