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The Washington Post

O problema na Caxemira não é o território, é a dominação hindu

Premiê indiano insiste que revogar autonomia de região de maioria muçulmana é para bem dos caxemirianos

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​Kapil Komireddi
Washington Post

Há duas semanas, a Caxemira, único Estado de maioria muçulmana na Índia, existe em uma situação surreal de inexistência.

Desde que um decreto presidencial aboliu o Estado, revogou sua autonomia e o dividiu em dois territórios administrados pelo governo federal, a internet foi fechada, redes de celular foram desativadas e até mesmo telefones fixos foram cortados.

Reuniões públicas estão proibidas, e os cidadãos estão sob toque de recolher. Um soldado foi colocado diante de cada casa em algumas aldeias.

Oito milhões de pessoas foram isoladas do mundo —e umas das outras. As farmácias estão ficando sem remédios, as famílias têm pouca comida e os hospitais estão lotados de manifestantes feridos. 

Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia, insiste que tudo isso é para o bem dos cidadãos da Caxemira. O domínio indiano na Caxemira raramente foi mais forte. Seu controle dos caxemirianos, entretanto, nunca foi mais frágil.

A súbita tomada da região por Modi é o cumprimento de um antigo anseio ideológico de fazer uma população predominantemente muçulmana se render à sua visão de uma nação hindu homogênea.

É também uma forma de transmitir ao resto da Índia —uma união de Estados vertiginosamente diversos— que ninguém está livre do paraíso de poder hindu que ele deseja construir no subcontinente.

A Caxemira é tanto um aviso quanto um modelo: qualquer Estado que se desvie dessa visão pode ser colocado sob o polegar de Déli em nome da "unidade".

Aqueles que acreditam que tal dia nunca chegará —que as instituições democráticas e as proteções minoritárias da Índia se afirmarão— também nunca pensaram que alguém como Modi um dia lideraria o país.

Modi já pareceu destinado a desaparecer na história como uma curiosidade fanática. Como recém-nomeado ministro-chefe de Gujarat, ele presidiu o pior derramamento de sangue comunitário na história recente da Índia, em 2002, quando mil muçulmanos, segundo uma estimativa conservadora, foram massacrados por hindus armados de espadas em seu Estado durante várias semanas.

Alguns acusaram Modi de encorajar as multidões; outros disseram que ele fez vista grossa. A carnificina fez de Modi um pária: os indianos liberais o compararam a Hitler, os Estados Unidos lhe negaram um visto e a Grã-Bretanha e a União Europeia o boicotaram.

Mas Modi expandiu e solidificou seu apelo entre os indianos hindus, maioria religiosa cujo ressentimento por terem sido invadidos e governados por séculos pelos muçulmanos foi encoberto durante décadas com clichês das elites seculares da Índia.

Ele usou três ferramentas poderosas para promover sua ascensão. A primeira foi o sadismo, sugestão de que, sob ele, os radicais hindus poderiam saciar uma sede de sangue adormecida: após a morte de um muçulmano sob custódia policial, por exemplo, Modi refletiu em um comício de 2007: "Se rifles AK-57 [sic] são encontrados na residência de uma pessoa... Não devo matá-los?" (A multidão gritou de volta: "Mate-os! Mate-os!")

A segunda foi uma exultação com o tormento de minorias indefesas: em uma manifestação anterior, em 2002, Modi refletiu sobre o destino dos muçulmanos deslocados pelos recentes tumultos de Gujarat, perguntando: "O que devemos fazer? Abrir campos de socorro para eles? Queremos abrir centros de produção de bebês?". 

Seu público explodiu em gargalhadas. "Temos que ensinar uma lição para aqueles que estão aumentando a população em um ritmo alarmante", disse ele.

O recurso final foi a autopiedade, uma licença para os hindus se considerarem as vítimas reais. Ele disse ao Parlamento que a Índia era uma nação escrava há mais de mil anos e alegou que havia forças que queriam matá-lo.

Desde sua eleição em 2014 para primeiro-ministro, o fanatismo tem sido enobrecido como uma forma saudável de autoafirmação.

Linchamentos de muçulmanos —constantemente demonizados como jihadistas dedicados a seduzir e converter mulheres hindus— ​por grupos de hindus furiosos tornaram-se um esporte tão comum que dezenas de vídeos de assassinatos terríveis circulam em grupos do WhatsApp dirigidos por nacionalistas hindus. 

No último verão, um ministro do gabinete de Modi elogiou oito homens que haviam sido condenados por linchar um muçulmano. Nesse universo, a Caxemira jamais poderia permanecer autônoma, um lugar impermeável aos desejos de uma maioria feliz ao ver sua vontade cumprida por meio da violência.

O premiê indiano, Narendra Modi
O premiê indiano, Narendra Modi - Prakash Singh/AFP

A reeleição de Modi neste ano encorajou os adeptos cuja raiva ele habilmente incitou.

O primeiro-ministro raramente reconhece os assassinatos de minorias. Mais raros ainda são os casos em que ele os condena. Nem uma vez, de fato, ele lembrou pelo nome os muçulmanos mortos por fundamentalistas hindus. Isto não é um acaso.

Está a um pequeno passo de deixar os vigilantes hindus subjugarem seus vizinhos muçulmanos para então subjugá-los, usando o poder do Estado, como ele já fez na Caxemira.

O despertar político de Modi ocorreu nos campos de treinamento do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), grupo paramilitar de direita que incubou a moderna política do nacionalismo hindu.

O RSS apresenta jovens "voluntários" ao vasto panteão de supostos vilões que saquearam e emascularam a Índia ao longo dos tempos —os invasores islâmicos, os acomodacionistas como Mohandas Gandhi e o Partido do Congresso que ele liderava, os nacionalistas muçulmanos que mutilaram a Índia para criar o Paquistão e procuraram sequestrar a Caxemira— e os exorta a abandonar sua impotência hindu.

O efeito na mente jovem de Modi foi tão poderoso que ele passou a considerar o RSS como sua família, abandonou sua mulher e sua mãe e vagou pela Índia como catequista da causa nacionalista hindu.

Ao tomar a Caxemira, Modi apaziguou os adeptos do nacionalismo hindu e se estabeleceu como o pai do que eles orgulhosamente chamam de "Nova Índia".

A Caxemira sempre esteve no topo de sua lista de desejos, que inclui a construção de um templo em Ayodhya, onde existiu uma mesquita durante 500 anos antes que os nacionalistas hindus a destruíssem em 1992; a eliminação de pequenos privilégios concedidos a minorias (como um subsídio para a peregrinação muçulmana a Meca); um fim legal para conversões religiosas por hindus; uma supressão extralegal de namoros e casamentos inter-religiosos, especialmente quando a noiva é hindu e o noivo muçulmano; e, finalmente, a revisão da Constituição para declarar a Índia um Estado formalmente hindu.

Mas poderá a Índia, a sociedade mais heterogênea da Terra, sobreviver à ascensão de uma maioria como essa?

Em seu emocionante discurso inaugural à primeira assembleia livremente eleita da Caxemira, em 1951, o xeque Abdullah, o líder socialista popular que defendeu a entrada da Caxemira na Índia, estabeleceu as opções diante dos caxemirianos.

O compromisso da Índia com a "democracia secular baseada na justiça, liberdade e igualdade", explicou, negou o "argumento de que os muçulmanos da Caxemira não podem ter segurança na Índia".

A Constituição da Índia, segundo Abdullah, "repudiou ampla e definitivamente o conceito de um Estado religioso, que é um retrocesso ao medievalismo".

Abdullah denunciou o Paquistão, uma quase teocracia que empreendeu uma guerra em 1948 para tomar a Caxemira, como "um Estado feudal", em que "o apelo à religião constitui uma abordagem sentimental e errada".

Mas sua rejeição ao Paquistão também foi um lembrete para a Índia de que o secularismo era a condição inegociável da lealdade da Caxemira.

A Caxemira, disse ele, "nunca aceitará um princípio que procure favorecer os interesses de uma religião ou grupo social contra outro". Essa frase foi então destinada ao Paquistão. Aplica-se agora à Índia.

Os separatistas da Caxemira, que um dia rotularam a Índia de "Estado hindu", podiam ser considerados na época como chauvinistas, e a Índia poderia defender com credibilidade o lugar da Caxemira em seu rebanho poliglota: a religião dos caxemirianos era irrelevante para a plena cidadania do Estado indiano. 

Mas agora a reivindicação dos separatistas contra a Índia tem tanto peso e substância quanto a de Abdullah contra o Paquistão.

O argumento do "nacionalismo inclusivo" utilizado pelos antecessores de Modi para persuadir os separatistas da Caxemira a participar das eleições não está acessível a ele, um nacionalista religioso.

Uma Índia que deixou de ser secular terá perdido para sempre seu argumento pela Caxemira.

A calma atualmente imposta à região esconde um ódio profundo que está prestes a entrar em erupção.

O abuso à Caxemira justificado por Modi como "integração", se não for confrontado e invertido, pode ser o começo do fim da unidade da Índia.

Kapil Komireddi é o autor de "República Malévola: Uma Breve História da Nova Índia" Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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