Para combater vírus, enclave ultraortodoxo em Israel abre as portas a pessoas de fora

Bnei Brak precisou de ajuda do Exército quando se tornou epicentro de Covid-19 no país

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David M. Halbfinger
Bnei Brak | The New York Times

Quando o prefeito de Bnei Brak se deu conta da gravidade letal da pandemia de coronavírus, sua cidade já se tornara o maior centro de contágio em Israel.

Enclave ultraortodoxo na periferia de Tel Aviv, Bnei Brak tinha um em cada sete casos de Covid-19 no país, e a previsão era que até um terço de seus 210 mil habitantes contrairia a doença.

Os próprios costumes que protegem suas tradições veneráveis contra mudanças –limites rígidos à tecnologia moderna, aversão à mídia secular, uma atitude de desconfiança profunda em relação às instituições do Estado—impediram os habitantes de Bnei Brak de tomar conhecimento dos avisos urgentes de saúde pública.

um menino de bicicleta, camisa branca, calça preta, máscara, quipá, e cachos laterais típicos de homens judeus está ao lado de um oficial do exército com a farda verde, uma metralhadora pendurada pelos ombros, máscara branca e luvas de plastico azuis.
Menino e membro do exército israelense andam lado a lado na cidade judia ultraortodoxa de Bnei Brak, durante pandemia do novo coronavírus - JINI - 3.abr.2020 /Handout via Xinhua

Densamente povoado de famílias grandes que vivem em apartamentos pequenos e cuja vida gira em torno dos estudos e adoração religiosa, realizados com as pessoas em proximidade estreita, a cidade era terreno fértil para a propagação acelerada da Covid-19.

Desesperado, o prefeito Avraham Rubinstein procurou ajuda de fora de sua comunidade, junto a pessoas que os ultraortodoxos há muito tempo encaram como uma ameaça a seu modo de vida: o exército.

Hoje, 15 dias mais tarde, Bnei Brak ainda tem a maior concentração de casos conhecidos do vírus no país, mas a crise está sendo controlada rapidamente. A propagação do vírus foi desacelerada: o índice de novos contágios foi reduzido em mais de 50%, o número de pessoas testadas por semana triplicou, e apenas 2.109 moradores da cidade testaram positivas.

Sinagogas e ieshivás foram fechadas, e as ruas estão quase vazias. Os sons de orações ainda podem ser ouvidas em intervalos regulares, mas vêm de sacadas e telhados.

A história da inversão rápida vista em Bnei Brak não diz respeito apenas a liderança militar prudente sob um tipo diferente de fogo inimigo, mas também a um processo incômodo de lançar uma ponte sobre uma das divisões mais amargas do país.

Trata-se da divisão entre uma comunidade enclausurada que encara pessoas de fora como hostis e o exército como uma ameaça particular, temendo sua fama de representar um caldeirão cultural secular, e, por outro lado, os israelenses que encaram os ultraortodoxos como atrasados e um fardo, em parte porque a maior parte deles se recusa a prestar serviço militar.

“É a fusão entre outras partes de Israel e a comunidade ortodoxa judaica”, comentou o general da reserva Ronny Numa, ex-chefe do Comando Central israelense, que recebeu um telefonema do prefeito Rubinstein 15 dias atrás e assumiu a direção do esforço na prefeitura de Bnei Brak na manhã seguinte.

Os rabinos de Bnei Brak estavam finalmente tomando consciência da letalidade do vírus –seus próprios jornais estavam imprimindo as notícias da morte de dezenas de judeus ultraortodoxos em Nova York, New Jersey e Londres—quando Rubinstein, cuja esposa contraíra o vírus, pediu ajuda.

Numa, 53 anos, disse que tentou projetar calma e um espírito racional em meio às emoções superaquecidas. Ele convocou dois colegas da reserva para ajudar. O general Ronen Manelis, no passado o porta-voz chefe dos militares, começou a entrevistar moradores para ver até que ponto entendiam qual era a situação.

O coronel Avi Cohen, especializado em guerra eletrônica, instalou um sistema de visualização de dados de ponta para mapear os doentes, os idosos, as ieshivás, as sinagogas e várias outras informações sobre televisores de tela grande, convertendo uma sala vazia da prefeitura em uma sala de comando da guerra ao vírus.

Juntos, eles não demoraram a compreender que a estratégia nacional israelense para enfrentar o vírus não funcionaria em Bnei Brak.

“Em outros lugares, os doentes podem ficar isolados em um quarto, e parentes saudáveis podem lhes trazer o que eles necessitam”, explicou Manelis. “Aqui eles vivem todos juntos. Não há como isolar os doentes.”

Para impedir que pessoas contaminadas saíssem de suas casas, Numa persuadiu o exército a enviar a Bnei Brak duas brigadas de soldados da ativa, que, juntamente com centenas de voluntários, começaram a entregar alimentos, refeições prontas, remédios e brinquedos às residências em quarentena.

Numa e seus colegas disseram que abordaram sua missão com grande humildade, dado seu desconhecimento do modo de vida ultraortodoxo, e com empatia pelo fato de a insularidade de Bnei Brak ter se convertido em uma desvantagem enorme.

Os israelenses criticavam os ultraortodoxos por desrespeitarem as ordens de distanciamento social, continuando a orar e estudar em grupos e a realizar grandes casamentos. Funcionários governamentais haviam bloqueado o acesso a comunidades inteiras, começando por Bnei Brak.

Contrariamente à percepção pública de que os ultraortodoxos estavam desobedecendo as ordens de saúde pública, disse Numa, os moradores de Bnei Brak simplesmente não haviam ouvido as ordens. “A maioria deles ignorava os riscos”, ele explicou. “Eles não sabiam o que fazer.”

Manelis, 41 anos, disse que outra coisa que o preocupava era a opinião dos não judeus. Devido à visibilidade de vítimas ultraortodoxas do vírus em Nova York e New Jersey, explicou, ele se ofereceu a ajudar movido em parte pelo desejo de evitar um novo impulso ao antissemitismo. “Meu receio é que o que aconteceu em Bnei Brak e no Brooklyn possa acabar levando judeus a serem odiados em todo o mundo”, ele disse.

Enquanto Numa e sua equipe tentavam adaptar-se às sensibilidades locais, os rabinos locais também se adaptaram, localizando precedentes talmúdicos para justificar algumas modificações na prática judaica e, em alguns casos, improvisando.

A chegada do Pessach, por exemplo, na quarta-feira passada, envolveria a queima ritual de “chometz”, alimentos consumidos ao longo do ano mas considerados maculados por conterem fermento. Normalmente os moradores se reúnem em volta de fogueiras nas calçadas. Este ano cada prédio de apartamentos recebeu um grande saco amarelo no qual recolher os chometz dos moradores, equipes de saneamento levaram os sacos ao aterro sanitário da didade, e alguns poucos rabinos presidiram sobre a incineração ritual.

É preferível as próprias pessoas realizarem o ritual, disse o rabino chefe da cidade, Isaac Landa. “Mas quando não há outra alternativa, é preciso se adaptar.”

Muitos moradores de Bnei Brak compreenderam que o fato de não terem tomado conhecimento das orientações sobre distanciamento social evidencia um problema de comunicação entre os ultraortodoxos e o governo central em Jerusalém. Alguns deles sugeriram que o governo teria errado por confiar demais em políticos ultraortodoxos como canais de comunicação de informações virtais.

Mas Landa, dizendo que não vai deixar de opor resistência ao que descreveu como a influência nociva dos meios de comunicação de massa, disse que ele e outros líderes precisavam assumir a responsabilidade de divulgar a notícia do coronavírus a moradores que poderiam incorrer em risco por evitarem a mídia.

“Precisamos informar nosso público de uma maneira que ele saiba o que fazer e como responder”, ele disse. “Vou aprender com esta situação. Não vamos esperar até perceber que nosso público ignora algo que constitui uma ameaça direta a ele.”

Rubinstein agora faz questão de destacar que as ruas estão vazias, argumentando que, uma vez informados, os moradores de Bnei Brak se comportaram bem. “Me orgulho especialmente da obediência e cooperação de nossos habitantes”, ele disse.

O ponto de maior tensão entre os ultraortodoxos e o público israelense maior diz respeito à isenção do serviço militar dada aos judeus que se dedicam ao estudo religioso. Isso já levou políticos seculares a descreverem os ultraortodoxos como um fardo financeiro, enquanto os ultraortodoxos demonizam o exército, descrevendo-o como um caldeirão cultural nefando e antirreligioso.

Mas nos últimos 15 dias os habitantes de Bnei Brak tiveram uma oportunidade rara de interagir estreitamente com soldados. E eles parecem ter ficado bem impressionados.

“De repente, um dia, havia todos estes veículos militares aqui, e estavam indo aos idosos e pessoas com necessidades especiais”, comentou Avshalom Amar, 48 anos. “Isso que eu testemunhei ficará gravado no meu coração. Eles não estão apenas vigiando as fronteiras –também estão vindo nos socorrer nesta crise.”

Tradução de Clara Allain

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