Kim Jong-un exige dinheiro da elite da Coreia do Norte

Coronavírus e sanções derrubam economia, e Pyongyang pressiona ricos a comprarem títulos públicos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Edward White
Wellington (Nova Zelândia) | Financial Times

Para fazer frente à ameaça dupla do coronavírus e das sanções econômicas, Kim Jong-un aumentou fortemente a contribuição em dinheiro que exige da classe mais alta norte-coreana.

A Coreia do Norte enfrenta a maior recessão econômica desde 1997, e analistas disseram que seu líder de 36 anos está reafirmando o controle central sobre a economia, potencialmente enfraquecendo o movimento em direção à adoção da economia de mercado e os sinais nascentes de capitalismo.

Especialistas disseram que as informações obtidas sobre uma emissão rara de títulos de dívida planejada por Pyongyang com o objetivo de levantar divisas junto a norte-coreanos ricos (frequentemente descritos como “donju”) em valor suficiente para cobrir até 60% do orçamento nacional são indicativas da gravidade do enfraquecimento econômico.

O ditador norte-coreano, Kim Jong-un, participa de reunião com a cúpula militar do regime
O ditador norte-coreano, Kim Jong-un, participa de reunião com a cúpula militar do regime - 23.mai.20/KCNA/Reuters

Os detalhes sobre a emissão de títulos, a primeira desde 2003, foram divulgados pelo serviço de notícias Daily NK, sediado em Seul. A agência de classificação Fitch aludiu ao assunto em relatório na semana passada. A notícia não foi verificada de modo independente pelo jornal Financial Times.

Se for verídica, a emissão de títulos ocorre no momento em que as restrições às viagens internacionais e internas, impostas para prevenir a propagação do vírus, enfraqueceram o comércio doméstico e cortaram o intercâmbio comercial crítico que normalmente ocorre ao longo dos 1.420 quilômetros da fronteira com a China.

“A emissão repentina de um montante tão alto de títulos de dívida em um só ano é um fato fora do comum”, comentou Peter Ward, pesquisador da Universidade de Viena residente em Seul e que estuda a Coreia do Norte. “Acho que é o primeiro sinal de que a Coreia do Norte está sob tensão financeira muito grande em decorrência das sanções e do vírus.”

Ele acrescentou que não haverá garantia de pagamento para os compradores dos títulos e destacou que o governo norte-coreano se mostrou “basicamente incompetente” em matéria de fazer boas decisões de investimentos e fornecer serviços sociais à população.

“Ele vai roubar muito dinheiro de pessoas que sabem como gastá-lo com coisas que são boas para a economia”, disse Ward. “Provavelmente o gastará com todas as coisas com que geralmente gasta dinheiro: obras faraônicas, palácios para o líder e propinas para a elite.”

A agência Fitch prevê um encolhimento de 6% do PIB norte-coreano neste ano, o pior desempenho desde uma queda de 6,5% há 23 anos. É uma revisão de quase dez pontos percentuais para baixo em relação à previsão anterior feita pela agência, de crescimento de 3,7%.

“Acreditamos que o Estado esteja tendo mais dificuldade em sustentar a atividade econômica, na medida em que as fontes de recursos secaram. Não há dúvida de que a crise da Covid-19 exacerbou os efeitos do número ainda grande de sanções econômicas enfrentadas pela Coreia do Norte”, escreveram analistas da Fitch em relatório na semana passada.

Daniel Wertz, gerente de programas da ONG sediada em Washington National Committee on North Korea, disse que a pandemia “parece ter criado uma espécie de oportunidade para Kim Jong-un e os líderes norte-coreanos”.

Embora a Coreia do Norte alegue não ter tido casos de coronavírus no país, Wertz disse que a crise vai blindar seu esforço para intensificar o controle do comércio externo e das divisas.

“O objetivo é conseguir que mais dinheiro das empresas voltadas ao mercado acabe indo para o Estado, em vez de para os cofres das elites corruptas. Além disso, querem ter condições melhores de moldar a direção geral do desenvolvimento da economia e saber o que está acontecendo em todo o país”, disse Wertz.

Segundo Benjamin Silberstein, do think tank americano Foreign Policy Research Institute, Pyongyang está adotando maneiras diferentes de coagir seus cidadãos a entregar divisas ao governo.

“Ouvi de pessoas que têm contato regular com indivíduos no país que as exigências de ‘contribuições de lealdade’ e outras semelhantes vêm aumentando. Em outras palavras, empresários e realmente qualquer pessoa que ganhe dinheiro substancial estão tendo que fazer uma contribuição ‘voluntária' ao Estado para demonstrar sua lealdade ao líder. É claro que isso é simples extorsão descrita por outro nome”, disse.

Andray Abrahamian, da George Mason University Korea, em Seul, que já trabalhou em cooperação estreita com empresas norte-coreanas, disse que o Estado vai “coagir a comunidade empresarial” a comprar os títulos, mas que haverá uma suposta “negociação” dos valores dos mesmos.

“Tudo isso vai depender da influência que os empresários tiverem junto aos Comitês Populares locais ou às autoridades centrais”, disse Abrahamian.

“Estamos falando de alguém que tem uma pequena empresa com dez empregados, cuja família ganha alguns milhares de dólares por ano e têm condições de viver numa casa boa, com alguns eletrodomésticos, ou das pessoas que comandam estatais e ganham vários milhões de dólares por ano individualmente?”

Abrahamian comentou ainda que é provável que a emissão de títulos crie tensões no interior da liderança norte-coreana.

“Haverá elementos no governo que vão querer se certificar de não estarem sufocando as empresas. Haverá outros que se preocupam muito menos com isso e se interessam no acúmulo de capital no curto prazo para os órgãos do Estado central”, explicou.

Apesar do declínio econômico, Pyongyang continua a canalizar enormes recursos financeiros às suas Forças Armadas.

Estima-se que o regime de Kim tenha gasto US$ 600 milhões (R$ 3,2 bilhões) com armas nucleares no ano passado, segundo a Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares, entidade sediada em Genebra. Especialistas afirmam acreditar que Pyongyang ajuda a financiar seu programa de armas com pirataria de informática e lavagem de dinheiro.

“No longo prazo, provavelmente é bom para o mundo que a Coreia do Norte se veja forçada a adotar essas medidas desesperadas, porque isso obrigará o país a mudar”, disse Ward. “No curto prazo, porém, isso é terrível para a população.”

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.