Policiais acusam ditadura, pedem demissão e criam onda de apoio na Belarus

No período em que a Folha esteve no país, ao menos 20 agentes deixaram cargos e criticaram governo

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Minsk

Quem acusa não é um opositor espancado, mas um policial: "É visível que agentes de segurança cometeram atos criminosos". Devido à repressão violenta a protestos contra a ditadura na Belarus, Artem Nikulin é um entre dezenas de policiais que pediram demissão nos últimos dias no país.

Embora não fizesse policiamento de rua —durante sete anos ele trabalhou na unidade de combate a crimes econômicos da cidade de Grodno—, Nikulin afirma que, pela temperatura da eleição presidencial, ocorrida no dia 9, imaginou que pudesse ser convocado. "Chegaria o momento em que todos teriam que sair com escudos.”

Mas, para ele, o ditador Alexandr Lukachenko passou dos limites. Ou, como descreveu a economista Galina, 70: "A revolta começou a crescer, e o governo tentou represar apertando tanto o registro que ele se partiu. Não dá mais para conter".

A Corregedoria bielorrussa identifica claramente os casos em que os policiais podem usar força física e equipamento especial, e os protestos pacíficos contra o resultado eleitoral não eram uma dessas exceções, diz ele.

"Já vi agentes serem demitidos por crimes muito menores, como intimidar verbalmente um detido. Quando não pode deter um agressor de forma não violenta, a lei manda o policial se esforçar para causar o mínimo de dano. Isso não foi observado, para dizer o mínimo", afirmou Nikulin no dia 18, após se demitir.

O agente não foi o único a deixar seu emprego em protesto contra a repressão truculenta de Lukachenko.

Na semana em que a Folha esteve em Minsk, de 15 a 20 de agosto, ao menos duas dezenas de policiais condenaram publicamente o governo e pediram demissão, sob pena de multas e até de processos.

Para sua surpresa, encontraram apoio até mesmo entre vítimas das ações de seus colegas. "Estranhos escreveram e telefonaram, ofereceram ajuda em treinamento, emprego, finanças, coletaram cerca de 4.000 rublos para mim [cerca de R$ 8.800]", conta Nikulin, que terá que pagar 6.300 rublos (R$ 13,8 mil) ao governo por não ter cumprido seu contrato até o fim.

O mesmo ocorreu quando o site jornalístico independente Tut.by publicou relatos de policiais que diziam ser impossível continuar suas carreiras: "Foi uma onda gigante de mensagens de apoio, ofertas de ajuda e pedidos de contato", afirmou o veículo.

Nas ruas, manifestantes —principalmente mulheres, mas também homens— tentam convencer os agentes a abandonarem a repressão. Em várias cidades, policiais são abraçados, beijados ou recebem flores.

Neste domingo, mulheres se ajoelharam em frente a dezenas de soldados atrás de uma barricada de arames farpados em Minsk.

Nikulin diz que anunciou sua decisão em uma mídia social apenas "para mostrar a outros policiais que eles não estão sozinhos".

"Por que houve tanta crueldade eu não sei. Talvez tenham dito às tropas de choque que não eram manifestantes pacíficos, mas inimigos, pessoas armadas, que querem destruir o sistema", afirma o ex-agente.

Ao menos nas declarações de dois outros oficiais, essa hipótese é confirmada. Yuri I. (alguns nomes foram abreviados para a segurança dos entrevistados) já havia se recusado a cumprir a ordem de dispersar um evento eleitoral em junho em Lida (cerca de 100 km a oeste de Minsk). "Era gente pacífica —aposentados, casais com filhos e carrinhos de bebê— que não fez nada de errado."

Yuri afirma que já antes da eleição o governo fazia "preparativos de guerra" para uma eventual vitória da oposição. “A mensagem era a de que, se Lukachenko perdesse, cada um de nós seria enforcado em um galho perto da estrada. Portanto, deveríamos proteger este poder por todos os meios."

Ele diz que tirou férias antes das eleições, porque percebeu que não poderia trabalhar, o que não impediu sua revolta: “Dediquei 23 anos da minha vida à polícia e nunca imaginei que trataríamos nosso próprio povo de maneira brutal e bestial".

Em Lida, foram 13 os oficiais que se demitiram e se ofereceram para testemunhar contra ações ilegais da polícia.

Foi também o que ocorreu em Brest, segundo Vladislav N., que apresentou sua carta de demissão no dia 13: "Antes das eleições, houve treinamentos com escudos e cassetetes, para empurrar multidões se houvesse protestos".

Vladislav pensou em sair, mas, diz ele, acreditou que não haveria violência, até ser destacado para levar detidos a julgamento nos dias 11 e 12. "No primeiro dia, levei 20 pessoas ao juiz, 19 não participaram das ações", afirmou o policial ao Tut.by.

Os casos que ele descreve são semelhantes aos de Sasha, Kirill e Egueny, três bielorrussos que relataram à Folha as torturas que sofreram em Minsk: foram agarrados na rua, espancados, detidos e obrigados a assinar confissões sem ler.

O cúmulo da arbitrariedade, para Vladislav, aconteceu com um engenheiro de 52 anos que foi à delegacia de Brest procurar o filho, que estava desaparecido. "Vamos, vou te mostrar", disseram os policiais, levando-o para a cela. "'Aqui está seu filho', afirmaram, fechando as grades atrás dele", contou o ex-policial.

A gota d'água foi a detenção de uma mulher apenas porque suas roupas eram vermelhas e brancas. Ele conta que foi ameaçado por ex-colegas e criticado por parentes, mas recebeu também muito apoio, quando disse em entrevista que precisaria fazer um empréstimo para pagar a multa de 15 mil rublos e o aluguel mensal de 900 rublos, já que sua mulher está em licença maternidade, com um filho pequeno.

Até em cidades sem protestos policiais se viram obrigados a sair do emprego para não cumprir ordens que consideravam inaceitáveis.

Chefe do departamento de aplicação da lei e prevenção, Vitaliy Belizhenko diz que resolveu sair depois que pessoas começaram a ser detidas por nada na rua no dia 11, em Vitsebsk, e ele foi coagido a assinar boletins que as acusavam de participar de protestos ilegais.

"Não foi uma decisão fácil, faltavam três anos para que passasse a receber minha aposentadoria. Mas não consegui continuar", diz ele.

Para um tenente-coronel de Polotsk que não quis se identificar, agentes jovens acabam participando da repressão porque, nos quartéis, eles não podem usar telefones celulares e não recebem informações de fora.

"Antes das eleições, eles foram bombardeados com discursos de que os que vão para a rua são viciados, desempregados, criminosos. Além disso, você deve seguir a ordem, todo o Exército é construído sobre isso: não faça perguntas, não hesite, cumpra o que o comandante mandar", diz ele.

O tenente-coronel deixou o Exército um mês antes das eleições porque, segundo ele, entendeu que o país estava se encaminhando para conflitos: "Sabia que seria o fim. Porque, se acreditassem em eleições justas, não estariam se preparando dois meses antes para dispersar protestos".

Apesar das manifestações de apoio, policiais que criticaram em público o governo também foram detidos.

Andrei Ostapovich, investigador sênior, foi detido nesta sexta (21) ao tentar deixar o país, depois de protestar contra processos criminais iniciados injustamente contra manifestantes.

Ele afirmou que não quer ter vergonha de andar uniformizado por seu país. "Não vou cumprir calado ordens criminosas. Por favor, colegas, recuperem o bom senso, salvem as unidades de segurança."

Já para Nikulin, o mais importante é que "sofrimentos e sacrifícios não sejam em vão": "Espero que tragam mudanças".


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