Enquanto a maioria dos países terá de se posicionar ao lado da China ou dos Estados Unidos na guerra fria tecnológica travada em torno da infraestrutura das redes de 5G, a Índia tenta um caminho alternativo.
A Reliance Jio, operadora de telefonia que faz parte do maior conglomerado indiano, anunciou que está produzindo um 5G “made in India” e afirma que o sistema estará disponível no ano que vem.
Com a solução doméstica, o país não teria de optar formalmente entre a Huawei, a gigante de telecomunicações chinesa alvo de diversas sanções e boicote liderado pelos EUA, e fornecedores endossados por Washington, como as companhias escandinavas Nokia e Ericsson.
Os EUA acusam a Huawei e a também chinesa ZTE de compartilharem dados sigilosos que trafegam em seus sistemas com o regime asiático. EUA, Reino Unido e Austrália baniram equipamentos chineses de suas redes de telecomunicações, alegando ameaça à segurança nacional.
A Índia havia permitido, no início do ano, que empresas chinesas continuassem fornecendo equipamentos para operadoras locais e participassem de leilões de frequência. Desde então, porém, o governo indiano acumula rusgas com a China, principalmente devido a confrontos na fronteira que já levaram à morte de ao menos 20 soldados indianos —o governo chinês não divulgou se houve baixas de seu lado.
Neste ano, o governo do primeiro-ministro Narendra Modi baniu 177 aplicativos chineses, citando preocupações de segurança nacional. Entre as plataformas vetadas estão TikTok, WeChat, Alipay e Baidu.
Não houve uma declaração formal do governo indiano, mas reportagem publicada pelo jornal britânico Financial Times afirma que autoridades advertiram operadoras do país para que não usem equipamentos da Huawei e da ZTE em sua infraestrutura, cedendo a pressões americanas.
Ainda assim, a Índia não está 100% no barco americano. A estratégia é aproveitar a disputa entre as duas potências para emplacar um sistema indiano. A ação se encaixa no programa de estímulo à indústria doméstica e de autoafirmação promovido pelo premiê indiano.
“A crise do coronavírus nos mostrou o valor da manufatura local, dos mercados locais e das cadeias de suprimento locais”, disse Modi em discurso em maio. “O tempo nos ensinou que nós temos de tornar a produção local o mantra de nossas vidas.”
Analistas apontam para o perigo de uma escalada protecionista, mas um integrante do governo indiano ouvido pela Folha afirma que a iniciativa não visa o fechamento da economia do país, e sim o aumento de exportações e o fortalecimento de cadeias de suprimento cuja fragilidade ficou exposta pela pandemia.
A ambiciosa aposta no 5G indiano acontece, então, em um ambiente econômico e geopolítico propício.
“A estratégia é fiel ao histórico do país de evitar um alinhamento rígido com uma das superpotências. Mas é também cheia de riscos: o caminho para o 5G, além de caríssimo, pode atrasar a chegada da tecnologia à Índia ou até mesmo fracassar", diz Oliver Stuenkel, professor da faculdade de relações internacionais da FGV-SP e especialista em Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
"Além disso, é incerto se essa postura evitará de fato uma ruptura com os chineses, já que ela também envolve deixar a Huawei de fora do gigante mercado indiano.”
O movimento é visto com bons olhos por Washington, e a Reliance Jio já foi certificada pelo Departamento de Estado americano com a classificação de “operadora limpa”, uma espécie de selo de qualidade para designar operadoras que não têm nenhum componente chinês. A empresa é a única das grandes operadoras indianas que já não usa equipamentos da Huawei ou da ZTE.
A Índia também faz parte do grupo D-10, que inclui as nações do G7 mais Coreia do Sul, Austrália e, claro, a própria Índia e tem como objetivo estabelecer fornecedores alternativos para a tecnologia 5G.
Analistas, porém, ainda se mostram céticos quanto à viabilidade de criar um programa 5G indiano do zero e implementá-lo no país, o segundo maior mercado de celulares do mundo, com 850 milhões de usuários. Hoje, 90% dos equipamentos de telecomunicação usados pelas operadoras locais são importados.
O modelo de 5G da Reliance Jio é diferente dos existentes e se assemelha ao que está em implementação pelo gigante do varejo online japonês Rakuten. Além disso, outras operadoras ficam receosas de depender de um fornecedor ligado a uma concorrente, uma vez que o presidente da companhia, Mukesh Ambani, afirmou que conta com 20 parceiros ou aliados estratégicos, entre os quais Google e Facebook, que compraram participação na empresa, e Intel e Qualcomm, que auxiliam na implementação do projeto.
“A Índia de Modi vem aumentar seu perfil na política internacional. A disputa entre China e EUA na Ásia abriu espaço para uma atuação indiana pragmática e assertiva, focada, de um lado, na contenção da China [opondo-se ao megaprojeto da Iniciativa do Cinturão e Rota e acirrando tensões fronteiriças] e, de outro lado, numa maior integração indiana à geopolítica asiática [aderindo à Organização da Cooperação de Xangai e pleiteando o ingresso no Fórum da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico]”, diz Guilherme Casarões, cientista político e professor da escola de administração de empresas da FGV-SP.
“Um dos pilares da estratégia do premiê é o chamado 'Make in India', que envolve a atração de investimentos em tecnologia e desenvolvimento industrial. É possível pensar no desenvolvimento nativo de 5G como parte dessa posição indiana.”
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