Descrição de chapéu The New York Times

Alexander Hamilton foi dono de escravos? Novas pesquisas dizem que sim

Político é considerado um dos fundadores dos EUA e símbolo da luta pela libertação dos escravos

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Jennifer Schuessler
The New York Times

Uma pergunta que não quer calar assombra a fama ascendente de Alexander Hamilton na cultura pop: será que ele, um dos fundadores dos Estados Unidos, que tem seu retrato estampado na cédula de US$ 10 e é festejado no musical “Hamilton” como “abolicionista revolucionário, proponente da alforria”, foi dono de escravos, ele próprio?

Ao longo dos anos, alguns biógrafos trataram da questão com muito cuidado, frequentemente apenas em notas de rodapé ou referências passageiras. Mas um novo artigo divulgado pelo Sítio Histórico da Mansão de Estado Schuyler, em Albany, Nova York, traz os argumentos mais fortes nesse sentido vistos até agora.

No artigo, intitulado “ ‘Uma coisa tão hedionda e imoral’: a história oculta de Alexander Hamilton como escravizador”, Jessie Serfilippi, pesquisadora histórica no sítio histórico, examina cartas, cadernos de contabilidade e outros documentos. Sua conclusão é curta e grossa –em relação a Hamilton e ao que ela sugere que não passa de uma visão fantasiosa de muitos de seus admiradores modernos.

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Estátua de Alexander Hamilton em Nova York - Byron Smith/The New York Times

“Não apenas Alexander Hamilton escravizou pessoas, como seu envolvimento com a instituição da escravidão foi essencial para sua identidade pessoal e profissional”, ela escreve. “É crucial acabar com o mito de Alexander Hamilton como o ‘fundador abolicionista’.”

As evidências citadas no artigo, publicado online sem alarde no mês passado, não são inteiramente novas. Mas os argumentos convincentes de Serfilippi chamaram a atenção de historiadores, especialmente aqueles que questionam o que consideram ser as credenciais antiescravistas inflacionadas de Hamilton.

Annette Gordon-Reed, professora de história e direito em Harvard e autora de “The Hemingses of Monticello”, descreveu o artigo como “fascinante” e disse que o argumento é plausível. “Ele mostra que todos os fundadores do país estiveram envolvidos com a escravidão de alguma maneira”, ela explicou.

Joanne Freeman, professora de história na Universidade Yale e editora da edição dos escritos de Alexander Hamilton da Library of America, disse que as evidências detalhadas ainda precisam ser estudadas a fundo. Mas enxerga o artigo como parte de um processo louvável de revisão da chamada narrativa de “Hamilton Herói”.

“É justo que estejamos reconhecendo o status de Hamilton como escravizador em um momento que está deixando claro para todos quão fundamental é que os americanos brancos encarem seriamente os legados estruturais da escravidão na América”, ela escreveu em email.

A pesquisa de Serfilippi “complica a história de Hamilton, e com isso reflete com mais precisão o espaço central ocupado pela escravidão na fundação da América”, ela disse. “Além disso, reflete o próprio Hamilton com mais precisão.”

Mas Ron Chernow, que na biografia de Hamilton que publicou em 2004 o descreveu como “abolicionista intransigente”, acha que o artigo apresenta uma visão enviesadamente negativa do fundador.

Em email, ele disse que o artigo “parece ser um trabalho magnífico de pesquisa que amplia de várias maneiras nossa visão do envolvimento de Hamilton com a escravidão”. Mas ele se disse consternado com a relativa falta de atenção dada às atividades antiescravistas de Hamilton. E questionou o que descreveu como as “conclusões às vezes superficiais” de Serfilippi, a começar pela afirmação de que a escravidão foi “essencial para a identidade” de Hamilton.

“Não critico Jessie Serfilippi por seu exame meticuloso de Hamilton e da escravidão”, ele disse. “As grandes figuras de nossa história merecem esse rigor. Mas ela omite todas as informações que poderiam contradizer suas conclusões.”

Em 1780 Hamilton se casou com uma integrante da poderosa família Schuyler. A posse de escravos era comum entre a elite política de Nova York, e os Schuyler eram alguns dos maiores escravistas da região, tendo tido ao longo dos anos mais de 40 escravos na mansão em Albany e em outra propriedade.

Nos últimos anos, a mansão realizou pesquisas extensas sobre “os criados” (como geralmente eram descritos os escravos da família), e as informações resultantes foram incorporadas às informações divulgadas por guias em suas tours do local. O fato de os Schuyler terem sido donos de escravos não necessariamente choca os visitantes, disse Serfilippi. Mas a extensão da conexão de Hamilton com a escravidão é outra história.

“Algumas pessoas chegam aqui sabendo que Hamilton não foi exatamente um abolicionista”, ela disse. “Mas se surpreendem quando falo dos detalhes da pesquisa.”

Em seu artigo, Serfilippi contesta o que sugere que seriam mitos persistentes, a começar com a alegação muito reiterada de que sua exposição às brutalidades da escravidão em sua infância em St. Croix, no Caribe, lhe deixou “uma antipatia profunda à escravidão”, como diz Chernow em sua biografia.

“Não foram encontradas até agora fontes primárias” que corroborem a ideia de que a infância de Hamilton o imbuiu de aversão pelo escravismo, escreve Serfilippi, ecoando outros estudiosos.

Hamilton realmente criticou a escravidão em diferentes momentos de sua vida, e, comparado com a maioria de seus contemporâneos brancos, tinha ideias esclarecidas sobre as capacidades das pessoas negras. E foi um dos primeiros membros da Sociedade de Manumissão de Nova York, fundada em 1785 para defender a abolição gradual e incentivar a alforria voluntária de escravos. Vale lembrar que vários membros da sociedade, incluindo seu sogro, Philip Schuyler, eram donos de escravos.

Mas Serfilippi também destaca casos documentados em que Hamilton, como advogado, prestou consultoria a clientes sobre questões ligadas à escravidão. Ela argumenta que ele dificilmente teria sido contratado para esse trabalho “se fosse conhecido entre seus pares como tendo posições exclusivamente abolicionistas”.

O fato de Hamilton ter ajudado clientes legais e familiares, incluindo sua cunhada Angelica Schuyler Church, a comprar e vender pessoas escravizadas, já foi destacado por biógrafos. Mas sabe-se menos sobre se Hamilton manteve escravos em sua própria casa.

Serfilippi destaca que alguns biógrafos modernos tratam dessa questão, mesmo que apenas brevemente.

Em sua biografia, Chernow escreve que Hamilton e sua esposa, Elizabeth, “podem ter sido donos de um ou dois escravos domésticos”, citando “três referências indiretas em seus papéis”. Mas ela faz uma leitura mais definitiva, argumentando que várias fontes primárias “provam que Hamilton comprou pessoas escravizadas para seu uso próprio”.

Seus argumentos se baseiam em grande medida em anotações feitas nos livros-caixa de Hamilton e em correspondência da família. Por exemplo, em maio de 1871, seis meses depois de se casar com Elizabeth, Hamilton escreveu a George Clinton mencionando que estava aguardando uma soma de dinheiro “para pagar o montante devido pela mulher que a sra. H[amilton] recebeu da sra. Clinton”.

Alguns historiadores, escreve Serfilippi, interpretaram isso como um pagamento pelo valor do trabalho da mulher. Mas, para ela, está claro que Hamilton “estava trocando o dinheiro pela própria mulher”.

Ela também cita várias referências semelhantes em outras cartas e, segundo afirma, corroboradas por informações constantes dos livros-caixa. Por exemplo, em uma carta enviada a Hamilton em agosto de 1795, Philip Schuyler alude a “um rapaz e uma mulher negros arranjados para você”. Em março de 1796, os livros-caixa de Hamilton registram um pagamento de US$ 250 feito a Schuyler por “dois criados negros comprados por ele para mim”.

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Trecho de inventário do patrimônio de Hamilton, que cita 'servos: 400 libras', apontado como indicação de que ele tinha escravos - Biblioteca do Congresso/The New York Times

Serfilippi também cita várias cartas de Philip Shchuyler contendo alusões a “criadas” que viajavam com Elizabeth e os filhos dos Hamilton, isso numa época em que os livros-caixa de Hamilton não contêm qualquer menção a salários pagos a empregadas. Para a pesquisadora, é um indicativo de que as criadas em questão eram escravas.

Em outra anotação feita no livro-caixa, esta de junho de 1798, Hamilton registra que recebeu US$ 100 pelo “prazo” de um rapaz negro. O fato de Hamilton poder alugar o rapaz a outra pessoa –uma prática comum— “indica absolutamente que Hamilton o escravizou”, escreve Serfilippi.

Resta ver se as conclusões firmes dela serão amplamente aceitas por estudiosos. Para ela, está em jogo mais do que apenas a visão que temos de Alexander Hamilton.

“Quando dizemos que Hamilton não escravizou pessoas, estamos deletando essas pessoas da história”, disse. “O mais importante é que elas estiveram aqui. Precisamos reconhecê-las.”

Tradução de Clara Allain

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