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Ausente, Trump foi o fantasma que pairou sobre o discurso de Biden

Em primeira fala como presidente, democrata prega união, mas lista seus inimigos

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São Paulo

Ausente fisicamente da posse de seu sucessor, o agora ex-presidente Donald Trump pairou onipresente sobre o primeiro discurso do novo líder dos Estados Unidos, Joe Biden.

Em seus breves 20 minutos de fala, um salvo calculado de obviedades que fizeram falta durante os quatro turbulentos anos de Trump na Casa Branca, o democrata buscou vender a surrada ideia de união nacional.

Surrada, sim, mas necessária quando o próprio presidente teve de lembrar que há duas semanas aquele mesmo palco recebia uma guerra campal, promovida por apoiadores de Trump a invadir o Capitólio enquanto a vitória de Biden era confirmada em plenário.

Ao lado de sua mulher Jill, Biden faz juramento para assumir o cargo de presidente com mão sobre a Bíblia
Ao lado de sua mulher, Jill, Biden faz juramento para assumir o cargo de presidente com mão sobre a Bíblia - Saul Loeb/pool via Reuters

O democrata não citou Trump diretamente. Fez uma referência clara ao antecessor ao se queixar do reino das fake news, que não nasceram com o republicano, mas floresceram como nunca desde sua fulminante campanha eleitoral em 2016.

Ainda assim, a listagem de inimigos que tornam os EUA uma nação dividida feita por Biden mina o próprio princípio de unificar o país por ele proposto. Disse Biden: terrorismo doméstico, extremismo e ódio são inimigos que surfam a crise do novo coronavírus, alimentando uma "guerra incivil" de vermelhos (republicanos) contra azuis (democratas). Acima de tudo, a sombra trumpista da "mentira", a ser derrotada pelo que ele enfaticamente chamou de "a verdade".

A desgraça do belo discurso é que a mão que ele estendeu a "todos os americanos" (estranho seria se falasse algo diferente) pouco tem a ofertar para os 75 milhões de compatriotas que fecharam com o pacote de Trump no pleito de novembro, apenas 5 milhões menos dos que votaram em Biden.

Se o futuro do ex-presidente é incerto, e ele pode até perder seus direitos políticos, parece claro que as forças que o levaram à Casa Branca não irão sumir do dia para a noite. Biden mesmo repetiu: os ganhos da sua vitória são frágeis, a democracia é frágil.

Em termos de retórica, Biden foi quase perfeito. Fez as devidas reverências históricas à luta antirracista e ao feminismo, duplamente encarnados na sua vice, Kamala Harris. Vestiu sandálias da humildade mais de uma vez e usou o senso comum ao tratar daqueles que não votaram nele.

Sua ascensão, como uma causa e não como candidato, algo ressaltado no discurso, é um fenômeno que deve inspirar temores para os nacionalistas da cepa trumpista mundo afora. Mas não será exatamente um passeio no parque.

Referência óbvia neste grupo é Jair Bolsonaro, talvez o mais vocal apoiador de Trump entre líderes de nações com peso relativo no mundo. O ex-presidente é ídolo declarado do brasileiro, que já ensaia até emular o choro e o golpismo trumpista caso perca em 2022.

Para opositores da vaga populista, a lição da eleição de Biden, que no Brasil seria desprezado como uma raposa da velha política pelo Bolsonaro pré-casamento com o centrão, é que não é preciso um nome muito forte para desalojar os valentões da turma.

Ao contrário: Biden agregou apoios afastando-se de extremos, com a voz mansa, e ajudado pelo terror da Covid-19 e sua matança sob os olhares negacionistas de Trump. Sem a peste, com a economia nos trilhos, a história da eleição poderia ter sido outra.

A política externa de Biden deve seguir sem grandes mudanças em relação à de Trump num primeiro momento. Governos no começo são usualmente expostos a testes externos, e não fazer marola parece ser a regra.

O que não fez o democrata se esquecer de dizer que "o mundo está observando" e que os EUA irão "reparar suas alianças", um aceno aos colegas europeus e asiáticos espezinhados desde a campanha de Trump e com inúmeros gestos no cargo.

Com um tom adequadamente emotivo, sem lágrimas desnecessárias, o novo presidente fez referência ao passado e ao presente do esteio da projeção de poder americana: suas Forças Armadas.

Comparou os mais de 400 mil americanos mortos pela Covid-19 com o mesmo número de soldados caídos pelo país de 1941 a 1945 na Segunda Guerra Mundial. E pediu a tradicional bênção divina às "nossas tropas" ao fim.

O ato final de Trump, de negar sua presença na posse do sucessor, foi à altura de sua estatura moral na Presidência. Seu espectro permeando o discurso civilizatório de Biden mostra que tal incômodo poderá demorar a passar —se passar.

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