Descrição de chapéu The New York Times

Durante 77 dias, Trump usou políticos, extremistas e manobras para tentar subverter a eleição

Campanha extralegal se baseou na mentira muitas vezes repetidas de que houvera fraude no pleito

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The New York Times

Na quinta-feira, 12 de novembro, os advogados eleitorais do presidente Donald Trump já haviam concluído que a realidade que ele enfrentava era o inverso da narrativa que ele estava promovendo em suas declarações e no Twitter. Não havia evidências substantivas de fraude eleitoral e não havia de longe “irregularidades” em número suficiente para reverter o resultado das urnas nos tribunais.

Trump não vencera a eleição, nem poderia vencê-la, nem por muito nem por pouco. Sua Presidência se encerraria em pouco tempo.

As alegações de delitos eleitorais democratas haviam caído por terra de maneira embaraçosa. Uma suposta mala cheia de cédulas eleitorais ilegais em Detroit mostrou ser na realidade uma maleta de equipamentos para câmera de vídeo. Supostos “eleitores mortos” estavam aparecendo vivos na televisão e dando entrevistas a jornais.

Donald Trump durante uma coletiva de imprensa no Dia de Ação de Graças
Donald Trump durante entrevista coletiva no Dia de Ação de Graças - Andrew Caballero-Reynolds - 26.nov.2020/AFP

A semana estava chegando ao fim em clima especialmente desmoralizador: no Arizona, os advogados de Trump se preparavam para encerrar sua principal ação judicial, já que a contagem de votos no estado mostrava Joe Biden na dianteira com mais de 10 mil votos, sendo que eles haviam identificado apenas 191 que poderiam ser contestados.

O vice-diretor da campanha presidencial, Justin Clark, estava reunido com colegas para discutir estratégia quando foi chamado ao Salão Oval com urgência. O advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, estava ao telefone em viva-voz, pressionando o presidente a mover uma ação federal na Geórgia e compartilhando uma teoria conspiratória que vinha repercutindo na mídia conservadora: que as máquinas de voto da Dominion Systems teriam convertido milhares de votos em Trump em votos em Biden.

Clark avisou que a ação judicial que Giuliani visualizava seria rejeitada por motivos processuais. E uma auditoria no estado se aproximava da conclusão de que as máquinas da Dominion haviam operado sem interferência ou jogo sujo.

Giuliano teria tachado Clark de mentiroso, segundo pessoas com conhecimento direto do que ocorreu. Clark teria chamado Giuliani de algo muito pior. E, com isso, os especialistas em direito eleitoral foram jogados de escanteio e a preferência passou a ser dada ao ex-prefeito de Nova York, o homem que mais uma vez estava dizendo ao presidente aquilo que ele queria ouvir.

A quinta-feira, 12 de janeiro, foi o dia em que o esforço de Trump de reverter sua derrota —um esforço infundado e com pouquíssimas chances de êxito— converteu-se em outra coisa inteiramente: uma campanha extralegal para subverter a eleição. A campanha se baseou numa mentira que alguns dos seguidores devotos do presidente sentiram como tão convincente que tornaria quase inevitável o assalto violento ao Capitólio em 6 de janeiro.

Hoje, semanas mais tarde, Donald Trump é o ex-presidente Trump. Uma transição presidencial diferente de qualquer outra será dissecada nos próximos dias, quando Trump for submetido a julgamento no Senado num processo de impeachment, acusado de “incitamento de insurreição”. Mas sua mentira sobre uma eleição supostamente fraudada por forças corruptas e perversas continua viva na América dividida.

Uma análise feita pelo New York Times dos 77 dias passados entre a eleição e a posse de Joe Biden mostra como, com ideias conspiratórias correndo soltas em um país assolado por uma pandemia, uma mentira que Trump vinha alimentando havia anos finalmente dominou o Partido Republicano e, com freio após freio sendo jogado por terra, foi impulsionada por novos e mais radicais advogados, organizadores políticos, financistas e o clamor ininterrupto e onipresente da mídia de direita.

No rescaldo daquela tarde sombria no Capitólio, um quadro vem emergindo de forças entrópicas unindo-se em prol de Trump em um choque “ad hoc”, porém calamitoso, de raiva e negação.

Mas entrevistas com alguns dos atores principais, somadas a documentos que incluem e-mails, vídeos e posts nas redes sociais, materiais até agora não noticiados, contam uma história mais abrangente de uma campanha coordenada.

Ao longo daqueles 77 dias as forças da desordem foram convocadas e dirigidas pelo presidente em final de mandato, que exerceu o poder derivado de seu status quase infalível entre os fiéis republicanos, usando esse poder no derradeiro ato de contestação das normas de uma Presidência marcada pela negação da realidade.

Durante todo esse processo, Trump foi empoderado e capacitado por republicanos influentes motivados pela ambição, o medo e a visão equivocada de que ele não se excederia demais.

Trump recebeu margem de manobra no Senado desde o início graças ao líder da maioria republicana, Mitch McConnell. Buscando o apoio do presidente em um segundo turno da disputa eleitoral por duas vagas de senadores da Geórgia, uma eleição cujo resultado poderia lhe custar seu próprio domínio do poder, McConnell deu ouvidos a garantias infundadas de assessores da Casa Branca como Jared Kushner de que Trump acabaria se rendendo à realidade. Foi o que disseram ao NYT pessoas próximas a McConnell.

Quando McConnell mais tarde reconheceu a vitória de Biden, não foi o suficiente para dissuadir 14 senadores republicanos de aliar-se ao esforço de último recurso do presidente para anular milhões de votos de eleitores americanos.

Do mesmo modo, ao longo da campanha o secretário de Justiça, William Barr, havia ecoado algumas das denúncias de fraude eleitoral feitas por Trump. Reservadamente, contudo, o presidente estava irritado com a resistência de Barr a alguns de seus impulsos mais autoritários —incluindo sua ideia de acabar com a cidadania por direito inato, com uma ordem executiva pré-eleitoral de valor legal dúbio.

E quando, numa sessão tensa no Salão Oval, Barr informou a Trump que as investigações de fraude eleitoral feitas pelo Departamento de Justiça não haviam revelado fraude nenhuma, o presidente rejeitou o Departamento de Justiça, descrevendo-o como negligente de seus deveres e procurando outros funcionários que se dispusessem a encarar as coisas sob sua ótica.

Para cada advogado da equipe de Trump que se afastou do presidente, havia outro disposto a propor ações judiciais propagandísticas que passavam longe da ética e razão legal.

Entre esses segundos estavam não apenas Rudy Giuliani e advogados como Sidney Powell e Lin Wood, mas também a grande maioria dos procuradores-gerais republicanos, cujo processo fracassado apresentado à Suprema Corte procurando jogar 20 milhões de votos no lixo foi redigido em segredo por advogados próximos à Casa Branca, conforme descobriu o NYT.

Enquanto doadores republicanos tradicionais se afastavam, surgiu uma nova classe de benfeitores da era Trump dispostos a financiar analistas de dados e investigadores no trabalho de procurar argumentos para justificar a narrativa da eleição roubada.

Entre eles estavam o fundador da empresa MyPillow, Mike Lindell, e o ex-CEO da Overstock.com Patrick Byrne. Na One America News Network e na Newsmax, que viram seu ibope subir graças à sua disposição de ir mais longe que a Fox na adesão à ficção de que Trump ganhara a eleição, esses novos doadores lançaram avisos sobre “cédulas de voto falsas” e suposta manipulação de máquinas de voto pela China.

Enquanto a campanha eleitoral oficial de Trump encerrava suas operações, uma campanha nova e altamente organizada ocupava seu lugar, convertendo a fúria demagógica do presidente em um movimento próprio que, em momentos chaves, lembrava a parlamentares sobre o custo que seria pago por quem se opusesse à vontade do presidente e seus seguidores.

Intitulada Wormen for America First (Mulheres pela América em Primeiro Lugar), a campanha tinha vínculos com Trump e ex-assessores da Casa Branca interessados em receber perdões do presidente, entre eles Steve Bannon e Michael Flynn.

Enquanto percorria o país em ônibus interurbanos pintados de vermelho-Trump, disseminando o novo evangelho de uma eleição fraudada, o grupo ajudou a erguer uma coalizão nitidamente trumpiana que incluída parlamentares atuais e outros recém-eleitos e prestes a assumir seus cargos, eleitores da base e os extremistas e teóricos conspiratórios destituídos de plataforma que o grupo promovia em sua homepage. Estes últimos incluíam o nacionalista branco Jared Taylor, proponentes destacados do QAnon e Enrique Tarrio, líder dos Proud Boys.

A cada dia que passava a mentira foi ganhando força e ímpeto, terminando por conseguir fazer algo que fora rejeitado pelo processo político e os tribunais: subverter a transferência pacífica do poder que alicerçou a democracia americana por 224 anos.

'Fraude contra o público americano'

Nos dias que antecederam o 3 de novembro, sondagens indicaram fortemente que a noite da eleição mostraria Trump na dianteira, isso porque seus eleitores estavam menos preocupados com o coronavírus e tendiam mais a votar presencialmente. Esses números seriam os primeiros a aparecer nos placares eleitorais das redes de televisão.

Mas as sondagens também indicavam que a aparente dianteira do presidente diminuiria ou desapareceria até a manhã seguinte, na medida em que as contagens oficiais fossem incluindo mais cédulas de papel enviadas pelo correio, o sistema preferido pelos eleitores de Biden.

Quando o dia da eleição estava se aproximando, Trump e seus assessores mais diretos acreditavam que a vantagem dele seria insuperável. Sua opinião era influenciada pelas declarações de analistas políticos pró-Trump e pela medida pouco científica das dimensões e da mobilização das multidões que compareciam aos comícios do presidente.

Ao mesmo tempo, porém, Trump já vinha havia meses preparando um argumento para contestar uma possível derrota nas urnas: que ela só poderia ocorrer mediante uma conspiração gigantesca para fraudar a eleição. (Um porta-voz do ex-presidente se negou a dar declarações para esta reportagem.)

Quando voltava para casa no jato presidencial depois do evento final da campanha, em Grand Rapids, Michigan, na madrugada de 3 de novembro, Eric Trump, filho do presidente, propôs um pool de apostas sobre os resultados do Colégio Eleitoral.

Ele apostou que o presidente ganharia pelo menos 320 votos no Colégio Eleitoral, segundo uma pessoa presente no momento. “Só estamos querendo chegar a 270”, respondeu um assessor mais sintonizado com as pesquisas e a análise de dados.

Na realidade, as pesquisas de opinião haviam acertado.

Reunidos no Salão Leste da Casa Branca na noite da eleição, Trump e sua comitiva reagiram com descrença enfurecida quando a vantagem dele foi se dissipando implacavelmente, mesmo em estados antes fortemente vermelhos (republicanos) como o Arizona, que a rede Fox anunciou como vitória para Biden às 23h20, num gesto que o presidente interpretou como uma traição dolorosa.

Eric Trump instigou seu pai a seguir firme, numa dinâmica que se manteria nas semanas seguintes. Não haveria nenhum discurso de vitória na própria noite da eleição. Em vez disso, em um discurso rápido transmitido pela televisão pouco antes das 2h30, Trump, em tom de fúria, apresentou sua mentira pós-eleitoral.

“Esta é uma fraude cometida contra o público americano. É um constrangimento para nosso país. Estávamos nos preparando para vencer esta eleição –francamente, vencemos esta eleição”, declarou o presidente. “Queremos que toda a votação seja suspensa. Não queremos que encontrem cédulas às 4h da manhã e as acrescentem à lista.”

Líderes republicanos aderiram a seu discurso rapidamente.

Na Fox, Newt Gingrich, ex-presidente da Câmara, previu que os partidários de Trump explodiriam em fúria “vendo o Partido Democrata de Joe Biden roubar a eleição na Filadélfia, roubar a eleição em Atlanta, roubar a eleição em Milwaukee”.

Na noite da quinta-feira, Kevin McCarthy, líder da bancada republicana na Câmara, disse à apresentadora Laura Ingraham na Fox: “Todo o mundo está ouvindo. Não fiquem quietos, não façam silêncio sobre isto. Não podemos deixar isto acontecer em plena vista”.

As comportas da desinformação se abriram ainda mais online, com suas mensagens frequentemente chegando aos noticiários locais e das emissoras a cabo. Facebook, Twitter e Instagram se encheram de vídeos alegando que um cachorro havia votado em Santa Cruz, na Califórnia.

O medo de que milhares de votos dados a Trump fossem jogados fora no Arizona –porque os eleitores haviam sido obrigados a usar canetas hidrográficas que os scanners não conseguiam ler— correram soltos por contas de redes sociais conservadoras e na rede QAnon, antes de servir de base a duas ações judiciais, uma delas apresentada pela campanha de Trump. (As cédulas estavam legíveis, e as duas ações foram rejeitadas.)

Mas outra teoria conspiratória, esta mais durável, estava ganhando impulso e não demoraria a ser adotada por Rudy Giuliani.

Um site obscuro, The American Report, publicara um artigo no dia 31 de outubro dizendo que um supercomputador chamado The Hammer, usando software chamado Scorecard, seria usado para roubar votos de Trump.

Os autores do texto haviam passado anos disseminando alegações falsas de que a administração Obama usara o Hammer para espionar a campanha de Trump em 2016. Segundo eles, isso teria formado uma parte central da conspiração do “estado profundo” que teria dado lugar à investigação sobre a interferência russa e ao primeiro impeachment de Trump.

A origem do artigo foi identificada como tendo sido Dennis Montgomery, antigo funcionário terceirizado de segurança nacional descrito por seu ex-advogado como “vigarista”. As informações foram em vários casos confirmadas por Thomas McInerney, general aposentado da Força Aérea cujo currículo militar era capaz de conferir credibilidade aos relatos fantásticos.

McInerney acaba de emergir de um purgatório da mídia conservadora. A Fox o havia suspendido de participações dois anos atrás, depois de ele ter declarado falsamente que o senador John McCain traíra segredos militares quando fora prisioneiro de guerra no Vietnã do Norte.

Mas McInerney estava encontrando nova exposição graças a redes sociais e veículos noticiosos como o One America News e o podcast e programa de rádio de Steve Bannon “War Room: Pandemic”, que têm uma visão elástica dos padrões jornalísticos de verificação de informações.

A teoria sobre o roubo de votos recebeu sua primeira exposição mais além da internet no programa de Bannon, no dia anterior à eleição. Devido ao Hammer, disse McInerney, “vai parecer que a coisa está indo bem para o presidente Trump, mas vão mudar tudo”. Os democratas, ele alegou, estavam tentando utilizar o sistema para instalar Biden no poder e converter o país em “um Estado totalitário”.

A história do Hammer e do Scorecard somou-se a teorias conspiratórias disparatadas sobre máquinas de voto da Dominion que vinham sendo bandeadas na esquerda e na direita, mais especialmente no Twitter do deputado republicano do Arizona Paul Gosar. Em um post de 6 de novembro, Gosar exigiu que o governador do Arizona, Doug Ducey, investigasse “a precisão e confiabilidade do software eleitoral da Dominion e seu impacto sobre nossa eleição geral”.

Esse tuíte ajudou a desencadear um incêndio descontrolado nas redes sociais, atraindo interesse intenso de contas que regularmente circulam e decodificam conteúdos ligados ao QAnon.

Um dia mais tarde, a Associated Press e as grandes redes de televisão declaram que Joe Biden seria o 46º presidente dos Estados Unidos.

'A midia não tem o direito de decidir'

Há décadas os líderes dos dois partidos, Democrata e Republicano, encaram as declarações de resultados eleitorais feitas pela rede de emissoras de TV e a Associated Press como definitivas. O candidato derrotado normalmente parabeniza o presidente eleito em questão de horas.

Apesar da participação recorde de votos enviados pelos correios, devido à pandemia, não houve nada de especialmente incomum no resultado de 2020: as margens de vitória de Biden em estados importantes em termos do Colégio Eleitoral foram semelhantes às de Trump, quatro anos antes.

Desta vez, contudo, os líderes republicanos no Congresso romperam com a norma.

No programa “This Week” da ABC, em 8 de novembro, Roy Blunt, do Missouri, o senador republicano sênior responsável por fiscalizar eleições, disse que as regras antigas não se aplicavam mais. “A mídia pode projetar os resultados, mas ela não pode decidir quem é o vencedor”, ele disse. “Há um processo de sondagem. Isso tem que acontecer.”

O senador que tinha mais importância, aquele cujas palavras exerceriam a maior influência sobre a campanha de Trump para desafiar as probabilidades, era o líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell, do Kentucky. Ele estava de olho no que aconteceria mais tarde.

O líder e o presidente estiveram em contato regular nos dias seguintes à eleição, segundo várias pessoas que estavam a par de suas conversas. Mas o presidente, publicamente beligerante, raramente batia de frente com McConnell nesses telefonemas, evitando fazer qualquer exigência específica. Ele não ameaçou com represálias caso McConnell seguisse a tradição e parabenizasse Biden.

McConnell, porém, sabia que, se o fizesse, ele colocaria em risco seu objetivo político principal: vencer as duas eleições de segundo turno para senador na Geórgia e conservar o controle republicano sobre o Senado, o que lhe permitiria conservar seu próprio poder, como líder republicano. Se ele provocasse a ira de Trump, quase certamente perderia o apoio pleno do presidente na Geórgia.

Assim, enquanto Trump lançava diatribes sobre fraude eleitoral, como se estivesse falando no programa “Fox & Friends”, McConnell tentava redirecionar a discussão para uma ação judicial específica ou para as eleições para o Senado, disseram funcionários republicanos que acompanharam os telefonemas.

De acordo com funcionários, o senador também tinha a impressão falsa de que o presidente estava apenas falando da boca para fora. McConnell tivera várias discussões com o chefe de gabinete da Casa Branca, Mark Meadows, e o principal assessor político do presidente, Josh Holmes; ele falara também com o genro e assessor sênior do presidente, Jared Kushner. Os dois assessores haviam transmitido a mesma mensagem: seguiriam com todas as vias possíveis para contestar o resultado da eleição, mas reconheciam que talvez não conseguissem. Trump acabaria cedendo à realidade e aceitando sua derrota.

O líder da maioria no Senado apresentou seu veredito no dia 9 de novembro, falando na primeira sessão do Senado após a eleição. Ao mesmo tempo em que festejou as vitórias republicanas no Senado e na Câmara —que, nos argumentos do partido, teriam de alguma maneira escapado da fraude onipresente que estaria colocando em questão a vitória de Biden—, McConnell disse: “O presidente Trump tem 100% direito de investigar alegações de irregularidades e pesar suas opções legais”. E acrescentou: “Algumas investigações legais do presidente não chegam a assinalar o fim da República”.

Deste modo, restava no Senado apenas um punhado de republicanos dispostos a admitir a derrota do presidente: críticos já declarados de Trump como Mitt Romney, do Utah, e Lisa Murkowski, do Alasca.

2020 não é uma repetição de 2000

O secretário de Justiça, William Barr, chegou à Casa Branca na tarde de 1º de dezembro e encontrou o presidente enfurecido.

Trump o vinha bombardeando havia semanas com pistas sobre fraudes que, quando investigadas pelas autoridades federais, mostravam não ter fundamento. Naquela manhã, quando o presidente se queixou à Fox que o Departamento de Justiça estava sendo “omisso”, Barr disse: “Não vimos sinais de fraude em uma escala que pudesse ter levado a um resultado diferente”.

Mas outra alegação acabara de chamar a atenção do presidente: um caminhoneiro a serviço dos Correios estava alegando ter entregue à Pensilvânia muitos milhares de cédulas ilegalmente preenchidas, que ele teria buscado de um armazém em Long Island, no estado de Nova York.

Investigadores federais determinaram que também esse relato não tinha base. Registros de um tribunal mostraram que o motorista em questão tinha um histórico de problemas com a justiça, que havia sido internado em clínicas psiquiátricas diversas vezes contra a própria vontade e que fazia bicos como ghostwriter, segundo o The York Daily.

Agora, com o respaldo do advogado da Casa Branca Pat A. Cipollone, Barr disse ao presidente que não podia fabricar provas e que seu departamento não participaria de qualquer esforço para contestar os resultados eleitorais dos estados, disse um ex-funcionário sênior do governo com conhecimento do encontro, uma versão da qual foi divulgada primeiramente pela Axios.

As alegações sobre máquinas de voto manipuladas eram absurdamente falsas, disse Barr, e os advogados que as estavam propagando, liderados por Giuliani, eram “palhaços”. Trump fez uma pausa, refletiu um pouco e disse: “Pode ser”.

Mas, antes de Barr ter deixado a Casa Branca, o presidente tuitou o relato do caminhoneiro, que em pouco tempo ganhou 154 mil menções no Twitter, segundo uma análise da Zignal Labs. O motorista acabaria aparecendo no NewsMax, no “War Room” de Steve Bannon e no “Hannity”, entre os programas de maior audiência na TV a cabo americana.

No período que antecedeu a eleição, a equipe jurídica, liderada por Clark e Matt Morgan, seguira uma estratégia nos moldes da usada na eleição contestada de 2000, quando apenas algumas centenas de votos separaram Al Gore e George W. Bush na Flórida.

Bush se beneficiaria de uma combinação de ações espertas de seus advogados e táticas políticas brutais que incluíram o conturbado protesto “Brooks Brothers” em torno de alegações enganosas de fraude democrata.

Vinte anos mais tarde, as margens de diferença eram muito grandes demais para serem derrubadas por recontagens ou manobras judiciais de pequeno alcance.

Mesmo depois de uma recontagem dos votos no estado em que Biden ganhara por margem mais apertada, a Geórgia, ter localizado cerca de 2.000 votos em Trump perdidos, Biden continuou na dianteira com quase 12 mil votos.

E os argumentos de Giuliani de que a campanha de Trump poderia provar que as máquinas de voto da Dominion fizeram a diferença ilegalmente foram rejeitados sumariamente pelos outros advogados de Trump, que acompanhavam cuidadosamente uma recontagem dos comprovantes de papel dos votos contabilizados pelas máquinas.

“Foi feita uma contagem manual de cada um daqueles 15 milhões de papéis, e a correspondência com os votos contados pelas máquinas foi quase idêntica. Soubemos disso em menos de uma semana”, comentou Stefan Passantino, advogado de Trump que ajudou a comandar a estratégia inicial no estado. “Não vamos participar de um esforço para fazer alegações sobre a confiabilidade dessa máquina.” (A Dominion está processando Giuliano e Sidney Powell por difamação.)

Mas os advogados eleitorais de Trump estavam olhando para outra lição de 2000. Num parecer da Suprema Corte sobre o processo Bush vs. Gore, o juiz presidente da corte, William Rehnquist, argumentara que ordens dadas por tribunais da Flórida determinando procedimentos de recontagem de votos violaram a cláusula constitucional que confere às legislaturas estaduais o poder de determinar os termos da seleção dos membros do Colégio Eleitoral.

Muitas das primeiras ações judiciais movidas por Trump haviam adotado essa abordagem. Contradizendo o presidente, os advogados da campanha —até mesmo Giuliani—haviam em vários casos admitido aos tribunais que não estavam alegando fraude eleitoral.

Em vez disso, argumentaram que, ao flexibilizar as regras para facilitar o voto pelo correio durante a pandemia –estendendo os prazos finais para o recebimento de votos, eliminando a exigência da assinatura de testemunhas--, os secretários de Estado, os tribunais estaduais ou os conselhos eleitorais estaduais haviam usurpado ilegalmente o papel que cabia a seus Legislativos.

Entretanto, à medida que as ações judificiais foram sendo rejeitadas em um tribunal após outro em todo o país, deixando Trump sem opções dignas de crédito para reverter sua derrota antes da votação no Colégio Eleitoral em 14 de dezembro, Giuliani e seus aliados estavam desenvolvendo uma nova teoria legal: que nos estados indecisos cruciais teria ocorrido fraude suficiente e houvera mudanças inapropriadas das regras eleitorais em número suficiente para invalidar a eleição popular inteira nesses estados.

Diante disso, rezava a teoria, as legislaturas desses estados, sob controle republicano, teriam o direito constitucional de escolher eles próprios os nomes que incluiriam para representá-los no Colégio Eleitoral.

Se faltava mérito legal ou factual à teoria, ela era rica em alegações sensacionalistas —sobre cédulas forjadas e manipulação de máquinas de voto pelo “Estado profundo”— do tipo que permitiriam a Trump reativar sua luta, dando a seus milhões de eleitores a esperança de que ele ainda conseguisse prevalecer e, possivelmente, até mesmo fomentar caos suficiente para de alguma maneira promover uma reversão antidemocrática a seu favor.

'Esta é a grande ação'

Antes do Dia de Ação de Graças, uma equipe de advogados estreitamente ligados à campanha de Trump começou a planejar uma nova e ampla ação judicial para apresentar esse argumento.

Um deles, o ex-secretário de Estado do Kansas, Kris Kobach, tinha sido um dos protagonistas de algumas das iniciativas recentes mais fortes para restringir o voto, levando a frequentes resistências nos tribunais.

Ele também ajudara a liderar a comissão de Trump sobre a “integridade eleitoral”, formada depois de o presidente alegar que perdeu o voto popular em 2016 devido a fraudes. A investigação da comissão terminara em litígio, divergências internas e sem evidência de fraudes.

Outro membro da equipe, Mark Martin, ex-juiz presidente da Suprema Corte da Carolina do Norte, agora era diretor de uma escola de direito e assessor informal de Trump. Um terceiro, Lawrence Joseph, interviera anteriormente em um tribunal federal para apoiar os esforços de Trump para impedir a divulgação de suas declarações de imposto de renda.

Segundo advogados envolvidos nas discussões, o grupo determinou que a votação no Colegio Eleitoral, que aconteceria muito em breve, não deixava tempo para uma série de ações judiciais abrirem caminho pelos tribunais. Eles teriam que recorrer diretamente à Suprema Corte, onde, acreditavam, a maioria conservadora seria favorável ao presidente, que nomeara três de seus integrantes. A equipe começou imediatamente a redigir uma denúncia.

Entrevistado, Kobach explicou o raciocínio do grupo: os estados que promoveram eleições ilegítimas (por acaso aqueles em que Biden vencera) estariam violando os direitos dos estados que não o fizeram (nos quais, por acaso, Trump havia vencido).

“Se um jogador numa partida comete um pênalti e o juiz não declara o pênalti, isso não é justo”, ele disse.

O nome evidente para assinar a ação seria o procurador-geral do Texas, Ken Paxton, proponente entusiástico da narrativa de fraude eleitoral proposta pelo presidente e alguém que já apresentara várias ações judiciais e memorandos legais contestando a ampliação do voto pelo correio relacionada à pandemia. Mas Paxton estava comprometido devido a uma investigação criminal sobre possível uso inapropriado de seu cargo para beneficiar um amigo e doador rico (ele nega ter cometido qualquer delito).

Os aliados de Trump lançaram um apelo especialmente intenso a Jeffrey Landrey, o procurador-geral de Louisiana, membro do grupo Lawyers for Trump e, na época, diretor da Associação de Procuradores-Gerais Republicanos.

Landrey recusou o convite. O escolhido seria Paxton. Ele decidiu mover a ação mesmo depois de advogados de seu próprio órgão terem argumentado em contra, incluindo seu próprio advogado geral, Kyle Hawkins, que não deixou seu nome ser incluido em qualquer ação.

No dia 7 de dezembro Paxton firmou um contrato incomum para contratar Lawrence Joseph como advogado externo especial, sem custo para o estado do Texas. Joseph direcionava perguntas sobre seu papel ao procurador-geral do Texas; Ken Paxton se negava a dar declarações.

No mesmo dia que o contrato foi assinado, Paxton apresentou sua ação à Suprema Corte. Joseph foi citado como advogado especial, mas o documento da ação não revelava que ela havia sido redigida por terceiros.

A ação judicial teve âmbito audacioso. Ela alegava que, sem a aprovação de suas legislaturas, os estados de Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin haviam feito modificações anticonstitucionais de último minuto em suas leis eleitorais, ajudando a criar as condições para fraudes generalizadas.

Citando uma litania de alegações confusas e especulativas —incluindo uma envolvendo as máquinas de voto da Dominion—, a ação pedia à Suprema Corte que transferisse a escolhas dos delegados desses estados no Colégio Eleitoral a suas legislaturas, na prática anulando 20 milhões de votos.

Choveram condenações, algumas delas vindas de juristas conservadoras. Segundo memorando escrito por um grupo de políticos republicanos atuais e anteriores, a ação “escarnecia do federalismo” e “violaria os princípios constitucionais mais fundamentais”. Expressando a mesma opinião em linguagem mais direta, Richard L. Hasen, especialista em direito eleitoral na Universidade da Califórnia em Irvine, descreveu a ação como “um monte fedorento de mentiras”.

Um advogado ciente do planejamento disse, exigindo anonimato para falar: “Não havia chance plausível de a Suprema Corte validar esse processo. Foi realmente vergonhoso apresentar isso aos juízes do Supremo.”

Mesmo o procurador-geral republicano da Geórgia, Chris Carr, disse que a ação estava “constitucionalmente, legalmente e factualmente errada”.

Isso levou a um telefonema do presidente, que avisou a Carr para não intervir, conforme confirmou um assessor do procurador-geral. A campanha de pressão havia começado.

No dia seguinte, 9 de dezembro, o deputado Mike Johnson, do Louisiana, enviou um email a seus colegas com linha de assunto dizendo “pedido urgente do presidente Trump”. O deputado estava montando um “amicus brief” [um documento pelo qual terceiros são chamados para intervir em apoio a uma ação lega] em apoio à ação do procurador-geral do Texas.

Trump, ele escreveu, “me pediu especificamente para entrar em contato com todos os deputados e senadores republicanos hoje e solicitar que todos participem”. O presidente, ele destacou, estava anotando os nomes de quem o apoiava ou não: “Ele disse que vai aguardar a lista final ansiosamente para revê-la”.

Cerca de 126 deputados republicanos, incluindo líder do caucus, McCarthy, assinaram o “amicus brief”, que foi seguido por um documento legal separado firmado pelo próprio presidente. “Esta é a grande ação. Nosso país precisa de uma vitória!”, tuitou Trump. Reservadamente, ele pediu ao senador Ted Cruz, do Texas, para atuar como advogado no processo.

Atendendo à exortação de Trump, a Associação dos Procuradores-Gerais Republicanos ainda tentou pedir a Barr que apoiasse a ação. Ele recusou.

No dia 11 de dezembro a Suprema Corte se negou a ouvir a ação, decretando que o Texas não tinha o direito de contestar a eleição em outros estados.

'Nós, o povo, decidimos'

Se o tribunal de mais alta instância no país não podia dar conta do recado, tinha que haver outro jeito.

Assim, no dia seguinte eles se dirigiram aos milhares a um ato público longamente planejado em Washington, enchendo a Freedom Plaza com bonés vermelhos de Maga e bandeiras de Trump e QAnon, jurando levar a luta adiante. A campanha legal do presidente para subverter a eleição podia estar desmorando, mas as fontes de informação em que os seguidores de Trump mais confiavam estavam passando por cima das derrotas seguidas e alegando que as evidências de fraude deslavada eram irrefutáveis.

“O sistema de justiça tem uma finalidade em nosso país, mas não são os tribunais que decidem quem será o próximo presidente dos Estados Unidos da América”, disse o recém-perdoado ex-assessor de segurança nacional de Trump, Michael Flynn, discursando para a a multidão. “Nós, o povo, decidimos.”

Um telão exibia palavras de incentivo de figuras como Marjorie Taylor Greene, teórica conspiratória que acabava de ser eleita deputada pela Geórgia, e a senadora Marsha Blackburn, do Tennessee.

“Ei, vocês aí, felizes guerreiros que lutam pela liberdade”, disse Blackburn. “Ainda bem que vocês estão aqui para defender a Constituição, a liberdade, a justiça.”

A manifestação havia sido planejada pela Women for America First, que estava pouco a pouco tornando-se o que Trump tinha de mais próximo a uma força organizadora política, reunindo seus seguidores injuriados em torno da bandeira de que a eleição fora fraudada.

A fundadora da entidade, Amy Kremer, foi uma das organizadoras originais do movimento Tea Party. Ela fora uma das primeiras partidárias de Trump, formando ao lado de Ann Stone, ex-esposa do assessor de longa data de Trump Roger Stone, um grupo chamado Women Vote Trump (mulheres votam em Trump).

Com doadores que incluíam a organização filiada a Trump America First Policies, a Women for America First mobilizou apoio à nomeação de Amy Coney Barrett à Suprema Corte e defendeu Trump em seu primeiro impeachment.

A diretora executiva do grupo era Kylie Jane Kremer, filha de Amy Kremer. Ela trabalhara recentemente no programa de rádio de Hannity. Dois organizadores que ajudavam o esforço, Jennifer Lawrence e Dustin Stockton, tinham ligações com Steve Bannon, tendo trabalhado na Breitbart e então na entidade sem fins lucrativos de Bannon que buscou financiamento privado para ajudar a completar o muro de Trump na fronteira com o México.

(Em agosto, após uma investigação que incluiu uma revista do trailer de Lawrence e Stockton, promotores federais acusaram Bannon de defraudar os doadores da entidade. Lawrence e Stockton não foram incluídos na denúncia, e Bannon, que se confessou culpado do estelionato, receberia perdão presidencial de Trump.)

Antigo organizador da entidade de linha dura Gun Owners of America, segundo sua página no LinkedIn, Stockton conhecera integrantes do grupo miliciano Three Percenters. Ele tinha uma newsletter online, Tyrant’s Curse (a maldição do tirano), cujo lema era: “Uma população bem armada e autônoma, que assume responsabilidade pessoal e põe fé em Deus, nunca pode ser oprimida e jamais será governada”. Um post incluía uma foto do comício de 12 de dezembro: Stockton posando com três “irmãos” da Three Percenters, usando equipamentos de proteção de qualidade militar.

Jennifer Lawrence tinha vínculos pessoais com Trump. Seu pai é corretor imobiliário no vale do Hudson, onde Trump possui um clube de golfe e seus filhos têm um rancho de caça. “Ele faz negócios com Trump há mais de dez anos, então já tive a oportunidade de conhecer o presidente pessoalmente e interagir com ele em várias ocasiões”, ela disse em entrevista. Ela também conhecia Flynn pelo fato de ambos estarem ligados a um think tank conservador, ela disse.

Horas depois do fechamento das últimas urnas na noite da eleição, a Women for America First já começara a se organizar, formando um dos primeiros grandes grupos “Stop the Steal” (pare o roubo) no Facebook –o grupo seria fechado 22 horas depois por publicar posts que, segundo a plataforma, poderiam incitar à violência—e promovendo o primeiro grande comício no Mall de Washington em 14 de novembro. A autorização de realização do ato público previa a presença de 10 mil manifestantes, mas a multidão foi muito maior que isso.

“A decepção da eleição foi meio que posta de lado”, disse Stockton em entrevista. “Dissemos: ‘Temos uma nova luta a travar’.”

Para os Kremer, Lawrence e Stockton, o instrumento daquela luta seria uma reprise do Tea Party Express, uma tour de ônibus interurbano para mobilizar parlamentares estaduais e federais em apoio ao esforço de Trump para impedir os estados de certificar os resultados antes da votação no Colégio Eleitoral. Igualmente importante, a ação serviria de megafone para mobilizar os partidários de Trump desanimados.

O grupo conseguiu novas fontes de financiamento, com patrocínios do “War Room” de Steve Bannon, que contribuiu com US$5.000 (R$ 26 mil) , e Lindell, que disse ter doado US$50 mil (R$ 268 mil). Isso ajudou o grupo a alugar o ônibus e pintá-lo de vermelho, com as laterais estampadas com uma foto enorme de Trump e os logos do MyPillow, “War Room” e outros patrocinadores.

Enquanto o grupo percorria o país, seus integrantes foram falando com políticos locais e filiais do Comitê Nacional Republicano. Mas, com as plataformas sociais começando a bloquear grupos que estavam promovendo a teoria da eleição roubada, explicou Lawrence, a tour do ônibus também conferia às pessoas “a visão de que, se tinham sido destituídas de suas plataformas, ainda havia como saírem à rua e se encontrarem com pessoas que pensavam como elas”.

Conforme uma versão do site salva pelo Internet Archive (a promoção foi tirada do ar antes da “marcha” do ônibus), o website da chamada “Marcha por Trump” havia incluído inicialmente promoções de extremistas proibidos e teóricos conspiratórios como o supremacista branco Jared Taylor, vários “decodificadores” do QAnon e os “chauvinistas ocidentais” Proud Boys.

Houve sinais precoces da explosão que estava por vir.

No Tennessee, uma igreja que sediaria um comício cancelou o evento depois de ameaças de violência. Um pastor evangélico, Greg Locke, que chamara a atenção nacional por descrever a Covid-19 como “pandemia fake”, ofereceu sua própria igreja para sediar o ato e aderiu à tour como orador.

Após um comício em Des Moines, no Iowa, um manifestante armado e usando equipamentos de proteção baleou uma adolescente negra na perna quando ela e alguns amigos passaram de carro ao lado do ato e gritaram palavras de escárnio.

O jornal Des Moines Register informou que um veterano do exército chamado William McKinney, que seguia os Proud Boys em sua página no Facebook, foi acusado de tentativa de homicídio. Ele se disse inocente; seu advogado alega que ele agiu em defesa própria, já que as adolescentes teriam ameaçado a multidão com seu carro.

Mas depois do dia 12 de dezembro, o grupo se descobriu no limbo: encabeçando um movimento turbulento, mas sem destino certo.

'A cavalaria está chegando, sr. Presidente'

No dia depois de o Colégio Eleitoral certificar os votos, conforme o previsto, Mitch McConnell tomou medidas para dar a disputa toda por encerrada. Telefonou ao chefe de gabinete do presidente, Mark Meadows, para dizer que ia reconhecer Joe Biden como presidente eleito naquela tarde no plenário do Senado.

McConnell havia demorado a fazê-lo em parte devido às garantias anteriores dadas por Meadows e Kushner e havia acreditado neles quando Trump finalmente autorizou a Administração de Serviços Gerais (GSA, na sigla em inglês) a iniciar a transição presidencial. Mas mesmo nesse momento o presidente estava se recusando a admitir sua derrota. “Essa eleição fraudada não pode mais se manter”, ele escreveu no Twitter. “Mexam-se, republicanos.”

O fato que possivelmente fosse o mais importante nos cálculos de McConnell, em constante evolução, eram sondagens de opinião internas mostrando que o argumento mais forte dos republicanos no segundo turno da eleição para senadores na Geórgia era que um Senado liderado por republicanos seria um freio necessário a uma nova –e inevitável—administração democrata.

McConnell só telefonou ao presidente após seu discurso de parabéns a Biden. Foi uma conversa de poucas palavras. O presidente expressou seu desagrado. Trump e McConnell não se falaram mais desde então.

Na Casa Branca, Trump ainda estava procurando maneiras de anular os resultados, pedindo conselhos a aliados como Flynn, Giuliani e Powell.

Nesse momento, o prório Steve Bannon se voltara contra a teoria sobre a Dominion que ajudara a promover, dizendo em seu programa de rádio alguns dias mais tarde que era hora de apresentar “evidências” ou então mudar o discurso. E Trump acabou concordando, pelo menos pelo momento, para enfocar um objetivo diferente: bloquear a certificação dos resultados da eleição pelo Congresso, em 6 de janeiro.

Meadows havia colocado o presidente em contato com Martin, o ex-juiz da Suprema Corte da Carolina do Norte, que propunha uma interpretação radical da Constituição: dizia que o vice-presidente Mike Pence tinha o poder de sustar a certificação e anular quaisquer resultados que considerasse fraudulentos.

Na realidade, segundo a Constituição e a lei, o papel do vice-presidente é meramente formal. Ele deve abrir os envelopes de cada estado, ler o total de votos de cada um e perguntar se há objeções. Nada mais.

Mas esse processo oferecia a Trump e seus aliados no Congresso no mínimo uma possibilidade para criar confusão –e uma causa com a qual mobilizar sua base.

Se um senador e um deputado fazem objeção aos resultados de um estado, Câmara e Senado precisam se reunir em separado para debater e depois se reunirem juntos novamente para votar. A rejeição dos resultados requer votos majoritários tanto na Câmara quanto no Senado.

Agora a Women for America First também tinha um objetivo. Os objetores na Câmara já estavam se apresentando. Então o grupo planejou uma nova “marcha” de ônibus. Esta iria de estado em estado para tentar persuadir senadores passíveis de serem convencidos de sua causa. Seriam 11, pelas contas do grupo.

A cavalaria “está vindo, sr. presidente”, escreveu Kylie Kremer no Twitter em 19 de dezembro.

Quando o ônibus chegou a West Monroe, Louisiana, no dia 1º de janeiro, para exortar o senador John Kennedy a fazer objeção à certificação, Trump já estava deixando claro a seus seguidores que um grande comício no Ellipse, em Washington, no dia 6 de janeiro, fazia parte de seu plano. Ele promoveu o evento no Twitter cinco vezes apenas nesse dia.

O mestre de cerimônias da escala no Louisiana, o ativista do Tea Party James Lyle, anunciou que o evento do dia seguinte no Missouri seria de agradecimento: o senador Josh Hawley, desse estado, acabava de tornar-se o primeiro senador a anunciar que apresentaria uma objeção. “A gente tem que agradecer quando eles fazem a coisa certa”, disse Lyle.

Mas a discussão no comício estava passando a tratar mais do quê fazer se os senadores não fizessem “a coisa certa”. “Precisamos que nosso presidente seja confirmado pelos estados no dia 6”, disse Couy Griffin, fundador da organização Cowboys for Trump. “E logo depois disso vamos ter que declarar lei marcial.”

No dia seguinte Kennedy anunciou que também faria objeção.

Equilibrados no precipício da história

No sábado, 2 de janeiro, Kylie Kremer postou no Twitter um vídeo promovendo o comício de quarta-feira, acompanhado de uma mensagem: “FAÇA PARTE DA HISTÓRIA”.

O presidente compartilhou o post dela e escreveu: “Eu estarei lá! Dia histórico.”

Apesar de Kremer ter a autorização para realizar o comício, este agora se tornaria, na prática, uma produção da Casa Branca. Após 19 mil km de promoção em 44 escalas em mais de 20 estados, a entidade dela entregaria seu movimento ao homem cuja manutenção no poder ela fora criada para conservar.

Barr renunciara a seu cargo em dezembro. Mas, pelas costas do secretário interino de Justiça, Jeffrey A. Rosen, o presidente estava conspirando com o chefe interino da divisão civil do Departamento de Justiça, Jeffrey Clark, e com um deputado da Pensilvânia chamado Scott Perry, para pressionarem a Geórgia a invalidar seus resultados eleitorais, investigar a Dominion e levar à Suprema Corte uma nova ação judicial contestando a eleição por inteiro.

A tramoia foi interrompida abruptamente quando Rosen, que segundo o plano seria demitido, garantiu ao presidente que os funcionários do nível mais alto do Departamento se demitiriam em massa. Isso deixou a certificação congressional da eleição como o evento principal.

McConnell vinha trabalhando havia semanas para conservar seus senadores na linha. Numa videoconferência em meados de dezembro, exortara a todos que se abstivessem de intervir e protegessem os dois candidatos republicanos do segundo turno na Geórgia contra a obrigação de assumirem uma posição difícil.

Quando Josh Hawley se adiantou, segundo senadores republicanos, McConnell esperava pelo menos conseguir mantê-lo isolado.

Mas Ted Cruz estava trabalhando contra os objetivos de McConnell, tentando persuadir outros senadores a firmarem uma carta em que apresentava sua lógica circular: como pesquisas de opinião mostravam que as “alegações inusitadas” de fraude feitas por republicanos haviam convencido dois terços de seu partido que Biden ganhara fraudulentamente, caberia ao Congresso pelo menos adiar a certificação e ordenar uma auditoria de dez dias nos “estados em disputa”. Cruz divulgou a carta no sábado após o Ano Novo, e ela foi assinada por dez outros objetores.

McConnell sabia que o senador Tom Cotton, do Arkansas, um dos republicanos mais conservadores, planejava se manifestar publicamente contra a jogada. Ele então telefonou a Cotton, segundo um republicano a par da conversa, e o exortou a fazê-lo o quanto antes. Cotton seguiu sua sugestão prontamente.

A situação estava se transformando em uma disputa no interior do Partido Republicano, e dezenas de milhares de seguidores de Trump estavam convergindo sobre Washington para passar um recado àqueles que ousassem desafiar o presidente.

O comício ganhara um novo slogan, a Marcha para Salvar a América, e outros grupos estavam se unindo a ele, um dos quais era a Associação de Procuradores-Gerais Republicanos. Sua ala de política pública, o Fundo de Defesa do Estado de Direito, promoveu o comício em Washington em telefonemas automatizados que diziam, conforme uma gravação obtida pelo grupo investigativo progressista Documented: “Vamos marchar até o Capitólio e conclamar o Congresso a acabar com o roubo da eleição”.

Stockton se disse surpreso por descobrir no próprio dia do comício que o evento agora incluiria uma marcha do Ellipse até o Capitólio. Antes de a Casa Branca se envolver com o evento, ele disse, o plano havia sido que a multidão permanecesse no Ellipse até ser concluída a contagem dos votos eleitorais dos estados.

O envolvimento do presidente também significou que alguns oradores do programa original traçado pelo Women for America First deixariam de fazer parte do evento principal. Por isso, disse Stockton, ele organizou para que esses oradores discursassem na noite anterior em um evento de “aquecimento” no Freedom Plaza.

Esse evento tinha sido planejado por uma organização irmã, a 80 Per Cent Coalition, fundada por Cindy Chafian, uma ex-organizadora do Women for America First.

“O que estamos fazendo é algo sem precedentes”, disse Chafian ao dar início a seu ato público. “Estamos equilibrados no precipício da história e estamos preparados para retomar nosso país.” Dirigindo-se a Trump, ela falou: “Ouvimos seu chamado. Estamos aqui para nos posicionarmos a seu lado.”

Trump subiu ao pódio no Ellipse no dia seguinte pouco antes das 13h e conclamou a multidão de dezenas de milhares de pessoas à sua frente a levar sua mensagem aos republicanos no Capitólio: “Vocês nunca vão retomar nosso país com fraqueza”.

Enquanto ele discursava, alguns manifestantes, encabeçados por membros dos Proud Boys, já estavam invadindo o perímetro de segurança externa do Capitólio. Dentro do recinto, quando Paul Gosar se levantou para fazer a primeira objeção, no caso aos resultados eleitorais em seu próprio estado do Arizona, vários parlamentares republicanos o aplaudiram em pé.

Menos de uma hora mais tarde os parlamentares fugiriam para um local seguro quando a multidão enfurecida invadiu o edifício.

No dia 15 de janeiro, Trump concordou em reunir-se no Salão Oval com Mike Lindell, que chegou com dois conjuntos de documentos. Um deles, fornecido por um advogado que ele se negou a identificar, incluía uma série de medidas que Trump poderia tomar, incluindo declarar “lei marcial, se necessário”.

O outro, conforme disse Lindell em entrevista no dia seguinte, era um código de computador indicando que a China e outros atores estatais haviam alterado os resultados da eleição –verificado por seus próprios investigadores depois de ele encontrá-lo online.

“Falei: ‘Sr. Presidente, tenho ótimas notícias. O sr. ganhou com 79 milhões de votos e Biden recebeu 68 milhões’”, ele recordou. (Biden recebeu mais de 80 milhões de votos, contra 74 milhões dados a Trump. Autoridades do Departamento de Segurança Interna rejeitaram as alegações de interferência externa.)

Alguns minutos mais tarde, Trump mandou seu assessor de segurança nacional, Robert O’Brien, levar Lindell ao escritório de Cipollone no andar de cima. Ele disse ao fundador da MyPillow para voltar mais tarde.

Após uma discussão breve, assessores levaram Lindell para a saída. “Digo e repito: ‘Não vou embora’”, ele lembrou de lhes ter dito. Lindell acabou partindo quando um assessor deixou claro que o Salão Oval não ia levar a discussão adiante. O presidente havia desistido.

Tradução de Clara Allain 

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