Morre jovem baleada na cabeça durante protesto contra golpe militar em Mianmar

Mya Khaing tornou-se símbolo de resistência, e sua morte deve dar novo fôlego aos atos contra ditadura

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rangoon (Mianmar) | AFP e Reuters

Depois de ter se tornado um símbolo de resistência para os milhares de manifestantes que têm ido às ruas de Mianmar protestar contra o golpe de Estado dado pelos militares, Mya Thwate Thwate Khaing, 20, baleada na semana passada durante a repressão aos atos, morreu nesta sexta-feira (19) no hospital em que estava internada em estado crítico na capital do país, Naypyitaw.

Sua morte foi a primeira registrada entre os opositores da junta que agora governa o país. De acordo com os militares, um policial foi morto no início da semana em decorrência de ferimentos provocados pela reação da população —alguns manifestantes têm reagido às forças de segurança atirando paus, pedras e outros objetos contra as tropas.

O porta-voz das Forças Armadas e agora vice-ministro da Informação, Zaw Min Tun, confirmou que Mya foi vítima de tiros e afirmou que as autoridades estão investigando o caso.

Memorial erguido em Rangoon em homenagem a Mya Thwate Thwate Khaing, manifestante morta em decorrência da repressão militar aos protestos em Mianmar - Ye Aung Thu - 19.fev.21/AFP

O momento em que Mya foi atingida por disparos foi registrado por testemunhas e viralizou nas redes sociais. As imagens mostram um grupo de pessoas abrigadas sob o que parece ser um ponto de ônibus. A alguns metros, agentes da tropa de choque estão em formação. É possível ver jatos dos canhões de água usados contra os manifestantes e, em dado momento, ouvem-se disparos.

Mya, que aparece no vídeo usando uma camiseta vermelha e um capacete de motociclista, é atingida e cai repentinamente. Em outras postagens, há fotos do capacete perfurado por um projétil. Ela tinha 19 anos na ocasião e completou 20 internada na UTI onde passou os últimos dez dias antes de morrer.

“Atirar em um manifestante pacífico com balas de verdade é uma coisa imperdoável em nossa sociedade”, disse um médico que fez parte da equipe que prestou os primeiros atendimentos a Mya.

Segundo ele, que falou sob condição de anonimato à agência de notícias Reuters, o caso da jovem também serviu de combustível para a ampla campanha de desobediência civil, que começou entre os profissionais de saúde e se espalhou entre diversas outras categorias, como professores, universitários e funcionários remanescentes do governo deposto.

Nos dias que se seguiram ao incidente, os manifestantes passaram a marchar portando cartazes com a foto de Mya, junto de retratos de Aung San Suu Kyi, conselheira de Estado de Mianmar e, na prática, líder do governo civil deposto pelos militares.

Os atos pedem o fim da ditadura, a revogação da Constituição de 2008, considerada favorável ao Exército, e a libertação de Suu Kyi e de outros presos políticos. Desde o golpe de 1º de fevereiro, 521 pessoas foram detidas pelos militares, de acordo com a Associação de Assistência a Prisioneiros Políticos de Mianmar.

A conselheira, que já passou 15 anos em prisão domiciliar, foi detida sob uma acusação obscura de violação de normas comerciais —ela teria importado ilegalmente seis walkie-talkies. Na última terça-feira (16), ela também foi acusada de uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus, a mesma denúncia apresentada contra o presidente Win Myint.

Apesar da repressão, há indícios de que a morte de Mya dará novo fôlego às manifestações, também incitadas pela reação à declaração dos militares de que a população apoiou o golpe. "Estou muito triste por ela, mas estou mais determinado a ir para a rua", disse à agência de notícias Reuters, Nay Lin Htet, 24, em um protesto no centro comercial de Rangoon, a maior cidade do país. "Sinto-me orgulhoso dela e irei às ruas até atingirmos o nosso objetivo para ela. Não me preocupo com a minha segurança."

Os atos desta sexta incluíram a construção de uma espécie de memorial em homenagem a Mya, com flores, fotos e a bandeira da Liga Nacional pela Democracia (LND), partido de Suu Kyi.

O irmão de Mya, Ye Htut Aung, disse à Reuters na semana passada que a jovem tinha votado pela primeira vez nas eleições de novembro do ano passado, e que, desde o golpe, estava determinada a participar dos protestos na capital. "Estou grato por todos aqueles que vinham orando por ela."

A LND, que comanda o país desde 2015, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento no pleito de novembro, mas foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras. ​

O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para o golpe. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa.

A agitação nas ruas, que completa duas semanas nesta sexta, reviveu as memórias sobre o violento histórico de reações a protestos em Mianmar. Na revolta de 1988, mais de 3.000 manifestantes foram mortos pelas forças de segurança do país durante atos contra o regime militar —o país viveu sob uma ditadura de 1962 a 2011.

O golpe recebeu duras críticas da comunidade internacional. Líderes políticos de diversas nacionalidades pediram o restabelecimento do governo democraticamente eleito e a libertação de todos os presos civis.

Nesta quinta-feira (18), Reino Unido e Canadá anunciaram novas sanções aos militares, e o Japão disse que havia concordado com Índia, Estados Unidos e Austrália sobre a necessidade de restauração rápida da democracia.

O presidente americano, Joe Biden, cujo governo considera a tomada de poder em Mianmar um golpe de Estado, anunciou na semana passada um conjunto de sanções contra os militares, incluindo o bloqueio de bens do governo mianmarense, que somam US$ 1 bilhão (R$ 5,3 bi).

A China, como principal parceira regional de Mianmar, vinha adotando uma abordagem mais branda, sem condenar abertamente o golpe. Mais recentemente, porém, juntou-se a outros países-membros do Conselho de Segurança da ONU para pedir a libertação de Suu Kyi.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil, por sua vez, não mencionou golpe militar ou presos políticos em uma nota divulgada sobre o assunto e limitou-se a dizer que tem a expectativa de “um rápido retorno do país à normalidade democrática e de preservação do Estado de Direito”.


CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR

  • 1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
  • 1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
  • 1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência
  • 1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
  • 1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
  • 1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
  • 1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
  • 2008: Assembleia aprova nova Constituição
  • 2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
  • 2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
  • 2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
  • 2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
  • 2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
  • 2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.