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Ezra Klein

Se a esquerda não funciona na Califórnia, como acreditar que ela vai dar certo no resto dos EUA?

Não apenas no estado, mas em todo lugar, existe o perigo de a política virar mais uma estética do que um programa

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Ezra Klein

É colunista de opinião do jornal The New York Times. Antes, fundou o grupo de mídia digital Vox e foi colunista e editor do Washington Post.

The New York Times

Você talvez tenha ouvido que o Conselho de Educação de San Francisco aprovou, por 6 votos a 1 a mudança nos nomes de 44 escolas da região, eliminando alguns dos nomes de figuras racistas do passado, mas também de Abraham Lincoln e da senadora Dianne Feinstein.

A história com base na qual essas decisões foram tomadas era enganosa, e os resultados, em alguns casos, foram bizarros. Paul Revere, por exemplo, foi cancelado porque teria participado de um ataque a indígenas americanos —que na realidade foi a um forte britânico.

Em tempos normais, a reação apropriada a uma história como esta seria de perplexidade. É normal que as cidades tenham políticas idiossincráticas, inesperadas. Afinal, precisamos fazer por merecer nossos adesivos de parachoque com dizeres tipo “Viva a maluquice de X”. E, apesar de tantos apresentadores da Fox News já terem desmaiado de susto ao dar essa notícia, a verdade é que escolas com o nome de Abraham Lincoln não faltam na América.

Mas as escolas públicas de San Francisco continuam fechadas, não importa o nome que ostentem na fachada. “Não entendo por que o Conselho de Escolas está propondo um plano para mudar os nomes de todas essas escolas até abril, sendo que nem sequer há um plano para trazer os alunos de volta às salas de aula até lá”, disse em comunicado a prefeita da cidade, London Breed.

Não quero fazer pouco-caso dos receios de professores (ou de pais), muitos dos quais dividem suas casas com várias outras pessoas e que têm medo de voltar às aulas presenciais durante uma pandemia. Mas as melhores evidências das quais dispomos sugerem que a reabertura de escolas não traz um grande risco quando são seguidas as precauções adequadas. Conservá-las fechadas por tanto tempo prejudica muito os alunos e as piores consequências recaem sobre os estudantes mais carentes. E com isso, a questão da troca de nomes das escolas passa de uma notícia local esdrúxula para algo que constitui um reflexo de um problema mais profundo.

Veículos usados para o transporte escolar parados em estacionamento de San Francisco; escolas locais estão fechadas
Veículos usados para o transporte escolar parados em estacionamento de San Francisco; escolas locais estão fechadas - Justin Sullivan - 3.fev.21/Getty Images/AFP

A população de San Francisco é 48% branca, mas apenas 15% dos alunos de suas escolas públicas são brancos. Apesar de seu progressismo tão alardeado, a cidade tem uma das maiores parcelas nacionais de alunos matriculados em escolas particulares —e muitas dessas escolas permanecem abertas.

Parece que finalmente estamos perto de fechar um acordo com o sindicato de professores que possa trazer as crianças de volta às salas de aula, desde que os casos de coronavírus continuem a cair em toda a cidade. Mas já foram causados muitos danos. Por isso a troca de nomes das escolas foi sentida como uma afronta por tantas pessoas em San Francisco, incluindo a prefeita. Parecia que um ataque a símbolos estava sendo priorizado, em detrimento das políticas públicas que seriam necessárias para reduzir a desigualdade racial.

Quero deixar claro, antes de mais nada, que amo a Califórnia. Nasci e fui criado em Orange County. Estudei em escolas públicas estaduais e me formei no sistema da Universidade da Califórnia, o maior sistema de universidade pública do mundo. Voltei a viver na Califórnia alguns anos atrás, em parte porque adoro as bizarrices, a diversidade e a genialidade deste estado. A Califórnia é um lugar especial onde os problemas de amanhã e as soluções de amanhã competem por primazia. A Califórnia impulsiona as tecnologias, a cultura e as ideias que moldam o mundo inteiro. Mas, exatamente por esse motivo, nossas falhas de governança me preocupam.

A Califórnia tem o maior índice de pobreza do país, quando os custos habitacionais são incluídos no cálculo, e compete pelo primeiro lugar nacional em matéria de disparidade de renda. Houve avanços positivos nos últimos anos —a modernização da grade elétrica, um plano profundamente progressista para taxar os ricos para financiar distritos escolares pobres, uma população carcerária que está no nível mais baixo dos últimos 30 anos—, mas há uma razão para que haja mais 130 mil pessoas no número das que deixam o estado do que no das que vêm morar nele todos os anos. A Califórnia é dominada pelos democratas, mas muitas das pessoas com as quais os democratas alegam se preocupar mais não podem arcar com o custo de viver aqui.

Há um ditado antigo na ciência política segundo o qual os americanos são “simbolicamente conservadores”, mas “operacionalmente liberais”. Os americanos falam como conservadores, mas querem ser governados como liberais. A mesma personalidade política dividida está presente na Califórnia, mas invertida: em muitos casos somos simbolicamente liberais, mas operacionalmente conservadores. Rebatizar escolas fechadas é um exemplo muito pontual disso, mas não o que encerra mais consequências.

O preço médio de um imóvel residencial na Califórnia passa dos US$ 700 mil (R$ 3,7 milhões). Como informou a Bloomberg em 2019, quatro dos mercados imobiliários residenciais mais caros do país ficam na Califórnia, ao mesmo tempo em que o estado possui um quarto dos sem-teto do país. A raiz da crise é muito simples: é dificílimo construir casas na Califórnia.

Quando Gavin Newsom se candidatou a governador, em 2018, prometeu construir 3,5 milhões de unidades habitacionais até 2025. Ele venceu a eleição, mas menos de 100 mil casas foram construídas a cada ano no estado desde então. Em Los Angeles, o prefeito Eric Garcetti persuadiu a população a aprovar um novo imposto sobre vendas para combater a crise habitacional da cidade, mas o programa está muito aquém de seus objetivos, em parte porque os donos de casa própria combateram a construção de abrigos para sem-teto em suas comunidades.

Parte disso reflete a dificuldade de exercer o poder em um estado onde a autoridade muitas vezes é fraturada e descentralizada. Mas isso não explica o fenômeno por inteiro. O SB50 é um projeto de lei ambicioso proposto pelo senador estadual Scott Wiener para permitir construção densa nas proximidades de meios de transporte de massa. Ver o projeto de lei ser derrotado virou um ritual político anual.

No ano passado, Toni Atkins, líder democrata no Senado estadual, patrocinou um projeto de lei modesto que autorizaria a construção de casas geminadas em terrenos reservados para casas únicas. O projeto de lei foi aprovado no Senado, depois aprovado pela Assembleia com emendas leves, e então fracassou porque foi reenviado ao Senado faltando apenas três minutos para o término da sessão legislativa. Tudo isso em um estado que tem uma história e um presente dolorosos de racismo habitacional.

Esta é uma crise que traz à tona o conservadorismo da Califórnia —não o conservadorismo político que privatiza o Medicare, mas o conservadorismo temperamental que se opõe a mudanças, gritando “pare!”. Em boa parte de San Francisco não se pode caminhar dez metros sem ver algum cartaz multicolorido proclamando que “black lives matter” (vidas negras importam), que a gentileza é tudo e que nenhum ser humano é ilegal.

Esses cartazes são erguidos em zonas reservadas para famílias únicas, em comunidades que se organizam para combater esforços para permitir a construção de casas novas que levariam esses valores mais perto de serem concretizados. As famílias mais pobres —desproporcionalmente não brancas e imigrantes— são forçadas a se deslocar longe entre casa e trabalho, a viver em habitações superlotadas ou a tornarem-se sem-teto. E essas desigualdades ganharam caráter letal durante a pandemia.

“Quando oito ou dez pessoas dividem uma casa, é difícil proteger-se contra o vírus”, Wiener me disse. “Mas o que a gente vê às vezes são pessoas com um adesivo de Bernie Sanders e um cartaz de Black Lives Matter na janela, mas que estão combatendo um projeto de construção de unidades residenciais de preço acessível ou de um prédio de apartamentos em sua rua.”

A partir do momento que você toma consciência desse padrão, passa a enxergá-lo em toda parte. A Califórnia fala muito sobre mudança climática, mas, mesmo com bilhões de dólares de recursos federais, não foi capaz de construir uma linha férrea de alta velocidade entre Los Angeles e San Francisco.

O projeto foi sufocado por consultores caros, negociações em torno de terrenos particulares, incontáveis relatórios de impacto ambiental, governos de condados processando o governo estadual. No final, encolheu e virou nada mais que uma linha de trem que interliga as cidades de Bakersfield e Merced, ambas de tamanho mediano, e mesmo essa obra está atrasada e já superou tremendamente seu orçamento inicial.

Levar a cabo projetos menores também é um esforço hercúleo para conseguir anos de relatórios de impacto ambiental. Virou comum no estado ver leis como a Lei de Qualidade Ambiental da Califórnia serem brandidas para fazer oposição a projetos que visam limitar o espichamento urbano. Entidades sem nenhum histórico de ativismo ambiental utilizam a lei para obrigar a realização de análises ambientais caras que vêm sendo utilizadas para bloquear tudo, de ciclovias à construção de projetos habitacionais de custo acessível, passando por abrigos para sem-teto.

A distribuição da vacina na Califórnia foi prejudicada por critérios de priorização excessivamente complexos que atrasaram tremendamente o ritmo inicial da vacinação. Essas diretrizes foram redigidas com boa intenção, na medida em que políticos do estado se preocuparam em tentar equilibrar rapidez de vacinação com paridade de acesso. Mas o resultado não foi uma distribuição justa, e sim lenta, e a Califórnia ficou atrasada em relação ao restante do país nas primeiras semanas da vacinação. O estado acabou mudando de rumo e simplificando a priorização de pessoas a vacinar.

Alguns resultados convencionais são intencionais; os eleitores californianos bloquearam a iniciativa de 2020 para restaurar a ação afirmativa, incluída na eleição de novembro, intencionalmente. Mas alguns resultados refletem processos e leis antigos que interessam a setores ou comunidades existentes que os perverteram para atender às suas próprias finalidades. A Lei de Qualidade Ambiental da Califórnia não foi criada para impedir o transporte de massa —fato que o estado finalmente reconheceu quando aprovou legislação recente criando exceções à lei.

A profusão de conselhos e audiências públicas que deixou NIMBYs [sigla utilizada para descrever grupos que se opõem a projetos polêmicos considerados prejudiciais ao urbanismo] bloquearem a construção de unidades residenciais novas é o legado de um progressismo que queria impedir grandes construtoras de cortar comunidades com vias expressas; seu objetivo original não foi ajudar pessoas ricas a combater a construção de apartamentos de preços acessíveis.

A Califórnia quer ser o futuro, mas as instituições que a governam estão atoladas no passado. Suas estruturas decisórias muitas vezes privilegiam os setores estabelecidos que gostam das coisas do jeito que estão, em detrimento daqueles para os quais é necessário que as coisas mudem.

Escrevendo este artigo, me vi pensando no livro “How to Be an Antiracist” (como ser antirracista), de Ibrahim X. Kendi. O argumento central de Kendi é que o importante são os resultados de políticas públicas, e não a intenção pessoal de quem as promove. “Uma política pública racista é qualquer uma que leve à desigualdade racial”, ele me disse quando o entrevistei em 2019. “Por isso, para mim, a linguagem racial nas políticas públicas não tem importância, a intenção do político não tem importância, mesmo a consciência dele de que isso vai levar a desigualdade não tem importância. O que vale é a consequência fundamental.”

Se levássemos essa ideia a sério na Califórnia, isso implicaria nos preocuparmos menos com o nome de uma escola do que com a presença ou não de alunos dentro dela, como a prefeita Breed vem insistindo. Implicaria nos preocuparmos menos com um cartaz fixado num quintal do que com o preço médio das casas nesse quarteirão. E pode implicar nos preocuparmos menos com um processo oneroso que afirma respeitar a proteção ambiental e mais em como acelerarmos projetos que levem à justiça ambiental.

Não apenas na Califórnia, mas em todo lugar existe o perigo de a política virar mais uma estética do que um programa. Esse é um perigo na direita, onde Donald Trump exemplificou uma Presidência que se preocupou mais em repostar tuites que em promulgar leis. Mas é um perigo também na esquerda, onde a preferência frequentemente é dada aos símbolos do progressismo, não aos sacrifícios e riscos que esses ideais exigem.

Como o maior estado do país e como um estado em que os democratas exercem controle total do governo, a Califórnia carrega um fardo especial. Se o progressismo não puder funcionar aqui, por que o país deveria acreditar que pode funcionar em qualquer outro lugar?

Espero que a Califórnia continue sendo esquisita. Mas ela precisa melhorar.

Tradução de Clara Allain

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