Descrição de chapéu The New York Times

Além de matar, militares estupram mulheres e usam minorias como escudos humanos em Mianmar

Vítimas da brutalidade do Exército contam suas histórias à medida que repressão aumenta após golpe de Estado

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Richard C. Paddock
The New York Times

Soldados do Exército de Mianmar bateram à porta de U Thein Aung numa manhã de abril do ano passado quando ele tomava chá com amigos, exigindo que todos acompanhassem o pelotão até outro vilarejo.

Quando chegaram a um trecho perigoso nas montanhas do estado de Rakhine, os soldados mandaram os homens caminharem 30 metros à frente deles. Um dos homens pisou numa mina terrestre que explodiu, matando-o. Fragmentos metálicos atingiram Thein Aung no braço e em seu olho esquerdo.

“Eles ameaçaram nos matar se não os acompanhássemos”, disse Theing Aung, 65, que acabou perdendo o olho. “Ficou muito claro que estavam nos usando como detectores humanos de minas terrestres.”

O Exército e suas práticas brutais provocam medo onipresente em Mianmar, sentimento que se intensificou desde que os generais assumiram poder pleno em um golpe de estado no mês passado.

Enquanto as forças de segurança abatem manifestantes pacíficos nas ruas das cidades, a violência que já é corriqueira no campo serve como sinistro lembrete do longo legado de atrocidades dos militares.

Familiares choram por manifestante morto durante protestos contra o regime militar em Rangoon, em Mianmar
Familiares choram por manifestante morto durante protestos contra o regime militar em Rangoon, em Mianmar - 5.mar.21/The New York Times

Durante décadas de governo militar, um Exército operado pela maioria étnica bamar agiu com impunidade contra minorias, matando civis e incendiando vilarejos. A violência continuou mesmo depois de o Exército ceder alguma autoridade a um governo eleito, num arranjo de partilha do poder que começou em 2016.

No ano seguinte, os militares expulsaram mais de 700 mil muçulmanos rohingyas do país, numa campanha de limpeza étnica que um painel das Nações Unidas descreve como genocida. Soldados vêm combatendo exércitos rebeldes de minorias étnicas com a mesma brutalidade, usando homens e meninos como escudos humanos e estuprando mulheres e meninas.

Os generais agora estão de volta ao controle pleno, e o Tatmadaw, como é conhecido o Exército, voltou suas armas contra o povo, que lançou um movimento de desobediência civil de âmbito nacional.

A repressão cresceu na segunda-feira (8) em reação a uma greve geral. Forças de segurança assumiram controle de universidades e hospitais e cancelaram as licenças de operação de cinco organizações noticiosas. Pelo menos três manifestantes foram mortos a tiros.

Mais de 60 pessoas já foram mortas desde o golpe do dia 1º de fevereiro, uma repressão cada vez mais sangrenta que lembra o que ocorreu quando os militares sufocaram atos pró-democracia no passado.

“Este é um Exército com um coração de trevas”, comentou David Scott Mathieson, analista independente que estuda as práticas dos militares há anos. “É uma instituição impenitente.”

A brutalidade está entranhada no Tatmadaw, que chegou ao poder em um golpe de estado em 1962, alegando que precisava salvaguardar a unidade nacional. O Exército luta há décadas para controlar partes do país habitadas por minorias étnicas e ricas em jade, madeira e outros recursos naturais.

Nos últimos três anos, o Tatmadaw vem travando uma guerra intermitente contra exércitos étnicos rebeldes em três estados: Rakhine, Shan e Kachin. Os combates mais intensos ocorreram em Rakhine, onde o Exército Arakhan, uma força étnica de Rakhine, busca maior autonomia.

Os civis muitas vezes se tornam baixas nesses conflitos prolongados, como familiares de vítimas ou testemunhas nesses três estados atestaram em entrevistas dadas ao New York Times.

Seis homens descreveram como foram feridos por minas terrestres ou tiros quando soldados os forçaram a arriscar a vida. Várias mulheres contaram terem sido estupradas por soldados. Outras recordaram seus maridos e filhos que nunca voltaram depois de serem levados por soldados.

O New York Times entrou em contato com as vítimas por meio de entidades locais de defesa de direitos que haviam documentado seus relatos, ido aos locais, entrevistado testemunhas e corroborado os fatos amplamente. Grupos de defesa dos direitos humanos também têm publicado relatos sobre essas práticas.

Um porta-voz do Exército se negou a comentar.

As pessoas que conversaram com o jornal detalharam um padrão de abusos em que soldados forçaram civis a atuar como seus carregadores, sob ameaça de morte. Homens e garotos foram obrigados a andar à frente dos soldados em zonas de conflito, sendo frequentemente usados como escudos humanos.

Em outubro, Sayedul Amin, um homem rohingya de 28 anos, estava pescando numa lagoa perto de seu vilarejo, Rambarbill, no estado de Rakhine, quando cerca de cem soldados chegaram. Ele disse que militares reuniram 14 homens, um dos quais ele, e os mandaram carregar sacos de arroz e outros alimentos. Vários homens que se recusaram a obedecer foram gravemente espancados.

“Nos mandaram andar à frente dos soldados”, contou ele. “Parece que queriam que fôssemos escudos deles, caso alguém atacasse.”

Eles estavam marchando havia menos de uma hora quando o tiroteio começou, contou Amin. Ele não chegou a ver quem atirou neles. Amin foi atingido por duas balas. Um menino de 10 anos e um jovem de 18 morreram diante dele, levando tantos tiros no rosto e na cabeça que ficaram quase irreconhecíveis.

Os soldados abandonaram os corpos para serem enterrados pelos homens do vilarejo.

O Tatmadaw já obrigou pelo menos 200 meninos e homens no estado de Rakhine a servirem de carregadores e escudos humanos nos últimos três anos, segundo U Than Hla, membro do conselho de diretores da coalizão de direitos humanos Arakan CSO Network. Dos homens levados à força, é sabido que 30 morreram e pelo menos 70 estão desaparecidos. Metade deles tinha menos de 18 anos.

Entidades de direitos humanos dizem que práticas desse tipo são comuns há muito tempo nos estados de Kachin e Shan. Mas não há dados semelhantes do mesmo período nesses estados.

As mulheres enfrentam horrores próprios. Enquanto violência sexual cometida por membros do Tatmadaw muitas vezes não chega a ser denunciada, estupros ocorreram de forma ampla e sistemática durante a limpeza étnica dos rohingyas, segundo a ONG Human Rights Watch. A mesma coisa ocorre com mulheres de outros grupos étnicos em zonas de conflito.

“O Exército de Mianmar está violando direitos humanos de muitas maneiras”, disse Zaw Zaw Min, fundadora do Grupo de Direitos Humanos de Rakhine. “Mulheres são estupradas, vilarejos são incendiados, bens são roubados e pessoas são levadas para serem usadas como carregadores.”

Oo Htay Win, 37, contou que em junho, quando soldados chegaram a seu vilarejo de U Gar, no estado de Rakhine, ela se escondeu em sua casa com seus quatro filhos e sua neta recém-nascida. Naquela noite, o choro do bebê atraiu a presença de quatro soldados, que invadiram a casa.

Eles lhe deram a escolha: fazer sexo com eles ou morrer. Nas duas horas seguintes, três soldados a violentaram enquanto um quarto montava guarda. Pela manhã, Oo Htay Win, suas filhas e o bebê escaparam pela porta dos fundos e se refugiaram na cidade de Sittwe, onde ela está vivendo agora. Quando soube do estupro, o marido de Oo Htay a abandonou.

A maioria das mulheres estupradas por soldados guarda silêncio, mas Oo Htay Win prestou queixa criminal. Os soldados confessaram, foram julgados, condenados e sentenciados a 20 anos de prisão.

“Odeio esses três soldados porque destruíram minha vida”, disse ela. “Por causa deles, perdi tudo.”

Alguns moradores de vilarejos tentam escapar dos conflitos, mas acabam virando vítimas de violência mesmo assim. Em março de 2018, a família de U Phoe Shan e outras pessoas de sua vila estavam fugindo dos combates no estado de Kachin, no norte de Mianmar. Estavam indo para um campo para pessoas deslocadas quando toparam com forças do Tatmadaw na estrada.

Phoe San, 48, disse que os soldados o mandaram caminhar à frente de um grupo de 50 homens, atravessando uma área de floresta. Quinze minutos depois de entrar na mata ele pisou sobre uma mina. Passou três semanas hospitalizado com ferimentos nas pernas.

“Se resistimos, podem nos matar a tiros”, disse ele. “É melhor atravessar um campo minado.”

A vida das vítimas dessas atrocidades raramente volta ao normal. Seus familiares levados embora nunca voltam para casa. As pessoas que sofreram lesões incapacitantes têm dificuldade em encontrar trabalho.

No estado de Shan, no leste do país, U Thar Pu Ngwe, 46, foi forçado a prestar serviços aos militares. Foi atingido na perna por um fragmento quando um soldado pisou sobre uma mina.

Agora ele anda com dificuldade e leva três vezes mais tempo do que antes para chegar a qualquer lugar, conforme contou. Ele teve que reduzir a área de terra que cultiva, e sua renda caiu pela metade.

“Aquele incidente mudou minha vida”, disse. “Eu era um homem feliz, mas não sou mais.” Ele pediu que o Tatmadaw pare de usar civis em batalha. “Se vocês querem combater, façam isso por conta própria.”

Tradução de Clara Allain

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